Alphonse van Worden - 1750 AD
O expressionismo alemão é uma cultura de crise, reflexo do profundo desalento espiritual gestado nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. A face da morte, estampada nos rostos de milhões de jovens precocemente ceifados, despertou os sentimentos de terror, misticismo e magia, adormecidos nas mais recônditas paragens da alma alemã. A certeza positiva dos sonhos de glória do Império cedeu espaço à sombra da derrota, da humilhação e do desespero. O renascimento do horror foi, pois, o fermento ideal para o surgimento do espírito expressionista, fim de todas as ilusões de poder alimentadas pela lucidez contagiante da era bismarckeana. Povoado de incertezas e sombras, surgia, inclemente, um novo mundo, e o movimento expressionista, apoteose do indistinto e do vago, se transformaria na estética perfeita para esta realidade atroz.
Como adverte a escritora alemã Lotte H. Eisner, a principal historiadora do cinema alemão, "não é uma tarefa fácil penetrar na fraseologia expressionista alemã". Joga-se com expressões vagas, forjam-se cadeias de palavras combinadas ao acaso, procura-se o significado ‘metafísico’ das palavras, inventam-se alegorias místicas, desprovidas de lógica e sentido, que são virtualmente intraduzíveis. Esta linguagem, carregada de símbolos, insinuações e metáforas permanece propositadamente obscura, sendo de acesso sumamente difícil para as línguas e mentalidades latinas. Pode-se afirmar, portanto, que aqueles que não estão familiarizados com o idioma alemão, compreenderão melhor o expressionismo através da música, das artes plásticas e do cinema. A tradução cinematográfica da alma e da estética do expressionismo germânico é o objetivo deste trabalho. Antes, todavia, é preciso examinar em que consiste a fenomenologia expressionista.
O expressionismo, declara o teórico alemão Kasimir Edschmid, reage contra o "estilhaçamento atômico" do impressionismo, que reflete as cintilações equívocas da natureza e seus matizes efêmeros; luta, ao mesmo tempo, contra o naturalismo e seu objetivo mesquinho: fotografar a natureza ou a vida cotidiana. A reprodução da realidade tal como ela existe é inútil e desnecessária, e talvez tenha se tornado impossível.
O expressionista já não vê, mas tem
visões. Ou seja, a realidade não é mais contemplada segundo os dados dos sentidos, mas o homem consegue tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes do Real. Segundo Edschmid, a cadeia de fatos já não mais existe, existindo tão somente a visão interior que provocam. É preciso aprofundar sua essência, discernir o que há além de sua forma acidental. É o artista que, trespassando-os, se apodera da forma real que há por trás deles, e permite o conhecimento de sua essência verdadeira. O artista expressionista, em lugar de um efeito passageiro, procura o significado eterno dos fatos e objetos. Devemos - dizem os expressionistas -, nos desligar da natureza e tentar resgatar a "expressão mais expressiva de um objeto", pois somente assim sua aura visível pode ser atravessada.
A vida humana, destaca Edschmid, ultrapassa o indivíduo e participa da vida do universo. Nosso coração bate no mesmo ritmo do cosmos. Na dinâmica do expressionismo, o homem deixa de ser um elemento ligado a uma moral, a uma obrigação social, a uma família, a uma moral religiosa, a uma sociedade. A vida do expressionista escapa à lógica financeira do burguês e à força das causalidades. Livre de todo o mesquinho remorso burguês, não admitindo senão o livre jogo de sua sensibilidade, ele abandona-se aos impulsos de sua vontade. A imagem do mundo se reflete no expressionista em sua pureza primitiva, a realidade é subjetiva e existe apenas em nós. O expressionismo significa o império da subjetividade levada a extremos, a afirmação de um Eu totalitário e absoluto, que forja o mundo a sua imagem e semelhança. Na concepção expressionista, o intelecto tem a primazia. Edschmid proclama a "ditadura do espírito, o qual tem a missão de moldar a matéria". É fundamental ressaltar a "atitude da vontade construtiva", do eu que molda o real. É, portanto, sintomático que a literatura expressionista esteja pejada de expressões tais como
tensão interior,
força de expansão ou
imenso acúmulo de concentração criadora.
É preciso tratar ainda de outro ponto do expressionismo, a questão da abstração da realidade. O historiador Wilhelm Worringer, em sua tese de doutorado publicada em 1907,
Abstraktion und Einfühlung, antecipa muitos preceitos do expressionismo, o que prova a que ponto esses axiomas estéticos estão próximos da
weltanschauung alemã.
