Alphonse van Worden - 1750 AD
Podemos de sobejo verificar que a questão em pauta, ainda que numa abordagem inicial e preliminar, já pode ser encontrada na filosofia do inglês John Locke (1632-1704), que em seu
Essay Concerning Human Understanding (1690), percebeu a existência do problema da indução, ou melhor, de
um problema da indução, já que as dificuldades envolvendo o conhecimento das proposições universais sobre o mundo assumem contornos próprios em cada sistema epistemológico. A preocupação central de Locke no
Essay talvez seja a de determinar os limites do conhecimento, e tais proposições ocupam um lugar de destaque nessa investigação, pois, como salienta o filósofo, as verdades gerais, sendo as mais ambicionadas pelo entendimento humano, são também aquelas com maior capacidade de expandir nosso conhecimento.
Embora usualmente se reconheça que Locke lançou as bases do empirismo moderno, a relevância de suas contribuições epistemológicas não tem sido adequadamente reconhecida; a ausência, pois, de referências a Locke na volumosa literatura sobre a indução é um exemplo desta falha.
No livro I do
Essay, Locke apresenta uma argumentação cerrada contra a doutrina do conhecimento inato e, a partir do livro II, desenvolve sua teoria positiva sobre as origens e a extensão do conhecimento. Locke advoga o princípio de que todas as nossas idéias, isto é, “quaisquer que sejam as verdades que a razão possa com segurança nos revelar” (Livro I, cap.I, 8), provêm, em última instância, da 'experiência', em suas modalidades de sensação e reflexão. Sendo todo conhecimento humano estruturado a partir de 'idéias', Locke acredita estabelecer assim que todo o conhecimento provém, em última instância, da experiência. As idéias diretamente fornecidas pela sensação e pela reflexão Locke denomina 'idéias simples':
(...) não há nada que possa ser mais evidente para um homem
do que a percepção clara e distinta que possui acerca destas
idéias simples; as quais, sendo em si mesmas indivisíveis,
nada contêm em si senão uma aparência ou concepção
uniformes na mente, e não distinguíveis em idéias diferentes.
A mente não as pode criar ou destruir. Estas idéias simples,
que são o material constitutivo de todo nosso conhecimento,
são sugeridas ou fornecidas à mente tão somente pelas duas
vias acima mencionadas: sensação e reflexão.
'Idéias simples' podem ser conjugadas na mente de modo a originarem novas idéias, as 'idéias complexas'; tais idéias, por sua vez, são formadas por 'combinação', 'comparação' e 'abstração', podendo constituir-se como idéias de 'modo', de 'substâncias' e de 'relação'. Observemos agora como Locke irá definir estes três tipos de idéia:
Idéias de modo. Em primeiro lugar, denomino modos as idéias
que, apesar de compostas, não contêm em si a suposição
da possibilidade de subsistirem por si mesmas, mas são
são consideradas dependentes ou atributos de substâncias,
tais como as idéias expressas através das palavras triângulo,
gratidão, assassinato, etc. (...)
Idéias de substâncias, singulares e coletivas. (...) as idéias de
substâncias consistem em combinações de idéias simples de
maneira a representar distintas coisas particulares que
subsistem por si mesmas, onde a suposta ou confusa idéia de
substância, tal como se constitui, é sempre a primeira e a
principal. (...)
Idéias de relação. (...) o último tipo de idéias complexas
é o que chamamos de Relação, que consiste na
consideração e comparação de uma idéia com outra.
