segunda-feira, novembro 02, 2009

A propósito de Carl Schmitt

Alphonse van Worden - 1750 AD




Em virtude de sua raríssima combinação entre ousadia conceitual, rigor crítico, lucidez interpretativa e sobriedade estilística, o jurista e pensador alemão Carl Schmitt (1888 - 1985) foi, a meu ver, o mais brilhante teórico da filosofia política no século XX, bem como um dos mais importantes autores na história das idéias políticas como um todo.

Autor de obra vasta e multifária, permeada tanto pela assombrosa profundidade de sua erudição quanto pela invulgar capacidade de formular pontos de vista profícuos sobre os mais diversos tópicos - da figura mítica do monstro Leviathan como transfiguração simbólica do Estado através dos tempos, por exemplo, a uma inovadora teoria sobre o caráter específico da atuação de agentes não-estatais no âmbito de conflitos armados -, seria de todo impossível, no espaço deste breve escrito, fornecer-vos um panorama integral do legado schmittiano; assim sendo, limitar-me-ei a esboçar algumas considerações a propósito de quatro temas que reputo axiais no pensamento do autor: a) sua revolucionária caracterização do fenômeno político; b) a progressiva erosão do poder de Estado através da ação concertada da ‘Sociedade Civil’ nos marcos do liberalismo político e do positivismo jurídico; c) a contraposição entre ‘legalidade / legitimidade’ no bojo do sistema político; por fim, d) o importantíssimo debate (mormente para uma refundação da ação política contemporâneo nos marcos da Terza Posizione) a respeito da pertinência ou não da noção de ‘Teologia Política’.


A natureza da Política


Em seu ensaio Der Begriff des Politischen (“O Conceito do Político” - 1932), o ínclito constitucionalista logrou definir, se calhar como ninguém antes, a verdadeira natureza distintiva do fenômeno político em relação às demais instâncias da ação humana (é razoável salientar que Thomas Hobbes e Donoso Cortés - diga-se de passagem, dois autores fundamentais na esfera do pensamento schmittiano - tenham se aproximado do grau de percuciência analítica do filósofo alemão, muito embora sem a espantosa depuração conceitual atingida por Schmitt): “O antagonismo político é a mais intensa e extrema contraposição, e qualquer antagonismo concreto é tanto mais político quanto mais se aproximar do ponto extremo do agrupamento amigo-inimigo. A diferenciação entre amigo e inimigo tem o sentido de designar o grau de intensidade extrema de uma ligação ou separação (...). Todos os conceitos, representações, e palavras políticas têm um sentido polêmico, visualizam um antagonismo concreto, cuja conseqüência extrema é um agrupamento amigo-inimigo (manifestado na guerra ou revolução).” (Der Begriff des Politischen)

A esfera da política é o terreno privilegiado da contraposição fundamental, da disjuntiva 'amigo/inimigo', sem apelo a quaisquer injunções de cunho ético ou racional. Ao contrário das correntes mainstream das chamadas ‘ciências humanas’, sejam elas de tendência socialista, liberal ou conservadora, Schmitt não se preocupa com a dimensão ‘protocolar’, o ordenamento JURÍDICO- INSTITUCIONAL da ‘forma’ política ou, em outras palavras, com sua superfície normativa, mas sim com a ESSÊNCIA do fenômeno político, isto é, com a natureza substancial da estruturas de poder em confronto pelo controle do Estado ao longo dos tempos. Vale também frisar, ademais, que a reflexão schmittiana, ignorando os aspectos conjunturais da ação política, ditados por circunstâncias obviamente cambiáveis, salienta o caráter permanente da questão, que radica, pois, na contraposição contínua e irreconciliável entre vetores opostos no transcurso da História das nações, a despeito das múltiplas configurações que tal antagonismo vital possa eventualmente assumir.


O ‘Estado-Leviathan’ e sua nêmesis: a ação organizada da ‘Sociedade Civil’


Para Schmitt, a encarnação suprema da concepção acima esboçada seria o modelo de Estado soberano, detentor do monopólio da violência e da ‘decisão política’ e, portanto, centralizado e monolítico, que emerge no continente europeu a partir dos séculos XVI e XVII com o ocaso do feudalismo, e cujos principais elementos e características seriam sintetizados na clássica obra Leviathan, The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiasticall and Civil (1651), de lavra do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 - 1679).

