quinta-feira, agosto 29, 2019

A um venerável mestre, com devoção, carinho e saudade

Alphonse van Worden - 1750 AD

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Segue abaixo uma crônica que escrevi a propósito de meu venerável e mui estimado mestre Fernando Baptista Gonçalves, texto que se reveste de significado 'inda mais importante neste momento em que (oxalá!) inicio minha trajetória como escritor profissional.



















No transcurso de solitário passeio pela Floresta da Tijuca há alguns meses, visitado fui de forma particularmente vívida pela deusa Mnemosine; e na confluência de sentimentos a um só tempo melancólicos e felizes, recordava algumas jornadas de minha infância e mocidade, quando gradativamente minhas reminiscências centraram-se na excepcional figura do professor Fernando Baptista Gonçalves, figura axial em minha trajetória no decorrer do ginásio e do secundário. Notável educador, figura humana de primeiríssima plana, modelo de conduta moral e intelectual, o velho 'Gonça', como carinhosamente era chamado por seus alunos, foi de sobejo o melhor professor que já tive em qualquer nível, magnífico tanto em termos acadêmicos quanto humanos. O amor que tenho à literatura e às artes devo em grande medida aos ensinamentos deste homem notável, que com imensa erudição e flamejante entusiasmo, logrou inculcar-me grande devoção ao que de melhor nossa civilização produziu. No que tange à sua personalidade, foi para mim um verdadeiro modelo de caráter, sempre justo e solidário, bem como, malgrado severo, dono de enorme sensibilidade.

Gonça tinha o admirável hábito de apresentar a seus alunos as obras-primas da música erudita, as quais executava por intermédio de uma vetusta e inesquecível eletrola vermelha. Lembro-me, pois, como se fosse hoje, d'uma determinada vez em que colocou para tocar a "Abertura 1812", de Tchaikovski. Podeis bem imaginar, é claro, como era árdua a tarefa de despertar o interesse de um bando de adolescentes irrequietos pelo rarefeito universo da música erudita, não é mesmo? Pois o saudoso prof. Gonçalves mesmerizou a turma com uma interpretação simplesmente memorável, digna de um ator da Comédie-Française em grande forma: não satisfeito em explicar o contexto artístico e histórico da composição, ele literalmente interpretou-a, ilustrando de modo vívido e contagiante o que cada passagem tencionava evocar. Num espetáculo formidável, inolvidável, saltava ele para lá e para cá, narrando e ilustrando os factos abordados pela peça: "eis o troar dos canhões do Marechal Murat nas colinas de Borodino!"; "agora a vanguarda de Kutuzov está perseguindo o que restou da Grande Arméé!". Ah grandíssimo mestre, lux sapientiae, primus inter pares!!! 

O mui querido Gonça desafortunadamente não mais está entre nós já há muitos lustros, mas continuará sempre vivo no afeto e na memória deste seu eternamente grato discípulo.