Idéias tais como 'mesa', 'água', 'homem', 'Deus', 'alma' são exemplos de idéias de substâncias; por sua vez, idéias como as de 'causa e efeito', 'semelhança', 'proporcionalidade' constituem exemplos do que Locke denomina idéias de relação
A despeito da grande variedade de seus múltiplos e intricados esquemas de classificação, ao longo das edições do
Essay e mesmo em diferentes partes de uma mesma edição, as idéias de modo e de relação não aportam problemas significativos para Locke; as idéias de substâncias, no entanto, envolvem o filósofo inglês em algumas dificuldades: ao mesmo tempo em que reconhece que não temos qualquer idéia clara e distinta de substância em geral, não consegue desvencilhar-se completamente dessa noção metafísica. Ao longo do livro, torna-se patente a constatação de que Locke, mesmo reconhecendo seu caráter obscuro, necessita da idéia de substância para sustentar sua perspectiva. Vejamos alguns trechos do capítulo XXIII do livro II, que trata especialmente dessa idéia (parágrafos 2 e 3):
De modo que se alguém se examinar acerca da noção que possui
de substância em geral, descobrirá que não tem outra idéia dela,
à exceção da suposição de não saber o que sustenta as qualidades
capazes de produzir idéias simples em nós, comumente denominadas
acidentes(...).
Sendo assim, constituída uma idéia obscura e relativa de substância
em geral, passamos a ter idéias dos tipos particulares de substâncias,
apreendendo estas composições de idéias simples descobertas pela
experiência e observação dos sentidos humanos como existindo
unidas e, portanto, supostamente derivadas da constituição interna
particular ou essência desconhecida daquela substância. Desse modo,
passamos a ter as idéias de um homem, de um cavalo, do ouro, da água,
etc. Apelo à experiência própria de cada um para saber se alguém
possui uma idéia mais clara acerca de tais substâncias, além daquela de
certas idéias simples coexistindo juntas.
Para considerarmos o estatuto epistemológico das proposições universais na filosofia de Locke, é importante vermos brevemente como ele entendia as idéias 'gerais' ou 'abstratas'. Embora essa delicada questão seja abordada em diversos lugares no
Essay, a passagem a seguir nos parece particularmente significativa no contexto da argumentação lockeana:
(...) Palavras tornam-se gerais quando são tomadas como signos de
idéias gerais; e idéias tornam-se gerais quando separamos delas as
circunstâncias de tempo e lugar, bem como quaisquer outras idéias
que possam determiná-las para esta ou aquela existência particular.
Por essa via de abstração tornam-se capazes de representar mais do
que um indivíduo.
O nominalismo que transparece nesse trecho é enfatizado logo em seguida. No parágrafo 11 do mesmo capítulo, por exemplo, Locke afirma que as noções de 'generalidade' e 'universalidade' não fazem parte da existência real das coisas, sendo tão somente expedientes do entendimento humano para uso próprio, referindo-se, portanto, apenas a signos que representam palavras ou idéias.
Ainda nesse mesmo cap. III, Locke introduz a distinção entre 'essência real' e 'essência nominal', concepção importante para, dentre outras coisas, a determinação da extensão do conhecimento das proposições universais sobre substâncias, conforme veremos mais adiante. A noção de 'essência real' corresponde à noção clássica de essência, tal como era formulada pela literatura filosófica existente na época de Locke, ou seja, "o ser de qualquer coisa pelo qual ela é o que é" (Cap. III, 15). Por sua vez, a noção de 'essência nominal' significa para Locke uma idéia abstrata referida por um termo geral, distinta da constituição real da essência, da qual, contudo, irá depender, assim como todas as suas propriedades. 'Essências nominais' são, pois, devemos salientar, criações da mente.
No caso de idéias simples e de modo, essências reais e nominais são coincidentes; em se tratando de substâncias, todavia, as essências nominais não coincidem com as reais, muito embora o desideratum da mente ao criá-las seja o de reproduzir a Natureza tão fielmente quanto possível. Uma cópia completa e perfeita é, porém, inatingível, já que exigiria o conhecimento das essências reais, isto é, das constituições reais das coisas, que se configuram como o fundamento de todas as propriedades que se combinam para formar sua essência nominal. Entretanto, sublinha Locke, isto não quer dizer que as essências reais das substâncias nos sejam completamente desconhecidas.
