*O propósito desta breve nota é demonstrar, em linhas gerais, que a perspectiva advogada pelo movimento gibelino, caso prevalecente, teria salvo a Cristandade do flagelo que a Reforma representou; ademais, trata-se d'uma espécie de proêmio para um escrito de maior fôlego a respeito do célebre tratado De Monarchia (1313), onde o insigne poeta florentino Dante Alighieri sintetiza os aspectos fulcrais do catolicismo gibelino.
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Como de sobejo o sabeis, excelsos irmãos d'armas, a degeneração do princípio de potestas em plenitude potestatis foi justamente o foco da tensão progressiva que se desenvolveu, a partir do século XI, entre a Igreja e o Sacro Império (com a 'Questão das Investiduras'), culminando no século XIV, durante o papado de Avignon, com o assalto capitaneado por João XXII e Benedito XII contra os legítimos direitos do Imperador e dos príncipes-eleitores.
Os argumentos favoráveis ao partido dos 'Imperiais', longe de se circunscreverem ao momento histórico em que a supracitada controvérsia aflorou, remontam a autores da escola patrística. Consoante estabelece Eusébio de Cesaréia (o panegirista de Constantino o Grande), por exemplo, a monarquia, enquanto forma política, corresponderia a uma expressão secular do monoteísmo religioso, conclusão também abonada por um teólogo da estatura de Santo Agostinho e, mais tarde, outorgada por Dante (como veremos n'outra ocasião); acrescente-se , ainda, conforme salienta o bardo florentino, que a noção d'um Império Universal corresponde à própria estrutura da Realidade, qual seja, uma esfera harmônica e ordenada sob o primado do Criador. Ockham e Marsiglio da Padova, por seu turno, já à época da heresia avignonense, contestaram o princípio da Plenitudo Potestatis, consoante o qual o Sumo Pontífice detinha, de forma unilateral, o poder de conferir ou não legitimidade a qualquer governante da Cristandade. Destarte, ambos sustentavam a tese de que a autoridade do Papa é limitada pela Lei de Deus, pelo direito natural e pela liberdade dos liderados, posição que está lastreada nos Evangelhos; propugnavam, outrossim, a autonomia, no que concerne às questões temporais, do Imperador e demais governantes em relação à Igreja.
Em seu Defensor Pacis (1324), o teológo padovano assevera, inclusive, que o Imperador é o líder supremo da Cristandade. Para alicerçar tal ponto de vista, recorreu, entre outros argumentos, à tradição da 'unção real': o soberano, ao ser ungido, passava a ser depositário d'uma missão tanta política quanto religiosa, cabendo-lhe, inclusive, zelar pela retidão espiritual e moral da Societas Christiana.
Assim sendo, a perspectiva gibelina, longe de enfraquecer, como muitos outrora alegaram ,e 'inda hoje alegam, o poder da Igreja, era a única possibilidade CONCRETA de fornecer-lhe um alicerce político poderoso e estável. Não me parece irrazoável especular, por exemplo, que, justo ao contrário do que ocorreu, um processo de convergência entre a Igreja e o Império nos séculos XIV e XV teria anulado as circunstâncias que viabilizaram a Reforma protestante. Infelizmente, contudo, o Papado optou pelo caminho oposto: privilegiar França e Espanha, onde a presença da Igreja como força política era considerável, em detrimento do Sacro Império e da Inglaterra, onde a Igreja vinha perdendo poder e prestígio pelo menos desde o século XII.
A corrupção desavergonhada, desenfreada do período avignonense, mormente nos pontificados de João XXII e Bento XII, com gravíssimos episódios de simonia, venda de indulgências, etc., foi, sem sombra de dúvida, o grande pretexto, o 'ovo da serpente' que permitiu a homens como Martinho Lutero, Calvino, Zwingli, etc. não só explorar insidiosamente a indignação dos simples, mas, sobretudo, capitalizar a legítima insatisfação dos príncipes-eleitores e outros potentados do Império em relação aos desmandos do Papado.
Católicos não raro bem intencionados, malgrado ingênuos, soem afirmar que Lutero foi sobremaneira influenciado pelas ideias políticas de Marsiglio da Padova e Ockham. Ora, ele apenas fez o que qualquer conspirador astuto faria em seu lugar: distorceu deliberadamente as teses dos teólogos imperiais, que denunciavam, de modo pertinente e corajoso, o crescente processo de degeneração do 'alto comando' da Igreja, para delas extrair os mais pérfidos sofismas.
E acrescento: o retorno do Papado a Roma não logrou reverter o processo de degradação da Cúria e do Colégio dos Cardeais. Um século após homens como os supracitados Ockham e Marsiglio da Padova, e também Michele di Cesena e outros notáveis franciscanos, erguerem suas vozes contra as terríveis iniquidades perpetradas em nome da Igreja, a ira santa de um frade dominicano, Girolamo Savonarola, fez-se ouvir em Florença.
As prédicas do bravo religioso ferraresi são textos impressionantes, não só em virtude da intensidade flamejante de sua fé, mas também pela beleza rutilante de suas imagens literárias e, claro está, pelo ousado caráter de suas idéias políticas. Savonarola foi um paladino pela libertação do povo contra a tirania de prelados e príncipes corruptos. sem no entanto indulgir, tal como a tragicamente equivocada 'Teologia da Libertação', por exemplo, em qualquer forma de relaxamento moral e lassidão dos costumes, pois propugnava o mais rigoroso ascetismo como norma de conduta pessoal e social. O excelso dominicano advogava uma maior participação do povo nas questões de Estado, por intermédio do "Grande Conselho", bem como a adoção d'um regime constitucional de caráter republicano, tudo isto sem no entanto abdicar, o que é de fundamental importância, da crença de que qualquer forma de poder temporal tão somente pode ser definida como LEGÍTIMA caso desfrute de lastro teológico.
Seu Trattato circa il Reggimento di Firenze (publicado somente em 1848) é, se calhar, o que de mais importante escreveu em termos de reflexão política. É uma obra de leitura sumamente interessante, pois transfigura a perspectiva não d'uma teoria abstrata, mas d'um programa político de ação concreta sob a luz da Teologia. Não se trata, é mister salientar, d'um pensamento a predicar a mera instrumentalização política da religião para fins mundanos, mas sim d'uma reflexão que emerge do próprio imo da consciência religiosa ou, melhor dizendo, d'um impulso de transformação social que nasce não da razão política, mas dos postulados transcendentes da fé, convertendo a religião em agir político, e não o contrário.
Em 1498, Savonarola foi queimado vivo, por ordem do Papa Alexandre VI, um dos pontífices mais depravados, sob todos os aspectos, da História da Igreja; 19 anos mais tarde, Lutero afixava suas célebres 95 teses em Wittenberg.
Os factos falam por si sós, meus diletos confrades: houvesse triunfado a perspectiva gibelina, a reforma protestante jamais teria ocorrido ou, na PIOR das hipóteses, teria sido esmagada no nascedouro.
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Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
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