quinta-feira, fevereiro 21, 2019

O MONSTRO



Alphonse van Worden - 1750 AD



That is not dead which can eternal lie.
And with strange aeons even death may die

H.P.Lovecraft  (The Nameless City - 1921)



*

Muito do que queria que tivesse acontecido jamais ocorreu; muito do que deveria ter sido, não foi. A grama e os dias de luz sumiram sob prédios e casas em ruínas, dando lugar a noites escuras, cinzas e pó. Aqui não existe mais nada para mim. Só me resta uma tarefa a cumprir antes de partir: tenho uma história para contar. Não me importo se alguém a lerá (se é que ainda haverá alguém para lê-la...); quero apenas contar essa história, pois muito dela eu vi, ouvi e senti. Este é o meu relato, esta é minha vida. Neste relato verto todo o meu ódio, o meu ressentimento, a minha frustração, a minha tristeza e, por fim, a minha indiferença... É preciso, enfim, dizer que o MONSTRO está aqui. 

(...)

E o MONSTRO apareceu. Já não sei precisamente quando, como ou por que, mas tão somente que, certo dia, surgiu o MONSTRO, num cômodo pequeno e escuro de minha casa. Decerto tenho algum vínculo ignoto com o MONSTRO, pois sou obrigada a velar por ele. ELE não fala, não sente, não se move, não ouve, não vê. ELE apenas existe. e em seu mero existir, torna progressivamente mais irreal e tortuosa a minha existência, bem como a de meus filhos. ELE traz consigo um horror mudo, inerte, isto me assusta, me angustia mais que uma grande catástrofe. Tudo está silente, estático, e a convivência com ELE torna-me cada vez mais apática; sinto, por vezes, que talvez tenha sido absorvida por essa criatura. Aos poucos esqueço o gosto da comida, o som da música, e já nem mesmo sei meu próprio nome. Se calhar seria melhor também não falar, sentir, ver ou ouvir, já que assim, quem sabe, estaria sofrendo menos. Não sei por quanto tempo mais eu posso aguentar.

(...)

Minha casa sempre foi muito pacata e ordeira. Todavia, a simples presença do MONSTRO a converteu num abismo de dor, remorso, ódio, exaustão e desespero. E tudo parece emanar do MONSTRO, que dissemina sua danação por cada recanto do que um dia chamei de ‘lar’. Não raro sou acometida por soturnos devaneios, e chego a pensar que tudo se transformará numa ominosa câmara ardente, com o MONSTRO no centro. ELE encolhe paulatinamente, dia após dia; está cada vez mais fraco. Sempre abro a porta do pequeno cômodo na vã esperança de vê-lo morto, mas ELE permanece vivo. Perdi por completo a noção do tempo, pois todos os meus dias se tornaram absolutamente iguais desde que o MONSTRO surgiu. Ele está me dissolvendo. Meus filhos não falam mais comigo, e evitam ao máximo entrar em casa. Exigem que eu faça alguma coisa, que coloque um fim em tudo isso, mas não percebem que isso é impossível; destarte, brigam comigo, acusam-me de ser fraca, como se eu fosse culpada pelo que está acontecendo. “Mate-o!”, eles dizem; mas como fazê-lo? ELE simplesmente permanece vivo, o coração continua batendo, não há como matá-lo. Meus filhos, contudo, não compreendem isso, e sinto-os cada vez mais distantes de mim. Perco, ao fim e ao cabo, o controle sobre minha própria vida essa que agora está atrelada ao destino do MONSTRO. O fim dele será o meu também, pois ele perdurará pulverizando minha mente, até o aniquilamento total de minha consciência. Perco minhas forças, e estou convicta de que o MONSTRO é invencível.

(...)