Passemos agora ao livro IV do
Essay, intitulado
Of Knowledge and Probability. Notemos preliminarmente que, para Locke, assim como para toda a filosofia moderna de um modo em geral, a
certeza é condição necessária para o conhecimento. Logo no segundo parágrafo do primeiro capítulo desse livro encontramos a seguinte definição de conhecimento:
O conhecimento humano é a percepção da consonância ou
Dissonância entre duas idéias. Parece-me, pois, que o
conhecimento nada mais é que a percepção da conexão e
consonância, ou desconexão e dissonância entre quaisquer
de nossas idéias. Ele consiste somente nisso. Onde há essa
percepção, aí existe conhecimento; e onde não há, embora
possamos imaginar, supor ou crer, ficaremos sempre aquém
do conhecimento.
Caso Locke tivesse se limitado a essa definição estrita de conhecimento, acabaria forçosamente confinando-se à esfera das idéias, sem recurso à experiência. Assim sendo, amplia logo em seguida sua definição (Cap. I, 3 e 7), a fim de incluir aquilo que chama de "conhecimento de existência real", limitado à existência do eu, de Deus e das coisas materiais atualmente presentes aos sentidos.
Desse modo, o filósofo inglês propõe que há quatro tipos de consonância ou dissonância entre idéias: 1) 'identidade e diversidade'; 2) 'relação'; 3) 'coexistência, ou conexão necessária'; e 4) 'existência real'. No primeiro, “(...) a mente percebe por este meio, de modo claro e infalível, que cada idéia concorda consigo mesma, que ela é o que é, e que todas as idéias distintas discordam, isto é, que uma não é a outra” (Cap. I, 4). Lançando mão de exemplos dados pelo próprio Locke: 'branco não é vermelho, redondo não é quadrado'; o segundo consiste na percepção da relação entre duas idéias quaisquer, de qualquer tipo, seja de substâncias, de modos ou qualquer outro; o terceiro tipo de consonância/dissonância entre idéias, o de coexistência ou conexão necessária, se refere particularmente às idéias de substâncias, vale dizer, à ligação de uma idéia a idéia de uma determinada substância. A natureza dessa ligação não é inicialmente clara, o que se reflete no próprio modo ambíguo pelo qual Locke a denomina: conexão necessária sugere que se trata de uma ligação
a priori entre as idéias, enquanto que coexistência não envolve necessariamente tal conotação. O exemplo emblemático de Locke para ilustrar o conhecimento por coexistência é a proposição 'o ouro é fixo (i.e. não se consome no fogo)', ao qual retornaremos mais adiante.
Passemos agora ao caso específico do conhecimento das proposições universais. Como vimos, excetuando-se o problemático conhecimento de existência real, conhecimento é, para Locke, a percepção da consonância ou dissonância entre idéias. Ele será universal se e somente se as idéias forem abstratas:
Pois aquilo que for conhecido acerca de tais idéias gerais será
verdadeiro com relação a toda coisa particular na qual aquela
essência, i.e. idéia abstrata, for encontrada. [...] De modo que
todo conhecimento geral terá de ser procurado e encontrado
apenas em nossas próprias mentes.
Além disso, no capítulo VI,
Of Universal Propositions: their Truth and Certainty, o autor assevera, já no parágrafo 4, que “não podemos estar certos da verdade de nenhuma proposição geral, a menos que conheçamos os limites e a extensão precisos das espécies designadas por seus termos” (cap. VI, 4). Tal conhecimento pressupõe, pois, o conhecimento das essências dessas espécies.
