Atrevo-me a suspeitar, no entanto, que Citizen Kane perdurará como “perduram” certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Padece de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial... no sentido mais sombrio e mais germânico dessa má palavra.
Jorge Luis Borges (Sur - nº 83, Agosto de 1941)
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Eis o desfecho da resenha escrita por Borges a propósito do grande clássico do opus wellesiano (de resto brilhante, como, aliás, qualquer coisa urdida pelo mestre argentino, é claro). É possível afirmar, todavia, sem incorrer em heresia, que o grande escritor argentino equivocou-se parcialmente em seu vaticínio: Citizen Kane (assim como os filmes de Griffith e Pudovkin, naturalmente), de facto perdura, na história do cinema, mas não como mera relíquia histórica, e sim como obra sempre viva. Ademais, discordo enfaticamente que a fita sofra “de gigantismo, de pedantismo, de tédio”; muito pelo contrário, diga-se de passagem: irradia energia vital e excitação febril.
Borges, todavia, não poderia ter sido mais exato em sua observação final: ambos, criatura e criador, pertencem, com efeito, à rarefeita esfera da genialidade, e precisamente “no sentido mais sombrio e mais germânico” do termo. Welles incorporou a substância vital do expressionismo alemão, todo aquele pendor para contrastes violentos, os pesadelos, a noite indistinta, a névoa sinistra, e guindou todo esse universo a um patamar de excelência formal que não possui paralelo até hoje.
Em qualquer obra de Orson Welles, por menor que seja, há algo de fenomenal, de estratosférico, de assombroso, pois a sofisticação estética, o poder de sugestão atmosférica e o virtuosismo técnico do cineasta norte-americano assumem um caráter positivamente sobrenatural. Assim sendo, nem mesmo há necessidade, no intuito de fundamentar a relevância de seu cinema, de recorrermos aos mais notórios cavalos de batalha do diretor.
Considere-se, por exemplo, um filme como The Lady of Shangai (1947): o roteiro praticamente inexiste; ou, na melhor das hipóteses, poderia ser qualificado como um tremendo disparate. Não obstante, basta a extraordinária sequência final, com seu estupefaciente caleidoscópio de espelhos e personagens interseccionando-se infinitamente no espaço, labirinto hipercinético de formas complexas, multifacetadas e polimórficas, para transformá-lo numa obra-prima de primeiríssima grandeza; Macbeth (1948), por seu turno, mesmo rodado em condições absolutamente inviáveis, com uma verba de produção d’uma pobreza franciscana (há, inclusive, cenários de papelão, como o rochedo das bruxas e as muralhas do castelo), conjura uma atmosfera de tal modo espectral, ominosa e fantasmagórica, vera “emanação de sopros glaciais do além” (Bela Balázs), que a precariedade da produção torna-se de todo irrelevante; e poderíamos prosseguir com outros exemplos, tendo em vista que observações análogas poderiam ser feitas a propósito de todos os filmes do cineasta.
Welles realmente paira no empíreo cinematográfico, e por essa razão sentencio sem pestanejar: o cinema é ELE e o resto. Carl Theodor Dreyer, por exemplo, com a densidade filosófica de seus severos exercícios visuais de teologia luterana, pode ser um cineasta mais profundo; Glauber Rocha criou uma obra de ressonâncias míticas e simbólicas bem mais amplas, assim como Jean-Luc Godard, por outro lado, se calhar logrou atingir o ápice do cinema em termos de sofisticação narrativa. Não obstante, em termos de pura arte cinematográfica, do ‘específico fílmico’, como diziam os escribas da Cahiers du Cinéma, enfim, da essência primordial da ‘sétima arte’ (que a meu ver deve fugir do modelo estrutural da literatura como o diabo da cruz!) como transfiguração cinética da pintura, arte de conceber geometrias móveis de texturas, sombras e volumes, Mr. Orson Welles é pura e simplesmente insuperável, projetando-se um milhão de anos-luz à frente da concorrência.
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Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
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