sexta-feira, dezembro 01, 2006

Apontamentos sobre o pensamento político católico I - a propósito de Gilbert Keith Chesterton e Hilaire Belloc

Alphonse van Worden - 1750 AD





























Tendo em vista o ominoso, malgrado inelutável, facto de que o vasto experimento político-econômico do socialismo fracassou rotundamente, gestando sociedades que em tudo vão de encontro ao ideário proposto à partida por Marx e Engels, bem como às metas advogadas pelas famígeras jornadas d’Outubro; bem como a também insofismável constatação de que o capitalismo liberal, hoje infrene a reinar por todos os quadrantes da Terra, é um sistema autofágico, a predar progressiva e continuamente suas próprias bases de sustentação estrutural, torna-se imperativa a necessidade de encontrarmos uma opção viável, ou seja, um modelo de organização capaz de, a um só tempo, promover justiça social e crescimento econômico, conciliando assim as principais linhas de fuga dos sistemas socialista e do capitalista.

Enfaticamente refratária tanto às assimetrias inerentes ao capitalismo quanto à hipertrofia estatal do socialismo, a doutrina social da Igreja tornar-se-ia fonte de inspiração, mormente através da célebre encíclica Rerum Novarum (Leão XIII - 1891), de uma das mais profícuas tentativas de estabelecer uma alternativa sólida ao dilema em tela: o ‘distributivismo’ (distributism), propugnado, sobretudo, pelos insignes escritores católicos Gilbert Keith Chesterton (1874 -1936) e Joseph Hilaire Pierre René Belloc (1870 - 1953), ambos britânicos, em volumes como What's Wrong with the World (Chesterton - 1910); The Servile State (Belloc - 1913); The Uses of Diversity (Chesterton - 1921); An Essay on The Restoration of Property (Belloc - 1936).

Em que consistiria, pois, o distributivismo? Basicamente no que já está embutido em seu nome, vale dizer, na máxima distribuição possível da propriedade por todos os homens; preconiza, destarte, que os meios de produção devem pertencer ao maior número de indivíduos possível, e não permanecer sob o controle d'uma minoria proprietária (tal como no capitalismo), ou então sob a égide de um estamento gerencial (conforme ocorre no socialismo).

A perspectiva distributivista alega que, no regime capitalista, a propriedade produtiva é, ao fim e ao cabo, apanágio de uma camada minoritária de cidadãos, que acabam por deter uma influência sobre o conjunto da sociedade muito maior do que o que seria de bom alvitre; e malgrado todos tenham, sob o ponto de vista do formalismo jurídico-institucional, direito à propriedade privada, na prática isto acaba por ser prerrogativa quase exclusiva de uma pequena minoria ou, tal como assevera célebre observação de Chesterton, "too much capitalism does not mean too many capitalists, but too few capitalists" (The Uses of Diversity); por outro lado, há no âmbito socialista a promessa, de jaez igualmente formal, de um regime coletivo de propriedade, onde todos teriam acesso, consoante sua necessidade, aos frutos do trabalho social; todavia, o que na prática se verifica é a concentração progressiva de todos os ativos econômicos nas mãos do Estado, com o poder real delegado a uma reduzida camada de planejadores e administradores. O pensamento distributivista acredita, portanto, que a atomização das diversas instâncias de propriedade produtiva entre os componentes da comunidade irá garantir um acesso mais equânime aos benefícios oriundos do trabalho; conclui-se, ainda, que quanto maior for a capilarização dos ativos econômicos, maior será não apenas a justiça social, mas também o incentivo para que todos se dediquem de bom grado às atividades produtivas, já que a comunidade perceberá de forma direta e inequívoca os maneios do trabalho.