No caso das idéias simples e de modo, em que as essências reais coincidem com as nominais, como já ressaltamos, as espécies podem ser conhecidas de maneira precisa e completa. A verdade das proposições universais a seu respeito poderá então ser claramente determinada, caso houver percepção de sua consonância ou dissonância. Enquadram-se nessa categoria as proposições gerais de identidade e diversidade de idéias simples, como, por exemplo, 'Tudo que é branco é branco', 'Nada que é quadrado é redondo', bem como as que se baseiam nas demais relações entre idéias, que não as de coexistência. Segundo Locke, estas últimas formam o espectro mais amplo de nosso conhecimento, e incluem, paradigmaticamente, as proposições da matemática. A extensão do conhecimento depende aqui de nossa capacidade de encontrar idéias intermediárias, que nos permitem conceber a relação entre as idéias em questão. Dificuldades aparecem, no entanto, quando consideramos as idéias de substâncias, “onde uma essência real distinta da nominal é suposta constituir, determinar e limitar as espécies” (Cap. VI, 4). Nenhuma proposição universal sobre uma substância poderá ser conhecida se uma referência à sua essência real for subentendida, “porque não conhecendo essa essência real, não podemos saber o que é, ou não é, daquela espécie e, conseqüentemente, o que pode ou não ser afirmado com certeza a seu respeito” (Ibid., 4). Em outras palavras: como não temos acesso às essências reais das substâncias, nunca poderemos perceber a conexão necessária ou coexistência de uma idéia com uma dada idéia de substância, quando estas se referirem às essências reais. Locke conclui: “Os nomes de substâncias, então, sempre que tomados para representar espécies que se supõem constituídas por essências reais (...) não são capazes de trazer certeza ao entendimento” (Cap. VI, 5).
Assim, para obtermos algum conhecimento geral sobre as substâncias, temos que nos referir exclusivamente às suas essências nominais, isto é, determinadas coleções de idéias que decidimos (motivados por observações) tomar como constitutivas de tais essências. Mas surge aqui outra dificuldade não menos séria:
Por outro lado, quando os nomes das substâncias forem usados
como devem ser, para [designar] as idéias que os homens têm em
suas mentes, não nos servirão para fazer muitas proposições
universais de cuja verdade possamos estar certos, embora, neste
caso, possuam significação clara e determinada; não porque nesse
seu uso estejamos incertos acerca de que coisas significam, mas
porque as idéias complexas que eles designam são combinações
de idéias simples tais que não trazem em si nenhuma conexão ou
repugnância que possa ser descoberta a não ser com muito poucas
outras idéias.
Vejamos agora como Locke fundamenta essa tese de que "a conexão entre a maioria das idéias simples é desconhecida" (Cap. III, 10). Há três casos a considerar:
Conexões entre idéias de qualidades primárias - essas são as únicas conexões de idéias simples que Locke considera concebíveis pela mente humana; todavia, vale dizer, em todo o
Essay o filósofo inglês só nos fornece dois exemplos concretos de conexões conhecidas desse tipo:
Na verdade, algumas poucas qualidades primárias têm uma
dependência necessária e conexão visível umas com as
outras, como forma necessariamente supõe extensão; e a
capacidade de receber ou comunicar movimento supõe solidez.
Conexões entre idéias de qualidades primárias e secundárias - no que tange a estas, o filósofo inglês não apenas as considera desconhecidas, mas também incognoscíveis e inconcebíveis; entretanto, como na concepção de mundo adotada por Locke, todas as qualidades secundárias supostamente decorrem das qualidades primárias das partes diminutas e imperceptíveis dos corpos, o autor tem que admitir que essas conexões de fato existem, e as atribui “(...) à determinação arbitrária daquele Agente Todo-Sábio que as fez ser tais quais são (...) e de um modo totalmente acima da concepção de nossos fracos entendimentos" (Cap. III, 28).
Conexões entre idéias de qualidades secundárias - estas são
a fortiori desconhecidas, incognoscíveis e inconcebíveis. Há aqui dois obstáculos intransponíveis para o conhecimento: 1) nossa falta de sentidos suficientemente aguçados para descobrir as propriedades primárias particulares das partes diminutas de cada tipo de corpo, que são a raiz de onde brotam suas qualidades secundárias; 2) nossa referida incapacidade de descobrir, e mesmo de conceber, as conexões entre qualidades primárias e secundárias, o que constitui um fator ainda mais irresgatável de ignorância. Portanto, “em todas as qualidades secundárias não podemos descobrir nenhuma conexão” (Cap. VI, 7), “exceto naquelas referentes a um mesmo sentido, que necessariamente se excluem umas às outras” (Cap. VI, 10).