A abstração, argumenta Worringer, nasce da grande inquietação que experimenta o homem aterrorizado pelos fenômenos que constata a seu redor e dos quais é incapaz de decifrar as relações, os misteriosos contrapontos. Essa inquietação primordial diante do ilimitado faz com que o homem tenha o desejo de ‘arrancar’ o objeto de seu contexto original, libertá-lo de sua teia de relações com os demais objetos, com o objetivo de, tornando-o
único, atingir seu absoluto. O homem nórdico, consoante tal perspectiva, sempre sentirá a presença de "um véu entre ele e a natureza", e por isso aspira a uma arte abstrata. Os povos germânicos, atormentados por uma discordância interior, que encontra obstáculos quase insuperáveis, precisam desta patética agonia que conduz à enigmática "animação do inorgânico", tema que, aliás, é central na produção literária do romantismo alemão, e que pode ser visto em alguns dos melhores relatos de E.T.A Hoffmann, tais como
O Homem de Areia e
Os Autômatos, bem como desempenhará um papel fundamental em um filme como
O Gabinete do Dr. Caligari, como mais tarde veremos. A energia vital presente no inorgânico, o estado de animação suspensa em que se encontram os objetos, são o caminho para atingir a essência de seu absoluto, que independe do estabelecimento de quaisquer relações transitórias.
Worringer considera que o homem mediterrâneo, tão perfeitamente harmônico, jamais conhecerá esse êxtase da "abstração expressiva". Edschmid, por seu turno, enfatiza ainda que tudo deve permanecer na condição de esboço e vibrar de tensão imanente, para que sejam salvaguardadas a efervescência e a excitação perpétuas. Entende-se, pois, nesse contexto, o sentido profundo da notável sentença que diz que “o homem já não vê, mas tem visões”. O expressionista não vê a realidade como fotografia da natureza, mas sim a percebe através de
visões que, ainda que vagas e indistintas, desvelam o absoluto que está por trás da realidade sensível, o que independe de relações acidentais.
Analisaremos doravante o filme que é, provavelmente, a obra mais importante da cinematografia expressionista,
O Gabinete do Dr. Caligari, que exemplifica à perfeição os postulados básicos da estética e do espírito expressionistas.
O Gabinete do Dr. Caligari
(
Das Kabinett des Dr. Caligari, 1919)
O pendor para contrastes violentos, bem como a nostalgia do
chiaroscuro e das sombras, da noite indistinta, da névoa sinistra, inata aos alemães, encontraram na arte cinematográfica um modo de expressão ideal. As visões criadas por um estado de alma sombrio e atormentado podem ser transpostas com rara fidelidade para o cinema, que lhes fornece um suporte a um só tempo concreto e irreal.
Nas principais obras do cinema expressionista, os devaneios românticos de Hoffmann, Chamisso ou Tieck, combinadas à abstração radical da realidade sensível antes mencionada por Edschmid e Worringer, encontraram talvez sua tradução mais perfeita, mais acabada, e, sem dúvida, mais assombrosa. Para a alma torturada da Alemanha de então, tais filmes, repletos de evocações fúnebres, de horrores, de uma atmosfera de pesadelo, pareciam o reflexo de sua imagem desfigurada e agiam como uma espécie de redenção espiritual.
O Gabinete do Dr. Caligari, dirigido por Robert Wiene, é uma representação brilhante deste painel de sentimentos contraditórios e terrificantes que envolveram a Alemanha após o término da I Grande Guerra. As perturbadoras experiências do roteirista Carl Mayer com psiquiatras durante a Guerra, e o testemunho real de Hans Janowitz, o outro roteirista, a respeito do assassinato não resolvido de uma moça numa Feira de Variedades, foram o material básico que norteou a criação do roteiro do filme. A dupla de roteiristas pretendia, de início, fazer uma crítica mais ou menos realista do absurdo de qualquer autoridade social. O produtor Erich Pommer, que aceitou as idéias de Mayer e Janowitz sobre a execução dos cenários em tela pintada, medida que barateava os custos do filme, não foi tão receptivo quanto ao roteiro original, de conotações políticas perigosas. Foram acrescentados à história um prólogo e um epílogo, que, sob um certo ponto de vista, reduziam as denúncias de Mayer e Janowitz às elucubrações obscuras de uma mente doente. Alguns relatos dão conta de que os roteiristas ficaram extremamente insatisfeitos com as mudanças, interpretação confirmada por Siegfried Kracauer, um renomado historiador do cinema alemão, em seu livro
De Caligari a Hitler. Entretanto, é possível dizer que as alterações acabaram, por vias transversas, contribuindo decisivamente para a fantasmagoria expressionista que emana da fita. O que seria o olhar naturalista de um homem sobre o problema da autoridade, transformou-se nas visões subjetivas e abstratas de um louco, que desvela o Real através da essência absoluta escondida pelas ‘névoas’ da visão objetiva. O que interessa ao expressionista não é a manifestação ‘realista’ particular de um evento, mas o caráter eterno deste evento, que somente a abstração do sensível pode descobrir. Os aparentes delírios de um ‘louco’ provavelmente acabaram por revelar o absurdo da autoridade de uma maneira muito mais incisiva do que por intermédio de uma acusação, digamos, "ideológica". O trabalho do diretor de produção Rudolf Meinert, do cenógrafo Herman Warm, e dos pintores contratados por ele, Walter Röhrig e Walter Reimann, consolidou definitivamente a concepção radicalmente expressionista que conduz o filme.
