Alphonse van Worden - 1750 AD
Desde que o estudioso francês de cinema Alexandre Astruc publicou, em 1949, seu célebre artigo Naissance d'une nouvelle avant-garde : la caméra-stylo, onde advogava a noção de que o cineasta, assim como o escritor ou o pintor, 'escreve', 'pinta' com a câmera; e que François Truffaut, ainda crítico de cinema no Cahiers du Cinéma, desenvolveu a chamada politique des auteurs, enfatizando o papel do diretor como autor, isto é, como responsável pelo produto final que o espectador verá na tela, formou-se uma espécie de consenso crítico a enaltecer quase que exclusivamente autores que possuem uma assinatura formal característica, uma estilística que, de certo modo, enfeixa seus trabalhos num opus coerente: Godard, Dreyer, Resnais, Antonioni, Murnau, Eisenstein, etc.; valorizou-se destarte, cada vez mais, não somente a noção de 'roteiro original', mas sobretudo a perspectiva do cinema como expressão de subjetividade autoral, transcendendo gêneros e parâmetros impostas pelo mercado, ou quaisquer outras instâncias alheias a um labor artístico radicalmente pessoal.
Há, não obstante, grandes cineastas que lograram se destacar mesmo estando agrilhoados às estruturas autoritárias e castradoras do studio system, e que criaram, malgrado talvez por vias mais transversas e erráticas, uma obra cuja envergadura se compara ao trabalho dos diretores supracitados; a meu juízo, quiçá o norte-americano Robert Wise seja o melhor exemplo deste tipo de cineasta, que a princípio se afirma mais como artesão talentoso, como laborioso ourives, que como propriamente entidade criativa autônoma, portadora d'uma centralidade autoral, mas em cuja obra, mesmo sob a capa de uma variedade de gêneros preestabelecidos, é possível perceber a mesma personalidade; a mesma marca registrada; o mesmo vigor artístico, enfim, que encontramos nos diretores mais propriamente 'autorais'.
Do legado de Wise é mister salientar, em primeiro lugar, a assombrosa versatilidade do artesão capaz de lavrar, com igual mestria, materiais de índole narrativa ou formal distinta, para não dizer veramente antípodas; assim sendo, pouquíssimos cineastas foram capazes de produzir verdadeiras obras-primas em tantos gêneros diferentes, da ficção científica (The Day the Earth Stood Still - 1951, um dos sci fi mais cool e formalmente elegantes de todos os tempos, num gênero onde abunda atroz 'cafonália') a dramas noir como Lady of Deceit - 1947, The Set Up - 1949 (cuja seqüência final na luta de boxe é das mais selvagens de todos os tempos) ou Odds Against Tomorrow - 1959 (com uma trama que aborda a questão da tensão racial nos EUA de forma particularmente criativa e surpreendente; de filmes de horror como The Haunting - 1963, uma fita criminosamente subestimada, vera fantasmagoria gótica em compasso de intrincado pesadelo freudiano, ou The Curse of the Cat People - 1944, sibilina seqüência para o também clássico Cat People - 1942, de Val Lewton, aos musicais West Side Story - 1961, que é sem dúvida uma das mais originais e criativas adaptações de material literário clássico que o cinema já viu, e The Sound of Music - 1965, notório sucesso do diretor.
Em segundo lugar, outrossim é forçoso destacar o virtuosismo técnico de Wise, cujos enquadramentos, cenografia e fotografia, caudatários em larga medida do expressionismo alemão e dos delírios barrocos de Orson Welles, são via de regra impecáveis, mormente em seus filmes em P&B, onde a câmara, como se finíssimo estilo de bambu nas mãos de um calígrafo nipônico fosse, desenha na tela caligramas e arabescos de requintada fatura, aspergindo silhuetas e sombras que não seriam indignos das diáfanas texturas d'um Shubun ou d'um Sesshu, tal como podemos admirar, por exemplo, no esplêndido The Haunting, com espectros sutilmente sugeridos pela geometria labiríntica de sua hábil montagem ; e nas obras em cor, ainda que parte da excelência formal d'outrora tenha se perdido, a beleza e precisão dos enquadramentos manteve-se imaculada, o que pode ser constatado, por exemplo, na arrojada composição visual de West Side Story, a celebrar os ritmos e circunvoluções estratosféricas da dança moderna.
Por fim, há que recordar o artista que, mesmo sob a impiedosa égide de uma indústria voraz e multitentacular, logrou imprimir às suas obras um cariz humanista e libertário, sempre a exaltar, d'uma forma ou de outra, a inebriante aventura da liberdade humana, traço a meu ver recorrente em toda arte que se pretende digna de ser lembrada. A esse respeito, destaco Wise por me parecer importante sublinhar a possibilidade de obter resultados de alto nível mesmo sob o tacão d’uma estrutura avessa à criatividade e à liberdade; trata-se, creio, de uma questão esquecida por muitos artistas, que ficam a choramingar por não desfrutarem de 'condições ideais' para criar, convenientemente olvidando-se de que é possível fazer arte mesmo nas condições mais adversas, quer do ponto vista político, quer do comercial.