Ilustremos agora a posição de Locke recorrendo a seu emblemático exemplo: a proposição 'O ouro é fixo'. Nunca podemos obter certeza sobre sua verdade, pois se a palavra ouro denotar uma espécie definida pela Natureza por meio de uma essência real, é evidente que, não conhecendo quais substâncias particulares pertencem a essa espécie (pois não temos qualquer idéia clara dessa essência real), não poderemos afirmar nada com certeza universal acerca do ouro. E, se por outro lado, ouro denotar uma espécie determinada por sua essência nominal, ou seja, a idéia complexa de um corpo possuidor de uma determinada cor amarela, e também maleável, fusível e pesado, as únicas qualidades que com certeza poderemos atribuir ao ouro são aquelas cujas idéias tenham uma conexão necessária (que possa ser descoberta) com as que formam essa essência nominal. Contudo, pelo que acima foi visto, isso só ocorre com as idéias referentes a um mesmo sentido; saberemos com certeza que a proposição 'Nenhum ouro é azul 'é verdadeira, por exemplo. Mas não sendo capazes de descobrir qualquer conexão necessária da idéia de fixidez com aquelas idéias, ou com o seu conjunto, nunca teremos certeza se o ouro é ou não fixo, a menos que modifiquemos a essência nominal do ouro, de modo a incluir a idéia de fixidez; nesse caso, porém, a proposição O ouro é fixo expressará uma verdade puramente verbal, que nada instrui sobre o mundo. E o problema, portanto, continuará se apresentando em relação às demais qualidades, como a solubilidade em
aqua regia, a ductilidade, etc., e desse modo nunca poderá ser eliminado.
Concluímos que nosso conhecimento universal sobre substâncias é extremamente reduzido, incluindo apenas: 1) as proposições referentes aos poucos casos de conexão entre idéias de qualidades primárias que podem ser descobertas; 2) as proposições do tipo ‘Nenhum ouro é azul’; 3) aquelas a que Locke chama
trifling, que nada acrescentam ao conhecimento das coisas, mas "apenas ensinam a significação das palavras" (Cap. VIII, 7). Observando exemplos fornecidos pelo auto, tais como 'O chumbo é um metal', 'Todo ouro é fusível', 'Todo homem é um animal', subentende-se, pois, que o que está sendo predicado dos sujeitos faz parte de suas essências nominais.
Ficam, assim, excluídas do âmbito do conhecimento praticamente todas as proposições universais instrutivas sobre o mundo exterior, tais como 'Todo homem será envenenado pela cicuta' ou 'Nenhum homem pode se nutrir de madeira ou de pedras' (Cap. VI, 15), e as leis científicas de tipo fenomenológico em geral. Essa importante conseqüência do empirismo de Locke entra em conflito com a visão epistemológica não apenas do Senso Comum, mas também da Ciência, que assumem que dispomos de meios para elevar nossa crença em proposições dessa classe ao estatuto de conhecimento, fornecendo-lhes alguma justificação segura.