Um quarto pequenino, mal iluminado; uma cama; um MONSTRO. ELE não provoca medo, mas me deixa paralisada; não provoca horror, mas contemplá-lo é como contemplar o nada, informe matéria sem alma, invólucro inaudito e sem nome, rosto ou expressão. Inefável, inexplicável, incompreensível, assim ELE é. Entretanto, o MONSTRO tem contornos vagamente similares aos de um ser humano. Tem dois lindos olhos verdes que jamais piscam, lábios vermelhos, a pele clara, assim como os parcos fios de cabelos, aparentemente raspados. Não há, contudo, ossos na metade da cabeça, que parece ter sido afundada por um grande traumatismo; seus membros, posteriores e inferiores, são hoje como esquálidas patas d’uma espécie de aracnídeo antediluviano.  Havia, também, um buraco em seu pescoço, que foi revestido por com várias ataduras, posto ser impossível suportar o odor insuportável que exalava do pequeno orifício. O MONSTRO jaz deitado na cama, e não é possível colocá-lo em pé; é como se fosse um Cristo putrefato, crucificado no lenho da abominação; creio que está sempre a dormir, sem jamais se mexer. De longe é possível ouvir as batidas do seu coração. Definha aceleradamente, e está ficando raquítico. Não existem mais vestígios de musculatura, a apenas uma tênue camada de pele reveste os ossos. De início, jorrava secreções através do orifício em seu pescoço, empesteando as paredes do cômodo. Com as ataduras, logrei controlar as secreções; no entanto, escaras tenebrosas começaram a aparecer, grandes e profundas feridas, que jamais cicatrizam. Ele goteja sangue pelo cômodo.  Apodrece progressivamente, se alguém tivesse coragem de tocá-lo, perceberia que sua pele está tão fina e ressecada que, caso a puxassem, poderiam arrancar num só movimento todo o tecido dele. O cheio do seu sangue é álacre, a textura da sua carne, que em muitos pontos está à mostra, é semelhante a de um pedaço de carne podre. As moscas estão rondando o quarto, mas todas que se aventuram a provar de sua carne morrem de imediato. São legiões de moscas, que fenecem após um derradeiro instante de deleite com essa carne amaldiçoada! À partida o MONSTRO urinava e defecava; agora, todavia, já não excreta mais nada. Está morto em vida, cada vez mais morto, mas sei que jamais perecerá.

(...)

Nos últimos dias, vejo na TV, com absoluta indiferença, notícias sobre um estranho fenômeno: em todo o planeta, centenas de milhares de pessoas estão morrendo, sem qualquer razão aparente.  Cientistas em pânico creem tratar-se d’algum vírus desconhecido e letal, ao passo que os religiosos dizem que é o Apocalipse. Levo um bom tempo até perceber que meus filhos também estão mortos, Como? Por quê? Ninguém sabe. É realmente curioso... julgava-os saudáveis, ao menos aparentemente. Em diabólica epifania, constato que tudo isto está relacionado à presença do MONSTRO. Mesmo no limite de minhas forças, é preciso fazer um derradeiro esforço para matá-lo.  

(...)

Cidades, regiões, países, continentes inteiros, estão desabitados. E não há explicações.

(...)

Em minha cidade, apenas eu e o MONSTRO continuamos vivos. Fiz o possível: por incontáveis horas tentei sufocá-lo com um travesseiro, afogá-lo na banheira, e então  ateei fogo ao MONSTRO. Mas nada surtiu efeito. O coração continuar a bater como se nada tivesse acontecido. ELE não reage a nada, e nem mesmo a morte pode atingi-lo. É hoje tão somente um pedaço carbonizado de carne, e ainda assim, prossegue respirando. Numa última e desesperada tentativa de destruí-lo, apanhei um canivete e perfurei, até ficar com os braços dormentes, a superfície desprovida de ossos no crânio do MONSTRO. Retalhei o que pude, e me surpreendi ao verificar que não havia absolutamente mais nada ali. O MONSTRO não tinha qualquer resquício de massa cerebral, estava vazio. Admiti enfim, aterrada, que qualquer tentativa de assassiná-lo era inútil. O MONSTRO existe, inexoravelmente EXISTE, e não há nada que se possa fazer.  

O MONSTRO veio até nós, e consigo trouxe nosso fim.  Só o MONSTRO permanece, e a Terra não pode suportar sua presença.

(…)

Os últimos remanescentes da Humanidade desaparecem; a internet já não funciona, tampouco recebo qualquer transmissão de rádio ou TV; estou isolada e porventura todos já morreram.

(...)

Perambulo sem rumo por estradas desertas. Logo o Universo inteiro irá sucumbir, pois o MONSTRO matou a própria morte, e deseja, flutuando no vórtice da obliteração total, saborear solitariamente seu triunfo. É o reflexo crepuscular, o blasfemo legado de incontáveis civilizações, de milênios de História. Nada mais ‘será’ no crepúsculo de todas as eras... Mas ELE existe...  EXISTE, EXISTE,  EXISTE,  EXISTE, EXISTE, EXISTE, EXISTE,  EXISTE,  EXISTE, EXISTE,  EXISTE, EXISTE, EXISTE........ 

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