Alphonse van Worden - 1750 AD
- Se a disjuntiva Bola de Neve / Napoleão (Animal Farm - 1945) decerto passa por uma disputa de poder pelo controle do Estado, e se é igualmente certo que tal contenda se dá no seio de uma elite dirigente, é também mister frisar que ela envolve outras dimensões, quiçá mais importantes. Bola de Neve - que a meu ver não retrata apenas Trotsky, tal como se costuma interpretá-lo, mas sim una espécie de amálgama entre este e Lenin - é concebido como uma figura contraditória, ambígua (por exemplo, a autorização de rações extraordinárias de leite e maçãs para os porcos), mas, de todo modo, revolucionária e popular - a organização de comitês com o fito de melhorar as condições de vida na fazenda; o projeto do moinho de vento como instrumento capaz de reduzir a carga de trabalho dos animais. Napoleão, por seu turno, é uma entidade incontrastavelmente negativa, uma vez que desde o princípio demonstra-se preocupado tão somente em assegurar aos porcos o papel dirigente, bem como em exercer tal primado com extrema truculência e autoritarismo.
- Assim sendo, a perspectiva assumida por Orwell é sobremaneira mais sutil e matizada que uma rejeição tout court à revolução soviética: se Lenin e Trotsky (mesclados em Bola de Neve) inequivocamente compartilham da responsabilidade pela limitação da democracia na Rússia soviética, é da mesma maneira insofismável o facto de que são revolucionários e libertadores, uma vez que, de facto, derribaram uma autocracia milenar e instituíram um novo regime, que trouxe um novo horizonte, tanto em termos econômicos quanto na esfera sociocultural, para milhões de seres humanos; são, portanto, figuras cujo legado, ainda que não isento de sombras, não pode ser descartado, e em que períodos diferentes encarnaram / simbolizaram papéis distintos. Há também que sublinhar - e isto é deveras importante na caracterização de Orwell como autor, ao fim e ao cabo, progressista - que o escritor inglês não chancela a idéia de que Marx, assim como Stalin e (parcialmente) Lenin, tenha sido um coletivista oligárquico, o que está meridianamente evidenciado na ideologia revolucionária do venerando porco Major (que, como é evidente, simboliza Marx no arranjo estrutural do enredo).
- No que tange ao romance 1984 (1948), aí sim podemos falar numa rejeição mais cabal não apenas à deformação autoritária stalinista, mas à perspectiva bolchevique como um todo, mormente à noção leninista de um partido rigidamente disciplinado e centralizado, depositário último da consciência de classe proletária e instância dirigente do processo revolucionário. Orwell descria fortemente dessa idéia: Goldstein (Trotsky) é sem dúvidas um heróico adversário do Big Brother, mas inelutavelmente inserido nas tradições e dinâmicas do Partido e da New Speak. Subentende-se, portanto, que Trotsky e Stalin de facto fossem 'irmãos', essencialmente 'grandes irmãos', opostos tão somente em função de algumas distinções em sua abordagem do poder soviético. A esse respeito vale também recordar o livro The Managerial Revolution (1941) de James Burnham, uma vez que "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", o book within the book concebido por Orwell em 1984 para explicar os pressupostos políticos, econômicos, sociais, filosóficos, culturais e psicológicos que balizam os credos ideológicos dominantes nos três superestados – 'Ingsoc' (Oceania), ‘Neobolchevismo’ (Eurásia) e ‘Obliteração do Ego’ (Lestásia) - , é nitidamente uma brilhante paródia/homenagem à obra máxima de Burnham.
- Por seu turno, a revolta de W. Smith contra o sistema é amorfa, indistinta, ditada mais por uma malaise inconsciente, vagamente associada a questões psicológicas / fisiológicas, e decerto ligada a seu passado, sobretudo à sua infância, do que por uma crítica ideológico/pragmática ao regime do Ingsoc, o qual ele, aliás, não chegue a compreender por completo. Winston chega a entrever o alicerce estrutural, o alpha e o omega, o giroscópio conceitual onde se assentam o regime e a filosofia Ingsoc: o 'solipsismo coletivo' erigido pela doutrina do doublethink; não obstante, ele capta apenas os EFEITOS de tal dinâmica, mas não lhe percebe a lógica interna estruturante, ou seja, não compreende de que modo ela funciona e, o que é ainda mais importante, não desvela seus objetivos e desígnios últimos. Assim sendo, ele não consegue organizar-se psicologicamente de modo a viver sob a 'esquizofrenia organizada' que seria necessária a um enfrentamento / convivência eficaz com o Partido.
- É mister salientar, todavia, que o autor britânico continuou a isentar o marxismo de qualquer responsabilidade pelas atrocidades do totalitarismo soviético, não subscrevendo de forma alguma a hipótese de um 'pecado original' já embutido, mesmo que em caráter embrionário, no pensamento marxista.
- Há, por fim, que sublinhar a emblemática rejeição de Orwell a qualquer noção 'teleológica' de progresso. No incisivo ensaio Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), o autor inglês verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira arbitrário e irrealista, já que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é de todo inverificável no presente.