Ao demonstrar que, em sua teoria epistemológica, a via de acesso para o conhecimento universal acerca de substâncias é uma via bloqueada, Locke trouxe à tona o Problema da Indução. Dada a importância das proposições gerais sobre o mundo na vida prática e na ciência, colocou-se a questão de que posição poderiam ocupar na escala epistêmica, destronadas que foram de seu estatuto de conhecimento certo. Salientemos aqui que, aparentemente, Hume beneficiou-se da análise de Locke, assumindo como ponto partida que o conhecimento dessas proposições não cai no âmbito das relações de idéias, para então se dedicar a mostrar que, enquanto expressão de questões de fato, também não são seguras. Podemos afirmar, todavia, que o próprio Locke iniciou as investigações desse ponto. Muito embora o papel primordial por ele atribuído à experiência seja o de fonte das idéias, o filósofo inglês admite que ela pode fornecer conhecimento direto de proposições particulares sobre substâncias, a saber, a coexistência de uma determinada idéia com uma idéia particular de substância: “A experiência tem de me ensinar aqui o que a razão não pode” ( Cap. XII, 9). Mas tal experiência não fornece certeza senão sobre o que já foi experimentado; jamais redunda em conhecimento universal, ou mesmo acerca de instâncias ainda não observadas. Saberemos, por exemplo, que este determinado pedaço de ouro mostrou-se fixo em tais e tais testes a que foi submetido; não podemos, no entanto, afirmar que se mostrará fixo em outros testes, e muito menos que 'todo' ouro é fixo. Vejamos algumas passagens importantes sobre esse assunto. Após reiterar que o conhecimento das substâncias oferecido pelo acordo ou desacordo entre as idéias é muitíssimo reduzido, Locke acrescenta:
Em todas essas investigações o nosso conhecimento vai muito
pouco além de nossa experiência. (...) Ficamos apenas com a
assistência de nossos sentidos para conhecer que qualidades as
substâncias contêm. (...) Pois essa coexistência não pode ser
conhecida além do que é percebida; e ela não pode ser percebida
a não ser em objetos particulares, pela observação de nossos
sentidos, ou, em objetos gerais (i.e, idéias abstratas), pela conexão
necessária das próprias idéias.
E no parágrafo 28 desse mesmo capítulo lemos:
Pois onde a conexão entre as idéias nos falte, somos cabalmente
incapazes de conhecimento universal e certo; e ficamos (...) apenas
com a observação e o experimento que, quão estreitos e confinados
são, quão distantes estão do conhecimento geral, não precisa ser
dito.
A incerteza sobre a próxima ocorrência de um fenômeno que vem se repetindo é exposta taxativamente na seguinte passagem:
Não podemos estar mais seguros sobre as propriedades e modos de
operação dos corpos do que alcançam uns poucos testes que fazemos.
Mas se eles darão certo de novo, não podemos ter certeza. Isso impede
nosso conhecimento certo de verdades universais sobre os corpos naturais.
A conseqüência, que Locke expõe com clareza, é a impossibilidade daquilo que chama de 'filosofia científica', ou uma 'ciência perfeita dos corpos':
Quanto às coisas em que, até onde nossa observação possa alcançar,
observamos de maneira constante ocorrer regularmente, podemos
concluir que agem por uma lei que as determina; contudo, por uma lei
que desconhecemos. Embora causas funcionem de modo estável, e
efeitos fluam delas de modo constante,suas conexões e dependências
não podendo ser descobertas em nossas idéias, só podemos ter um
conhecimento experimental a seu respeito.(...) Mas quanto a uma ciência perfeita dos corpos naturais (...) concluo ser esforço vão procurá-la.
Na investigação das razões da incerteza da extrapolação indutiva do conhecimento, Hume indubitavelmente vai mais longe que Locke, argumentando que todas as inferências sobre questões de fato fundam-se na relação de causa e efeito; que todas as inferências sobre essa relação fundam-se, a seu turno, na experiência; que em todos os raciocínios experimentais há um passo que não encontra suporte em nenhum argumento ou processo do entendimento a suposição de que o curso da Natureza continuará sempre o mesmo; e, finalmente, que a mente dá esse passo em virtude de um mero hábito.
No capítulo XII,
Of the Improvement of our Knowledge, após expressar a suspeita de que “não se pode fazer da filosofia natural uma ciência” (Cap. XII, 10), Locke tenta tranqüilizar o Senso Comum e a Ciência, esclarecendo que não pretende “desprezar ou desencorajar o estudo da Natureza” (Cap. XII, 12), mas apenas advertir que não devemos esperar conhecimento onde ele não pode ser obtido. Não desejando que a falta de conhecimento dotado de certeza absoluta possa significar um estado de ignorância plena, Locke irá desenvolver, nos capítulos XIV, XV e XVI, estudos pioneiros sobre os graus de assentimento inferiores à certeza. Em sua análise das bases do assentimento, procura assegurar a certas leis naturais uma posição elevada na escala de confiabilidade epistêmica. No caso que aqui nos interessa mais de perto, sobre o “funcionamento regular de causas e efeitos no curso ordinário da Natureza”, por exemplo, se o assentimento geral de todos os homens em todas as épocas concordar com a nossa experiência constante e sem falhas, as “probabilidades se elevam tão próximo da certeza, que passam a governar os nossos pensamentos de modo tão absoluto, e a influenciar tão plenamente nossas ações como a demonstração mais evidente” (Cap. XVI, 6).