Desde que o estudioso francês de cinema Alexandre Astruc publicou, em 1949, seu célebre artigo Naissance d'une nouvelle avant-garde : la caméra-stylo, onde advogava a noção de que o cineasta, assim como o escritor ou o pintor, 'escreve', 'pinta' com a câmera; e que François Truffaut, ainda crítico de cinema no Cahiers du Cinéma, desenvolveu a chamada politique des auteurs, enfatizando o papel do diretor como autor, isto é, como responsável pelo produto final que o espectador verá na tela, formou-se uma espécie de consenso crítico a enaltecer quase que exclusivamente autores que possuem uma assinatura formal característica, uma estilística que, de certo modo, enfeixa seus trabalhos num opus coerente: Godard, Dreyer, Resnais, Antonioni, Murnau, Eisenstein, etc.; valorizou-se destarte, cada vez mais, não somente a noção de 'roteiro original', mas sobretudo a perspectiva do cinema como expressão de subjetividade autoral, transcendendo gêneros e parâmetros impostas pelo mercado, ou quaisquer outras instâncias alheias a um labor artístico radicalmente pessoal.
Há, não obstante, grandes cineastas que lograram se destacar mesmo estando agrilhoados às estruturas autoritárias e castradoras do studio system, e que criaram, malgrado talvez por vias mais transversas e erráticas, uma obra cuja envergadura se compara ao trabalho dos diretores supracitados; a meu juízo, quiçá o norte-americano Robert Wise seja o melhor exemplo deste tipo de cineasta, que a princípio se afirma mais como artesão talentoso, como laborioso ourives, que como propriamente entidade criativa autônoma, portadora d'uma centralidade autoral, mas em cuja obra, mesmo sob a capa de uma variedade de gêneros preestabelecidos, é possível perceber a mesma personalidade; a mesma marca registrada; o mesmo vigor artístico, enfim, que encontramos nos diretores mais propriamente 'autorais'.
Do legado de Wise é mister salientar, em primeiro lugar, a assombrosa versatilidade do artesão capaz de lavrar, com igual mestria, materiais de índole narrativa ou formal distinta, para não dizer veramente antípodas; assim sendo, pouquíssimos cineastas foram capazes de produzir verdadeiras obras-primas em tantos gêneros diferentes, da ficção científica (The Day the Earth Stood Still - 1951, um dos sci fi mais cool e formalmente elegantes de todos os tempos, num gênero onde abunda atroz 'cafonália') a dramas noir como Lady of Deceit - 1947, The Set Up - 1949 (cuja seqüência final na luta de boxe é das mais selvagens de todos os tempos) ou Odds Against Tomorrow - 1959 (com uma trama que aborda a questão da tensão racial nos EUA de forma particularmente criativa e surpreendente; de filmes de horror como The Haunting - 1963, uma fita criminosamente subestimada, vera fantasmagoria gótica em compasso de intrincado pesadelo freudiano, ou The Curse of the Cat People - 1944, sibilina seqüência para o também clássico Cat People - 1942, de Val Lewton, aos musicais West Side Story - 1961, que é sem dúvida uma das mais originais e criativas adaptações de material literário clássico que o cinema já viu, e The Sound of Music - 1965, notório sucesso do diretor.
Em segundo lugar, outrossim é forçoso destacar o virtuosismo técnico de Wise, cujos enquadramentos, cenografia e fotografia, caudatários em larga medida do expressionismo alemão e dos delírios barrocos de Orson Welles, são via de regra impecáveis, mormente em seus filmes em P&B, onde a câmara, como se finíssimo estilo de bambu nas mãos de um calígrafo nipônico fosse, desenha na tela caligramas e arabescos de requintada fatura, aspergindo silhuetas e sombras que não seriam indignos das diáfanas texturas d'um Shubun ou d'um Sesshu, tal como podemos admirar, por exemplo, no esplêndido The Haunting, com espectros sutilmente sugeridos pela geometria labiríntica de sua hábil montagem ; e nas obras em cor, ainda que parte da excelência formal d'outrora tenha se perdido, a beleza e precisão dos enquadramentos manteve-se imaculada, o que pode ser constatado, por exemplo, na arrojada composição visual de West Side Story, a celebrar os ritmos e circunvoluções estratosféricas da dança moderna.
Por fim, há que recordar o artista que, mesmo sob a impiedosa égide de uma indústria voraz e multitentacular, logrou imprimir às suas obras um cariz humanista e libertário, sempre a exaltar, d'uma forma ou de outra, a inebriante aventura da liberdade humana, traço a meu ver recorrente em toda arte que se pretende digna de ser lembrada. A esse respeito, destaco Wise por me parecer importante sublinhar a possibilidade de obter resultados de alto nível mesmo sob o tacão d’uma estrutura avessa à criatividade e à liberdade; trata-se, creio, de uma questão esquecida por muitos artistas, que ficam a choramingar por não desfrutarem de 'condições ideais' para criar, convenientemente olvidando-se de que é possível fazer arte mesmo nas condições mais adversas, quer do ponto vista político, quer do comercial.