terça-feira, novembro 01, 2011

A propósito dos gibelinos e do advento da Reforma protestante.


























*O propósito desta breve nota é demonstrar, em linhas gerais, que a perspectiva advogada pelo movimento gibelino, caso prevalecente, teria salvo a Cristandade do flagelo que a Reforma representou; ademais, trata-se d'uma espécie de proêmio para um escrito de maior fôlego a respeito do célebre tratado De Monarchia (1313), onde o insigne poeta florentino Dante Alighieri sintetiza os aspectos fulcrais do catolicismo gibelino.

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 Como de sobejo o sabeis, excelsos irmãos d'armas, a degeneração do princípio de potestas em plenitude potestatis foi justamente o foco da tensão progressiva que se desenvolveu, a partir do século XI, entre a Igreja e o Sacro Império (com a 'Questão das Investiduras'), culminando no século XIV, durante o papado de Avignon, com o assalto capitaneado por João XXII e Benedito XII contra os legítimos direitos do Imperador e dos príncipes-eleitores.

Os argumentos favoráveis ao partido dos 'Imperiais', longe de se circunscreverem ao momento histórico em que a supracitada controvérsia aflorou, remontam a autores da escola patrística. Consoante estabelece Eusébio de Cesaréia (o panegirista de Constantino o Grande), por exemplo, a monarquia, enquanto forma política, corresponderia a uma expressão secular do monoteísmo religioso, conclusão também abonada por um teólogo da estatura de Santo Agostinho e, mais tarde, outorgada por Dante (como veremos n'outra ocasião); acrescente-se , ainda, conforme salienta o bardo florentino, que a noção d'um Império Universal corresponde à própria estrutura da Realidade, qual seja, uma esfera harmônica e ordenada sob o primado do Criador. Ockham e Marsiglio da Padova, por seu turno, já à época da heresia avignonense, contestaram o princípio da Plenitudo Potestatis, consoante o qual o Sumo Pontífice detinha, de forma unilateral, o poder de conferir ou não legitimidade a qualquer governante da Cristandade. Destarte, ambos sustentavam a tese de que a autoridade do Papa é limitada pela Lei de Deus, pelo direito natural e pela liberdade dos liderados, posição que está lastreada nos Evangelhos; propugnavam, outrossim, a autonomia, no que concerne às questões temporais, do Imperador e demais governantes em relação à Igreja.

Em seu Defensor Pacis (1324), o teológo padovano assevera, inclusive, que o Imperador é o líder supremo da Cristandade. Para alicerçar tal ponto de vista, recorreu, entre outros argumentos, à tradição da 'unção real': o soberano, ao ser ungido, passava a ser depositário d'uma missão tanta política quanto religiosa, cabendo-lhe, inclusive, zelar pela retidão espiritual e moral da Societas Christiana.

Assim sendo, a perspectiva gibelina, longe de enfraquecer, como muitos outrora alegaram ,e 'inda hoje alegam, o poder da Igreja, era a única possibilidade CONCRETA de fornecer-lhe um alicerce político poderoso e estável. Não me parece irrazoável especular, por exemplo, que, justo ao contrário do que ocorreu, um processo de convergência entre a Igreja e o Império nos séculos XIV e XV teria anulado as circunstâncias que viabilizaram a Reforma protestante. Infelizmente, contudo, o Papado optou pelo caminho oposto: privilegiar França e Espanha, onde a presença da Igreja como força política era considerável, em detrimento do Sacro Império e da Inglaterra, onde a Igreja vinha perdendo poder e prestígio pelo menos desde o século XII.

 A corrupção desavergonhada, desenfreada do período avignonense, mormente nos pontificados de João XXII e Bento XII, com gravíssimos episódios de simonia, venda de indulgências, etc., foi, sem sombra de dúvida, o grande pretexto, o 'ovo da serpente' que permitiu a homens como Martinho Lutero, Calvino, Zwingli, etc. não só explorar insidiosamente a indignação dos simples, mas, sobretudo, capitalizar a legítima insatisfação dos príncipes-eleitores e outros potentados do Império em relação aos desmandos do Papado.

Católicos não raro bem intencionados, malgrado ingênuos, soem afirmar que Lutero foi sobremaneira influenciado pelas ideias políticas de Marsiglio da Padova e Ockham. Ora, ele apenas fez o que qualquer conspirador astuto faria em seu lugar: distorceu deliberadamente as teses dos teólogos imperiais, que denunciavam, de modo pertinente e corajoso, o crescente processo de degeneração do 'alto comando' da Igreja, para delas extrair os mais pérfidos sofismas.