Faz-se mister reconhecer, sob o olhar privilegiado da filosofia contemporânea, que a proposta específica de Locke para o estabelecimento dos graus de probabilidade e assentimento padece de várias deficiências; em especial, é difícil discernir claramente se, para o filósofo inglês, o conceito de probabilidade é inteiramente subjetivo ou se reflete, em alguma medida, propriedades objetivas do mundo. De qualquer forma, o que aqui pretendemos sublinhar aqui é que, pelo menos no que tange ao “governo de nossos pensamentos”, à formação de nossas crenças, a experiência de regularidades tem, segundo Locke, uma influência determinante. No desenvolvimento da filosofia empirista por ele (re)inaugurada , caberá a David Hume a análise detalhada dessa influência e da própria noção de crença.
Uma questão que aqui não abordaremos extensivamente, mas que seria assaz pertinente numa análise mais acurada das teses de Locke quanto ao estatuto epistemológico das ciências naturais, é seu reconhecimento de que nem todas as leis dessas ciências devem ser entendidas como generalizações indutivas; parece-nos razoável atalhar que, nesse particular, Locke tenha antecipado algumas concepções recentes da Filosofia da Ciência. Para ele, o domínio das proposições que são apenas prováveis divide-se entre as que, tratando de 'questões de fato' e sob o escrutínio de nossa observação, “são capazes de serem testemunhadas pelos homens”, e as que versam “sobre coisas que, escapando à descoberta de nossos sentidos, não são capazes de tal testemunho” (Cap. XVI, 5). Neste último caso, teremos que formular hipóteses, em geral motivadas por analogias. Vejamos agora, apenas a título ilustrativo, estas interessantes considerações, presentes no parágrafo 13 do capítulo XII, a respeito do “verdadeiro uso de hipóteses”. Após haver alertado, no parágrafo anterior, que “devemos tomar cuidado com hipóteses e princípios errados”, Locke adita:
Não que não possamos, para explicar os fenômenos da Natureza, fazer uso de nenhuma hipótese provável qualquer que seja; hipóteses, se forem bem feitas, são pelo menos grandes auxiliares da memória, e freqüentemente direcionam-nos para novas descobertas. O que quero dizer, porém, é que não devemos adotar qualquer uma com demasiada pressa, (...) antes que tenhamos examinado muito bem os detalhes, feito vários experimentos com a coisa que queremos explicar com nossa hipótese, e verificado que ela concorda com todos eles; que os nossos princípios (i.e., hipóteses) nos hajam conduzido bem ao longo desses experimentos, e que não são inconsistentes com um fenômeno natural quando parecem acomodar e explicar outro. E que pelo menos tomemos cuidado para que o nome princípios não nos engane, nem se imponha sobre nós, fazendo-nos aceitar por uma verdade inquestionável o que na realidade é, quando muito, uma conjetura muito duvidosa, como é o caso da maioria das (e quase diria de todas as) hipóteses da filosofia natural.
Assim, Locke adverte contra a atribuição de um grau epistêmico demasiadamente elevado às hipóteses, ressalta sua função heurística, estabelece como condições de sua aceitação a sujeição a testes e a sua abrangência, destacando, por fim, a natureza conjetural das hipóteses da filosofia natural; concepções que, como veremos num momento ulterior de nossa dissertação, serão retomadas, ainda que sob perspectiva e abordagem distintas, por autores do porte dos alemães Hans Reichenbach (1891-1953) e Carl Gustav Hempel (1905-1997), dois pináculos da Filosofia da Ciência e da Lógica no século XX.