Passemos à apresentação do enredo: o filme abre com dois homens muito pálidos, um moço e um mais velho, sentados no banco de um parque. Eles trocam entre si relatos insólitos. O mais jovem começa a contar uma história fantástica ocorrida na pequena vila medieval de Holstenwall. Somos transportados então para um ominoso vilarejo, onde acompanhamos os passos vacilantes de um homem estranho, trajando uma capa negra e uma cartola. É o Doutor Caligari (Werner Krauss). Ele se encaminha para a prefeitura, onde consegue autorização para realizar seu espetáculo na feira de variedades da cidade. O
show consiste na apresentação das habilidades psíquicas de Cesare (Conrad Veidt), um sonâmbulo de corpo esguio, vestido com uma malha negra, e que vive em estado de animação suspensa. Na mesma noite, um funcionário público de Holstenwall é esfaqueado até a morte em sua cama.
No dia seguinte, dois jovens amigos, Francis (Friedrich Feher) e Alan (Hans Heinz von Twardowski), se dirigem para a feira à procura de diversão. Atraídos pela ruidosa propaganda de Caligari, acabam por entrar em sua tenda. Um público compacto observa o palco, que exibe uma espécie de caixão que abriga Cesare. Caligari proclama que o sonâmbulo é capaz de prever o futuro, pedindo que voluntários façam perguntas. Imediatamente, Alan se levanta e pergunta: "até quando vou viver?" Cesare, sem hesitação, responde: "até a madrugada".
Consternados, os amigos se retiram e encontram a bela Jane (Lil Dagover), pela qual ambos estão apaixonados, e ficam um pouco mais aliviados. Na hora prevista, todavia, a profecia se cumpre: Cesare invade a casa de Alan e o mata a facadas. Pela manhã, Francis descobre o crime e, indignado, vai até a delegacia da cidade acompanhado pelo pai de Jane (Rudolf Lettinger). A polícia não concede muito crédito às suspeitas do jovem a respeito de Caligari e Cesare, mas decide investigar o caso. Nesse meio tempo, o responsável pela morte do funcionário público (Rudolf Klein-Rogge, consagrado posteriormente por suas sucessivas encarnações como Dr. Mabuse, se calhar o mais emblemático personagem do expressionismo alemão) é capturado. Para a polícia, os dois crimes estão resolvidos: o elemento detido é o autor de ambos. Entretanto, Klein-Rogge admite apenas o primeiro crime.
Indo a procura de Francis e de seu pai, Jane encontra Caligari, que a convida a entrar em sua tenda. Aterrada com o olhar lancinante de Cesare, ela foge em uma carreira desabalada. Algumas cenas mais tarde, o zumbi vai até a casa de Jane e se dirige para sua cama portando uma longa adaga. Cesare, no entanto, extasiado pela beleza da moça, hesita e acaba por desistir de seu intento. Nesse momento, ela acorda e grita de pavor. Cesare agarra Jane e a carrega através dos telhados recortados e vielas tortuosas da vila. Perseguido pelos habitantes de Holstenwall, o sonâmbulo larga sua presa, e, pouco depois, exausto, cai em um poço e morre.
Caligari foge da cidade, e Francis sai em seu encalço. A perseguição o conduz a um asilo de doentes mentais, onde perde a trilha. Ele pergunta aos funcionários do hospital sobre a existência de algum paciente chamado Caligari, que é, no entanto, referido como o diretor do asilo. Francis entra no escritório do médico e descobre que realmente se trata de Caligari. O jovem convence outros médicos de que sua história é verdadeira. À noite, o grupo resolve então investigar os papéis de Caligari e descobre um diário com suas anotações, onde o médico detalha o seu plano maligno.