- Se a disjuntiva Bola de Neve / Napoleão (Animal Farm - 1945) decerto passa por uma disputa de poder pelo controle do Estado, e se é igualmente certo que tal contenda se dá no seio de uma elite dirigente, é também mister frisar que ela envolve outras dimensões, quiçá mais importantes. Bola de Neve - que a meu ver não retrata apenas Trotsky, tal como se costuma interpretá-lo, mas sim una espécie de amálgama entre este e Lenin - é concebido como uma figura contraditória, ambígua (por exemplo, a autorização de rações extraordinárias de leite e maçãs para os porcos), mas, de todo modo, revolucionária e popular - a organização de comitês com o fito de melhorar as condições de vida na fazenda; o projeto do moinho de vento como instrumento capaz de reduzir a carga de trabalho dos animais. Napoleão, por seu turno, é uma entidade incontrastavelmente negativa, uma vez que desde o princípio demonstra-se preocupado tão somente em assegurar aos porcos o papel dirigente, bem como em exercer tal primado com extrema truculência e autoritarismo.
- Assim sendo, a perspectiva assumida por Orwell é sobremaneira mais sutil e matizada que uma rejeição tout court à revolução soviética: se Lenin e Trotsky (mesclados em Bola de Neve) inequivocamente compartilham da responsabilidade pela limitação da democracia na Rússia soviética, é da mesma maneira insofismável o facto de que são revolucionários e libertadores, uma vez que, de facto, derribaram uma autocracia milenar e instituíram um novo regime, que trouxe um novo horizonte, tanto em termos econômicos quanto na esfera sociocultural, para milhões de seres humanos; são, portanto, figuras cujo legado, ainda que não isento de sombras, não pode ser descartado, e em que períodos diferentes encarnaram / simbolizaram papéis distintos. Há também que sublinhar - e isto é deveras importante na caracterização de Orwell como autor, ao fim e ao cabo, progressista - que o escritor inglês não chancela a idéia de que Marx, assim como Stalin e (parcialmente) Lenin, tenha sido um coletivista oligárquico, o que está meridianamente evidenciado na ideologia revolucionária do venerando porco Major (que, como é evidente, simboliza Marx no arranjo estrutural do enredo).
- No que tange ao romance 1984 (1948), aí sim podemos falar numa rejeição mais cabal não apenas à deformação autoritária stalinista, mas à perspectiva bolchevique como um todo, mormente à noção leninista de um partido rigidamente disciplinado e centralizado, depositário último da consciência de classe proletária e instância dirigente do processo revolucionário. Orwell descria fortemente dessa idéia: Goldstein (Trotsky) é sem dúvidas um heróico adversário do Big Brother, mas inelutavelmente inserido nas tradições e dinâmicas do Partido e da New Speak. Subentende-se, portanto, que Trotsky e Stalin de facto fossem 'irmãos', essencialmente 'grandes irmãos', opostos tão somente em função de algumas distinções em sua abordagem do poder soviético. A esse respeito vale também recordar o livro The Managerial Revolution (1941) de James Burnham, uma vez que "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", o book within the book concebido por Orwell em 1984 para explicar os pressupostos políticos, econômicos, sociais, filosóficos, culturais e psicológicos que balizam os credos ideológicos dominantes nos três superestados – 'Ingsoc' (Oceania), ‘Neobolchevismo’ (Eurásia) e ‘Obliteração do Ego’ (Lestásia) - , é nitidamente uma brilhante paródia/homenagem à obra máxima de Burnham.
- Por seu turno, a revolta de W. Smith contra o sistema é amorfa, indistinta, ditada mais por uma malaise inconsciente, vagamente associada a questões psicológicas / fisiológicas, e decerto ligada a seu passado, sobretudo à sua infância, do que por uma crítica ideológico/pragmática ao regime do Ingsoc, o qual ele, aliás, não chegue a compreender por completo. Winston chega a entrever o alicerce estrutural, o alpha e o omega, o giroscópio conceitual onde se assentam o regime e a filosofia Ingsoc: o 'solipsismo coletivo' erigido pela doutrina do doublethink; não obstante, ele capta apenas os EFEITOS de tal dinâmica, mas não lhe percebe a lógica interna estruturante, ou seja, não compreende de que modo ela funciona e, o que é ainda mais importante, não desvela seus objetivos e desígnios últimos. Assim sendo, ele não consegue organizar-se psicologicamente de modo a viver sob a 'esquizofrenia organizada' que seria necessária a um enfrentamento / convivência eficaz com o Partido.
- É mister salientar, todavia, que o autor britânico continuou a isentar o marxismo de qualquer responsabilidade pelas atrocidades do totalitarismo soviético, não subscrevendo de forma alguma a hipótese de um 'pecado original' já embutido, mesmo que em caráter embrionário, no pensamento marxista.
- Há, por fim, que sublinhar a emblemática rejeição de Orwell a qualquer noção 'teleológica' de progresso. No incisivo ensaio Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), o autor inglês verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira arbitrário e irrealista, já que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é de todo inverificável no presente.
4 comentários:
Eis um livro que é essencial. Boa colocações v. consegue fazer nessa breve passagem, Alfredo. [b]1984[/b], de fato, é um livro primordial para etrmos, numa visão de uma literatura, algo que existiu no mundo concreto.
Obrigado, confrade.
Vale acrescentar também que 1984 permanece 'vivo' enquanto referência política, vide a ascensão dos neocon, por exemplo.
bem interessante... seu blog sempre tem coisas mto boas de serem lidas... vc deveria reuni-los revistos num livro de ensaios, facilitaria a leitura
Obrigado, confrade.
De facto, gostaria imenso de reunir alguns escritos numa compilação, mas no Brasil é complicado...
Saudações,
AVW
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