Buscando um paradigma histórico para o estabelecimento d’uma sociedade genuinamente distributivista no mundo hodierno, Chesterton e Belloc remontam à Idade Média: em sua encomiástica concepção da civilização católica, defendem, com efeito, uma filosofia da História que celebra a Idade Média pela abolição da escravatura; pela ampla difusão da propriedade através do povo; por um significativo grau de liberdade individual; e também pelo florescimento do ensino, das artes, da filosofia e da literatura, que fez a Europa emergir do caos desencadeado pela queda do Império Romano do Ocidente; assim sendo, ambos se debruçam sobre a história do período, de modo a identificar seus traços mais emblemáticos; e uma das características a que nossos autores atribuem grande destaque é o facto de que as guildas (corporações de ofício) não raro limitavam a quantidade de propriedade de que cada um podia dispor (por exemplo, limitando o número de empregados), justamente com o fito de evitar a possibilidade de crescimento exagerado de um determinado empreendimento particular, em detrimento dos demais, que poderiam ir à garra. Tal como Aristóteles e o Doutor de Aquino assinalam, se a propriedade privada tem algum objetivo, este é o de assegurar que cada homem e sua família possam levar uma vida digna, servindo à sociedade com os frutos de seu labor; deste modo, se os negócios d’um indivíduo permitem-lhe sustentar condignamente sua família, que direito teria ele de o expandir, eventualmente privando outras pessoas dos instrumentos e recursos necessários ao arrimo de suas respectivas famílias? A consciência cristã medieval cria (e esta é, diga-se de passagem, uma das características axiais de seu ethos) que os indivíduos que se dedicavam à mesma actividade não eram rivais ou competidores, mas sim confrades empenhados de corpo e alma na egrégia lide de providenciar à comunidade bens e serviços necessários; outrossim, como irmãos agregavam-se em corporações, velando pelo bem-estar uns dos outros.

Numa sociedade distributivista, por conseguinte, as pessoas seriam capazes de organizar-se em regime de mutualismo, reunindo-se em cooperativas de produção, comércio e serviço, num sistema onde predominaria a solidariedade como princípio não apenas justo, mas racional e eficaz, de interação humana.

No que concerne à organização social, o distributivismo vê na família trinitária (um homem, uma mulher e uma criança) a unidade mais elementar, a pedra basilar na constituição d'uma sociedade harmoniosa; tal núcleo primordial funcionará como alicerce de unidades familiares mais amplas, multigeracionais e interligadas por laços de consangüinidade, que por sua vez desdobrar-se-ão em comunidades locais, regionais e nacionais, e por fim na ‘família’ humana como um todo. Desta maneira, o modelo de organização econômica proposto por Chesterton e Belloc florescerá a partir da família nuclear, não considerada como mônada estanque e impermeável, mas sim como unidade básica e interdependente da sociedade distributivista; tal concepção é, vale dizer, caudatária da noção de ‘subsidiariedade’ esposada pelo Papa Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno (1931), a qual advoga que qualquer atividade produtiva deve ser levada a efeito pela menor unidade possível, de modo a evitar a concentração do poder nas mãos de poucos agentes. Vê-se aqui, portanto, no seio da concepção distributivista, mais uma vez a racionalidade operacional caminhando de par em par com noções de justiça e virtude, pois é facto patente que unidades produtivas menores são em geral mais ágeis e eficazes que macroestruturas burocráticas, pouco importa se de natureza privada ou estatal.

O distributivismo não privilegia, em matéria de ordenamento político, nenhum dos modelos de constituição do Estado existentes, podendo em tese viger tanto sob regimes monárquicos quanto sob republicanos. É mister salientar, contudo, que a doutrina distributivista não se inclina para qualquer extremismo, rejeitando enfaticamente perspectivas de cunho coletivista ou individualista.

Por fim, há que sublinhar a índole em geral pacifista do pensamento distributivista. Chesterton e Belloc opunham-se ao imperialismo britânico, e ambos particularmente condenaram, nos termos mais acerbos, a segunda guerra contra os boers; não obstante, apoiaram o envolvimento de seu país na I Guerra Mundial, a qual encaravam como justa.

Isto posto, ó supinos confrades, cremos vos ter propiciado, nestes infaustos lustros onde todas as convicções se dissolvem num vórtice caótico de nefárias incertezas, importantes subsídios para a questão mais premente da centúria em que vivemos: a formulação d’uma alternativa concreta para o pesadelo do sistema capitalista.




4 comentários:

Roberto Imbuzeiro Moraes Felinto de Oliveira disse...

Muito bom, estimado Fredón, muito bom mesmo.

Alphonse van Worden disse...

Muito obrigado, confrade, elogio teu é um prêmio! :-)

Unknown disse...

Caro Fredón,

Gostaria de saber se distribuitivismo e subsidiariedade são a mesma coisa ou não.

Grato

Fernando do Livramento Barreto
São Paulo, Brasil

Alphonse van Worden disse...

Grande Fernando!

Não diria que são exatamente a mesma coisa, mas sem dúvida são conceitos análogos: a subsidiariedade estabelece que qualquer atividade produtiva deve ser realizada pela menor unidade possível, assim evitando a concentração da propriedade nas mãos de poucos agentes econômicos; e a perspectiva distributivista, por seu turno, advoga a atomização da propriedade pelo maior número possível de pessoas.

Abs,
Alfredo