Alphonse van Worden - 1750 AD
Hoje este vosso inditoso confrade viveu uma das experiências mais dolorosamente amargas de seu já longevo périplo sobre a Terra; não obstante, revestiu-se o episódio outrossim d'um cariz melancolicamente poético, conforme os senhores verão.
Vamos lá: perambulava eu sem rumo definido por um aprazível reduto da alta burguesia carioca (Shopping Leblon) quando súbito senti um leve abraço em torno de meus joelhos. Voltei-me para baixo, surpreso, e contemplei os olhinhos vivazes e travessos de um anjinho barroco de della Robbia animado pelo sopro divino, ou então um gracioso zéfiro renascentista emanado d'uma tela de Botticelli. Era uma encantadora garotinha loira d'uns dois anos de idade, ricamente ataviada. Agachei-me para falar com ela, e a pequenina gritou, com sua vozinha argentina: "papai, papai!".
Instantes depois, outra voz fez-se ouvir, num tom de amável, complacente e divertida admoestação: "Vitória querida, não é o papai não, meu anjo!". Voltei-me para a recém-chegada e o que vi foi seguramente uma das mais belas mulheres em que já tive a (des)ventura de pôr os olhos nesta vida: uma verdadeira valquíria encarnada, Bibi Andersson rediviva, vênus resplendente, iridescente e refulgente em seu porte de sílfide, oceano de longos cabelos platinados, semblante radiante e impecável elegância; atrás dela, uma criada, num irrepreensível uniforme negro com rendas brancas, trazia o filhinho menor num carrinho de bebê.
A moça (que deve andar pelos seus 30, 35 anos), ligeiramente atrapalhada com sua constelação de sacolas e embrulhos, sorriu para mim com seus dentes imaculados e disse: "você me desculpe, ela é assim mesmo, não para quieta!", e contemplando meu rosto com certo espanto, continuou: "nossa, mas você realmente é muito parecido com o meu marido, impressionante! Idade, rosto, porte, altura, que engraçado! E ainda por cima eu tinha dito a ela que o pai já estava chegando para apanhar a gente haha!". Tudo em seu rosto e modo de ser exalava uma felicidade serena, altaneira e convicta, a felicidade daqueles que têm plena certeza de onde vieram e sabem com absoluta segurança para onde irão, a felicidade de quem só poderia ser mãe d'uma VITÓRIA, em todos os sentidos possíveis e concebíveis.
Obviamente afaguei o rosto da criança, proferi algumas amabilidades protocolares e foi isso, despedimo-nos, aquela linda e feliz família rumando ao encontro do pai e marido, e eu... eu... Deus meu, que tenho feito de minha vida? Pus-me então a pensar em meu desconhecido e privilegiado doppelgänger: que teria feito ele, por exemplo, para merecer aquela plêiade de arcanjos, da valquíria digna d'uma saga nórdica à bela prole áurea? Teria ele nascido em 'berço esplêndido', desfrutado das prerrogativas e oportunidades que tal condição proporciona? Ou, pelo contrário, na intricada e complexa trama que compõe a diáfana tule da vida, ele soube entretecer os fios certos e desatar os nós cegos, ao passo que eu tudo emaranhei? Difícil saber... o fato é que aquele afortunado homem era aguardado alegremente por sua maravilhosa família, ao passo que eu... eu... enfim, que importa? QUEM se importa?
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