E acrescento: o retorno do Papado a Roma não logrou reverter o processo de degradação da Cúria e do Colégio dos Cardeais. Um século após homens como os supracitados Ockham e Marsiglio da Padova, e também Michele di Cesena e outros notáveis franciscanos, erguerem suas vozes contra as terríveis iniquidades perpetradas em nome da Igreja, a ira santa de um frade dominicano, Girolamo Savonarola, fez-se ouvir em Florença.

As prédicas do bravo religioso ferraresi são textos impressionantes, não só em virtude da intensidade flamejante de sua fé, mas também pela beleza rutilante de suas imagens literárias e, claro está, pelo ousado caráter de suas idéias políticas. Savonarola foi um paladino pela libertação do povo contra a tirania de prelados e príncipes corruptos. sem no entanto indulgir, tal como a tragicamente equivocada 'Teologia da Libertação', por exemplo, em qualquer forma de relaxamento moral e lassidão dos costumes, pois propugnava o mais rigoroso ascetismo como norma de conduta pessoal e social. O excelso dominicano advogava uma maior participação do povo nas questões de Estado, por intermédio do "Grande Conselho", bem como a adoção d'um regime constitucional de caráter republicano, tudo isto sem no entanto abdicar, o que é de fundamental importância, da crença de que qualquer forma de poder temporal tão somente pode ser definida como LEGÍTIMA caso desfrute de lastro teológico.

Seu Trattato circa il Reggimento di Firenze (publicado somente em 1848) é, se calhar, o que de mais importante escreveu em termos de reflexão política. É uma obra de leitura sumamente interessante, pois transfigura a perspectiva não d'uma teoria abstrata, mas d'um programa político de ação concreta sob a luz da Teologia. Não se trata, é mister salientar, d'um pensamento a predicar a mera instrumentalização política da religião para fins mundanos, mas sim d'uma reflexão que emerge do próprio imo da consciência religiosa ou, melhor dizendo, d'um impulso de transformação social que nasce não da razão política, mas dos postulados transcendentes da fé, convertendo a religião em agir político, e não o contrário.

Em 1498, Savonarola foi queimado vivo, por ordem do Papa Alexandre VI, um dos pontífices mais depravados, sob todos os aspectos, da História da Igreja; 19 anos mais tarde, Lutero afixava suas célebres 95 teses em Wittenberg.

Os factos falam por si sós, meus diletos confrades: houvesse triunfado a perspectiva gibelina, a reforma protestante jamais teria ocorrido ou, na PIOR das hipóteses, teria sido esmagada no nascedouro.

























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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

A propósito do caráter não-científico do marxismo - parte VI


Alphonse van Worden - 1750 AD







O problema radica, mais uma vez salientamos, na abstrusa pertinácia em enquadrar o pensamento social  nas exigências da racionalidade científica e aos critérios de cientificidade, justamente porque tais modalidades de pensamento não envolvem tautologias verdadeiras por definição e nem tampouco enunciados empiricamente verificáveis, pela série de motivos que já enumerei ao longo deste ensaio. Tenho, por conseguinte, plena certeza, na contramão do que afirmam certos marxistas, de que o pensamento social pode e deve evoluir muito bem fora dos quadrantes da razão científica, uma vez que sua dinâmica constitutiva dela prescinde.

Não pretendo, pois, que as asserções do pensamento social tenham validade atemporal e universal, estejam submetidas aos mesmos parâmetros que regem tautologias verdadeiras por definição (2+2 = 4) ou enunciados sintéticos empiricamente (a molécula da água é formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio). Tenciono, na verdade, ver o pensamento social livre de tais amarras epistemológicas, voltado exclusivamente para aquele que é seu precípuo mister: atuar como ‘guia para a ação’, ou seja, como saber capaz de interpretar corretamente os sinais emitidos pelas cambiantes conjunturas sociais. Para tanto, não é necessário estar sob o primado da razão lógico-demonstrativa, mas também somente a capacidade de criar instrumentos pragmáticos eficazes para a ação humana. Devemos ter em mente que a finalidade do pensamento social não é formular uma sistematização analítica da realidade empírica, mas uma dinâmica transformativa do universo social.

Insisto: qual a necessidade, para efeito de sua efetiva aplicação como instrumento de luta política, de o marxismo ser considerado uma teoria científica? A resposta parta esta questão nos remete, a meu juízo, para outra indagação: por que atribuir ao estatuto científico primazia em termos de instância de legitimação para os saberes humanos? Examinemos este ponto com mais vagar: dentre todos os sistemas conceituais elaborados pela humanidade, qual logrou conquistar a maior legitimidade social, política e histórica ao longo do tempo? O pensamento religioso, isto é, precisamente a modalidade de saber mais refratária aos ditames da racionalidade científica! E como atua o pensamento teológico? Como modelo para a conduta humana, tanto em termos individuais quanto sociais. 