Caligari estava obcecado com o trabalho de um místico italiano do século XVIII com o mesmo nome, com o objetivo de provar que a mente de um sonâmbulo poderia ser controlada por outros. Quando um paciente com essa condição é trazido para o asilo, o médico decide tornar-se Caligari e completar sua missão. A investigação de Francis e de seus aliados é interrompida por um morador da vila, que lhes traz a notícia de que o corpo de Cesare foi encontrado. Na manhã seguinte, Francis e o grupo de médicos apresenta o corpo do sonâmbulo à Caligari. Enlouquecido de dor, Caligari se precipita sobre o corpo de seu discípulo, e, furioso, ataca o grupo. Os enfermeiros conseguem prende-lo em uma camisa-de-força, e Caligari é levado para uma cela.
Somos conduzidos, então, novamente para a cena de abertura, enquanto Francis termina de contar sua história para o velho. Torna-se patente que o banco onde ambos estão sentados está localizado no pátio do asilo de loucos. Jane está sentada olhando fixamente para o céu, e Cesare pode ser visto caminhando entre outros internos, segurando gentilmente uma flor em sua mão. Das arcadas do prédio sai então Caligari, diretor do asilo. Quando Francis o contempla, se levanta sobressaltado e tenta atacar o médico gritando: "ele é Caligari!!". Rapidamente, Francis e dominado pelos enfermeiros e posto numa camisa-de-força. Caligari, examinando o paciente, afirma: "finalmente eu entendi a natureza desta insanidade. Ele pensa que sou o antigo místico Caligari. Agora vejo como poderei traze-lo de volta para a sanidade", com o rosto se contorcendo num esgar sinistro, num final inquietante, e sobremaneira ambíguo.
A seqüência final do filme, que, de acordo com o ponto de vista de Kracauer e outros estudiosos, reduziria a trama aos delírios absurdos de um louco, talvez não tenha sido integralmente compreendida. Caligari não deixa de ser um tirano enlouquecido pelo poder apenas porque é visto como tal por um insano. A obsessão ‘raskolnikoviana’ de cometer o crime perfeito, que anima Caligari, é desmascarada pela mente que vive na irrealidade. A tirania de Caligari se reafirma através das visões subjetivas de Francis, que, rejeitando o discurso da normalidade naturalista do encadeamento lógico, revela o absoluto cruel e desumano do médico. O desespero metafísico do expressionista reside justamente no fato de que seu discurso não pode mais ser articulado racionalmente e, por causa disso, é apenas parcialmente decodificável. Contudo, através das névoas do vago, do indistinto, da abstração irreal da realidade, Francis atinge o âmago de Caligari. Sua narrativa 'fictícia' pode ser entendida como uma profunda intuição profética do destino, característica marcante da visão de mundo expressionista.
A criação desta atmosfera de pesadelo jamais teria sido possível, contudo, sem o suporte decisivo de uma bem resolvida concepção estética expressionista. Em Caligari, a cenografia expressionista conseguiu, com rara felicidade, evocar a fisionomia latente de uma pequena aldeia medieval, com ruelas tortuosas e escuras, passagens estreitas espremidas entre casas arruinadas. As linhas e planos tortuosos, oblíquos e abruptos do cenário provocam no público um efeito muito diverso do que o que seria logrado por uma composição visual harmônica. Os planos são inclinados, janelas são mais largas na parte de cima do que na base, portas deslocadas se abrem alucinadamente. A soma destas imagens expressionistas representa um mundo ‘interior’, uma construção mental que nega a realidade objetiva. A visão de perspectivas falseadas e imprevisíveis, de formas distorcidas, e a consciente intenção de evitar linhas verticais e horizontais, despertam no espectador os sentimentos de insegurança, inquietação e desconforto. Os figurinos usados pelos atores, os móveis e os demais objetos cênicos se incorporam fielmente a esta concepção. As personagens, por conseguinte, movem-se num universo que lhes é sempre incômodo e traiçoeiro, à exceção de Caligari e Cesare, mentores deste mundo. Diante da exaltação patética que paira sobre o cenário sintético de Caligari, o estilhaçamento das certezas psíquicas parece inevitável: as casas apenas esboçadas no viés de uma ruela parecem de fato sacudidas por uma extraordinária vida interior.
