quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Notas de reflexão crítica III - a propósito do pensamento político orwelliano

Alphonse van Worden - 1750 AD





- Se a disjuntiva Bola de Neve / Napoleão (Animal Farm - 1945) decerto passa por uma disputa de poder pelo controle do Estado, e se é igualmente certo que tal contenda se dá no seio de uma elite dirigente, é também mister frisar que ela envolve outras dimensões, quiçá mais importantes. Bola de Neve - que a meu ver não retrata apenas Trotsky, tal como se costuma interpretá-lo, mas sim una espécie de amálgama entre este e Lenin - é concebido como uma figura contraditória, ambígua (por exemplo, a autorização de rações extraordinárias de leite e maçãs para os porcos), mas, de todo modo, revolucionária e popular - a organização de comitês com o fito de melhorar as condições de vida na fazenda; o projeto do moinho de vento como instrumento capaz de reduzir a carga de trabalho dos animais. Napoleão, por seu turno, é uma entidade incontrastavelmente negativa, uma vez que desde o princípio demonstra-se preocupado tão somente em assegurar aos porcos o papel dirigente, bem como em exercer tal primado com extrema truculência e autoritarismo.

- Assim sendo, a perspectiva assumida por Orwell é sobremaneira mais sutil e matizada que uma rejeição tout court à revolução soviética: se Lenin e Trotsky (mesclados em Bola de Neve) inequivocamente compartilham da responsabilidade pela limitação da democracia na Rússia soviética, é da mesma maneira insofismável o facto de que são revolucionários e libertadores, uma vez que, de facto, derribaram uma autocracia milenar e instituíram um novo regime, que trouxe um novo horizonte, tanto em termos econômicos quanto na esfera sociocultural, para milhões de seres humanos; são, portanto, figuras cujo legado, ainda que não isento de sombras, não pode ser descartado, e em que períodos diferentes encarnaram / simbolizaram papéis distintos. Há também que sublinhar - e isto é deveras importante na caracterização de Orwell como autor, ao fim e ao cabo, progressista - que o escritor inglês não chancela a idéia de que Marx, assim como Stalin e (parcialmente) Lenin, tenha sido um coletivista oligárquico, o que está meridianamente evidenciado na ideologia revolucionária do venerando porco Major (que, como é evidente, simboliza Marx no arranjo estrutural do enredo).

- No que tange ao romance 1984 (1948), aí sim podemos falar numa rejeição mais cabal não apenas à deformação autoritária stalinista, mas à perspectiva bolchevique como um todo, mormente à noção leninista de um partido rigidamente disciplinado e centralizado, depositário último da consciência de classe proletária e instância dirigente do processo revolucionário. Orwell descria fortemente dessa idéia: Goldstein (Trotsky) é sem dúvidas um heróico adversário do Big Brother, mas inelutavelmente inserido nas tradições e dinâmicas do Partido e da New Speak. Subentende-se, portanto, que Trotsky e Stalin de facto fossem 'irmãos', essencialmente 'grandes irmãos', opostos tão somente em função de algumas distinções em sua abordagem do poder soviético. A esse respeito vale também recordar o livro The Managerial Revolution (1941) de James Burnham, uma vez que "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", o book within the book concebido por Orwell em 1984 para explicar os pressupostos políticos, econômicos, sociais, filosóficos, culturais e psicológicos que balizam os credos ideológicos dominantes nos três superestados – 'Ingsoc' (Oceania), ‘Neobolchevismo’ (Eurásia) e ‘Obliteração do Ego’ (Lestásia) - , é nitidamente uma brilhante paródia/homenagem à obra máxima de Burnham.

- Por seu turno, a revolta de W. Smith contra o sistema é amorfa, indistinta, ditada mais por uma malaise inconsciente, vagamente associada a questões psicológicas / fisiológicas, e decerto ligada a seu passado, sobretudo à sua infância, do que por uma crítica ideológico/pragmática ao regime do Ingsoc, o qual ele, aliás, não chegue a compreender por completo. Winston chega a entrever o alicerce estrutural, o alpha e o omega, o giroscópio conceitual onde se assentam o regime e a filosofia Ingsoc: o 'solipsismo coletivo' erigido pela doutrina do doublethink; não obstante, ele capta apenas os EFEITOS de tal dinâmica, mas não lhe percebe a lógica interna estruturante, ou seja, não compreende de que modo ela funciona e, o que é ainda mais importante, não desvela seus objetivos e desígnios últimos. Assim sendo, ele não consegue organizar-se psicologicamente de modo a viver sob a 'esquizofrenia organizada' que seria necessária a um enfrentamento / convivência eficaz com o Partido.

- É mister salientar, todavia, que o autor britânico continuou a isentar o marxismo de qualquer responsabilidade pelas atrocidades do totalitarismo soviético, não subscrevendo de forma alguma a hipótese de um 'pecado original' já embutido, mesmo que em caráter embrionário, no pensamento marxista.

- Há, por fim, que sublinhar a emblemática rejeição de Orwell a qualquer noção 'teleológica' de progresso. No incisivo ensaio Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), o autor inglês verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira arbitrário e irrealista, já que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é de todo inverificável no presente.

4 comentários:

Anónimo disse...

Eis um livro que é essencial. Boa colocações v. consegue fazer nessa breve passagem, Alfredo. [b]1984[/b], de fato, é um livro primordial para etrmos, numa visão de uma literatura, algo que existiu no mundo concreto.

Alphonse van Worden disse...

Obrigado, confrade.

Vale acrescentar também que 1984 permanece 'vivo' enquanto referência política, vide a ascensão dos neocon, por exemplo.

Anónimo disse...

bem interessante... seu blog sempre tem coisas mto boas de serem lidas... vc deveria reuni-los revistos num livro de ensaios, facilitaria a leitura

Alphonse van Worden disse...

Obrigado, confrade.

De facto, gostaria imenso de reunir alguns escritos numa compilação, mas no Brasil é complicado...

Saudações,
AVW