É, portanto, nesse horizonte que o marxismo deve também se inserir: como guia para ação social humana, como instrumento político-ideológico para a ação revolucionária. Para tanto, não se faz necessária a gestação de uma hermenêutica científica da realidade empírica, mas a elaboração de estratégias pragmáticas capazes de conquistar corações e mentes para um determinado objetivo político. 

 É mister admitir que há, de facto, um grande fetichismo no que tange à racionalidade científica como nec plus ultra definitivo da cultura universal; com efeito, não podemos negar que a noção de que a ciência fala a 'linguagem da verdade' é bastante difundida. Todavia, volto a frisar: em seu caráter precípuo de guia político para ação revolucionária, o marxismo prescinde por completo de qualquer pretensão de legitimidade científica: revoluções, enquanto processos sociais, são um fenômeno messiânico e largamente irracionalista, que não pode ser sintetizado/descrito/analisado a partir de categorias racionais.

Por outro, não se pode extrair de minhas considerações a assertiva de que os pressupostos e concepções do pensamento social seriam, por assim dizer, meros 'palpites'. Consoante a perspectiva que advogo, tais saberes, quando adequadamente empregues, são capazes de interpretar com eficácia os indícios emitidos pelas diversas formações e instâncias sociais, gerando, desta forma, dispositivos pragmáticos de orientação para a ação humana. Para desempenhar esta tarefa, ou seja, para configurar-se como dinâmica transformativa do universo social, o pensamento marxista não precisa de modo algum satisfazer a critérios de cientificidade, mas tão somente funcionar como uma espécie de sismógrafo da História.  

Prossigamos, contudo, com as objeções que um marxista eventualmente poderia  apresentar. Digamos que nosso interlocutor imaginário afirme o seguinte: 'um objeto único - a sociedade - e em constante mutação não invalida um arcabouço científico se este assume a variabilidade da dinâmica interna do objeto. No final o objeto é sempre o mesmo, quer tratemos do século XIX, quer abordemos a época atual'.

Peço a atenção dos senhores para as considerações acima esboçadas. O que seria um 'objeto único'? Um ente unívoco, que não envolve contradições internas ou ambigüidade conceitual em sua formulação, que é sempre idêntico a si mesmo, pois o que foi ontem é o que hoje é e também o que amanhã será. Um objeto, portanto, como o oxigênio, sem dúvida preenche todos esses requisitos: é únivoco, não envolve ambigüidade em sua definição e é sempre idêntico a si mesmo no espaço-tempo. 

Examinemos agora o termo 'sociedade'. À partida há que assinalar que, ao contrário de 'oxigênio', não estamos diante de um objeto dado, mas sim de um objeto construído, isto é, d'uma generalização indutiva elaborada a partir da observação sobre agrupamentos de indivíduos que habitam um determinado espaço geográfico num determinado lapso temporal. Trata-se, aliás, como podemos verificar, muito mais de um conceito que um objeto; admitamos todavia, somente para efeito da discussão em tela, que 'sociedade' é um objeto, para então sujeitá-lo ao mesmo escrutínio enfrentado pelo objeto 'oxigênio'. É 'sociedade', assim como 'oxigênio, uma entidade inequívoca?  À partida já podemos constatar que a definição de nosso objeto envolve conceitos polissêmicos como 'grupo' e 'habitar', para os quais dificilmente poderíamos oferecer determinações inequívocas. É 'sociedade' um objeto sempre idêntico a si mesmo? Talvez sua definição o seja, mas não o que ela designa: a sociedade dos zulus, por exemplo, é distinta da dos esquimós, assim como a sociedade londrina do século XVIII é distinta da do século XXI. Seria destarte mais correto falarmos não em 'sociedade' mas em 'sociedades', uma vez que são múltiplas no espaço e no tempo as entidades que tal termo pode significar.  O mesmo não ocorre, contudo, com o objeto 'oxigênio': 'oxigênio' foi, é e sempre será 'oxigênio', seja entre zulus, esquimós, londrinos do século XVIII ou do século XXI. Retornando às exigências da razão lógico-demonstrativa, podemos com certeza afirmar como o objeto 'oxigênio' irá comportar-se dadas certas condições pré-determinadas; em outras palavras, podemos gerar conhecimento científico a partir da observação de 'oxigênio'. O mesmo procedimento, entretanto, não pode ser dispensado ao objeto construído 'sociedade', cuja índole polissêmica e metamórfica nos faculta tão somente a formulação de considerações provisórias e assistemáticas. O conhecimento científico, portanto, não trabalha com objetos variáveis e equívocos, mas tão somente com aqueles passíveis de definição únivoca e universalmente válida em qualquer contexto espaço-temporal.