Eisner afirma que esta sensação não advém apenas do insólito dom de animar os objetos que possuem os alemães. Na sintaxe do idioma alemão, os objetos têm vida ativa, empregando-se, para falar deles, verbos e adjetivos que servem para os seres vivos. Muito antes do expressionismo, vale dizer, a animação do inorgânico já se fazia presente como tema literário. Em 1879, o escritor alemão Friedrich Vischer, nos revela Eisner, em seu romance
Auch Einer fala com muita seriedade da "perfídia do objeto", que espreita com alegria maligna nossos esforços para domina-lo. Na radicalização deste processo levada a cabo pelo expressionismo, a misteriosa agitação do inorgânico se agiganta e passa a misturar pessoas e objetos. No romance
O Golem (1912), referido também por Eisner, obra de Gustav Meyrink, as casas do gueto de Praga parecem adquirir uma vida cruel e hostil ao anoitecer, "quando a névoa das noites de outono estagna nas ruas e vela seu imperceptível esgar". Ao cair do sol as construções, que durante o dia haviam cedido energia vital a seus débeis habitantes, reclamam com juros a vida dada a seus moradores irreais: "as paredes retesam-se como faces dissimuladas, cheias de indizível maldade; as portas tornam-se bocas escancaradas e gargantas capazes de lançar apelos estridentes".
As imagens de Caligari são como reflexos em espelhos deformantes. Todas as expectativas são invertidas. A fotografia, assumida por Willy Rameister, de um claro/escuro de contrastes violentos, acentua ainda mais esse processo de inversão. A abstração solipsista da mente expressionista é retratada por uma cenografia de perspectivas inusitadas e inviesadas, fortemente anti-realistas, numa intenção estética onírica e sobrenatural. É instrutivo o cotejo entre clássicos do cinema de horror norte-americano como
Frankenstein, de James Whale, ou o primeiro
Dracula, de Tod Browning, ambos de 1931, com as obras-primas do expressionismo alemão. Por que, como disse um crítico de cinema americano, o Dracula de Browning se assemelha a um desenho de Walt Disney se comparado a um filme como o
Caligari ou o
Nosferatu (1922) de Friedrich Wilhelm Murnau? Por que, como disse o crítico húngaro Bela Balázs a respeito filme de Murnau, sentimos a "emanação de sopros glaciais do além"? A resposta reside no conservadorismo estético do primeiro exemplo e na ousadia formal dos dois filmes alemães. A estética do cinema de horror americano dos anos 30, convencional, realista e acadêmica, jamais conseguiu provocar a mesma sorte de sensações aterrorizantes que a espectral estética expressionista. Retornando a termos anteriormente desenvolvidos: O Dracula de Browning vê e o Caligari tem visões. A tendência do expressionismo em ver a realidade como reflexos deformados no espelho do inconsciente, já pode ser, inclusive, encontrada em certos autores do romantismo alemão. Conforme exemplifica Eisner, Tieck, em seu famoso romance-de-formação
William Lowell, descreve a impressão de um universo flutuante e impreciso: "as ruas me aparecem então como fileiras de casas disformes, com moradores loucos".
A interpretação dos atores é também determinada pela estilização expressionista do cenário, fato notável, sobretudo, nas magníficas atuações de Krauss como Caligari e de Veidt como Cesare, que comportam-se como se pertencessem a esse mundo estranho. Suas ações parecem ser comandadas por forças ocultas que controlam seu destino. Seres da sombra, Cesare e Caligari vivem num universo paralelo, onde os dados objetivos da realidade não fazem mais sentido. As atitudes intermediárias, os movimentos naturais são evitados, substituídos por gestos escarpados, abruptos, que permanecem bruscos como os ângulos quebrados do cenário. Veidt se move lentamente, como um autômato, deslizando pelas paredes, enquanto Krauss está sempre curvado, em ângulo agudo, e caminha em passos curtos e precisos, acentuados pelo uso de uma bengala. As expressões faciais habituais são trocadas por um maneirismo cheio de significados místicos. As personagens de Cesare e Caligari são perfeitamente adequadas à concepção expressionista: o sonâmbulo, destituído de toda individualidade, isolado da vida cotidiana, criatura abstrata do inconsciente, mata sem motivo e lógica, enquanto seu mestre, que não possui sombra de escrúpulo humano, se considera acima do bem e do mal, e, implacável, é motivado por desígnios obscuros e insondáveis.
O cinema expressionista alemão, em sua estetização radical dos paradigmas espirituais do expressionismo, atingiu um grau máximo de abstração do universo real, de desconstrução da realidade sensorial e dos dados objetivos da consciência. E os elementos essenciais do expressionismo só conseguiram sua realização definitiva por intermédio de uma nova arte, o domínio da imagem em movimento, que deu vida a um mundo paralelo, povoado por visões subjetivas, misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes sobre uma nova era, a aurora da modernidade.