Trata-se, portanto, do ordenamento político-institucional que detêm o monopólio da decisão política e, em troca, oferece a seus súditos proteção e bem-estar. É mister, sobretudo, salientar o binômio ‘obediência / proteção’, fundamental para o arcabouço teórico hobbesiano quanto para a teoria política schmittiana. Não obstante, o pensador alemão, em seu Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes (“O Leviathan na Teoria do Estado de Thomas Hobbes” - 1938), detecta, com notável percuciência, uma ‘falha estrutural’ que, ao longo dos séculos, viria a representar o dobre de finados para o modelo de organização estatal contemplado pelo insigne autor inglês: ao distinguir, no âmbito da confissão religiosa, entre uma esfera privada (onde o cidadão poderia professar o credo que bem entendesse), de um lado, e uma esfera pública (onde o cidadão deveria observar a confissão oficialmente adotada pelo Estado), de outro, Hobbes inadvertidamente abre espaço para o advento do liberalismo político, cujo centro de gravidade é justamente a conquista de garantias jurídicas para o exercício das liberdades individuais, em detrimento do raio de alcance do poder estatal. Consoante assevera Schmitt, a brecha hobbesiana não cessaria de alargar-se ao longo tempo, dando, por fim, ensejo à consolidação do Estado constitucional moderno, lastreado nos marcos do liberalismo político e do positivismo jurídico.

Hoje podemos de sobejo verificar quão precisa foi a diagnose schmittiana: a atuação indireta empreendida pelos diversos movimentos de ação política (ONG’s, sindicatos, movimentos de ‘ação afirmativa’, lobbies empresariais, etc.) ligados à chamada ‘Sociedade Civil’ organizada - ‘indireta’ por formalmente ser levada a efeito fora da esfera específica dos mecanismos e instâncias do aparato estatal (muito embora não raro nele inseridos, mormente por intermédio da via parlamentar) -, acaba por beneficiar-se da ausência de responsabilidade institucional inevitavelmente associada à ação de Estado. Tal circunstância permite, pois, aos supracitados movimentos usufruir de todas as vantagens relacionadas ao exercício do poder e, simultaneamente, evitar o ônus que inexoravelmente recai sobre as autoridades constituídas.

Outrossim, ainda no que concerne aos referidos movimentos da ‘Sociedade Civil’, tal método de atuação indireta permite-lhes ocultar, conforme Schmitt salienta, mais uma vez com estupendo descortino profético, seus verdadeiros desígnios sob o véu d’uma miríade de propósitos alegados - culturais, raciais, filantrópicos, econômicos, etc. -, sempre sob a conveniente malha de proteção legal garantida pelo ordenamento jurídico do Estado constitucional de Direito. Destarte, tornam-se capazes de minar as estruturas do poder estatal a partir dos próprios espaços de ação institucional que o Estado lhes faculta. Ora, se o Estado, como bem assinala o jurista alemão, necessita de unidade de Espírito e de Vontade para desempenhar seu móvel precípuo (defender a soberania nacional e proteger o povo), como poderá continuar a fazê-lo, ao converter-se em butim a ser partilhado / disputado por iniciativas e movimentos pautados por interesses particulares? Outrora os súditos nutriam, no que tange ao soberano, uma relação de respeito e devoção, e sabiam que podiam contar com sua proteção, inclusive no plano espiritual. Considere-se, a título de ilustração, os chamados 'reis taumaturgos', sobretudo em França: Louis IX (1214 - 1270), por exemplo, chegou a curar milhares de súditos por ano, por intermédio do simples toque de sua mão.

Hoje no Ocidente testemunhamos, com efeito, do trágico outono do aparato estatal enquanto detentor absoluto do primado da esfera política e, com isso, frente à dispersão do poder político por múltiplos agentes, cada qual imbuído d'uma agenda própria, sem atentar, pois, para as demandas gerais do povo.


Legalidade / Legitimidade


Em Legalität und Legitimität (“Legalidade e Legitimidade” - 1932), Schmitt, prosseguindo em seu minucioso trabalho de desmonte das ficções jurídicas e políticas do Iluminismo, assesta suas baterias contra o mero formalismo institucional que informa a democracia moderna em sua forma parlamentar.

Encontra-se aí uma brilhante análise dos paradoxos da democracia parlamentar e de sua tendência em substituir a decisão política pela exclusiva valorização da maioria quantitativa dos votos.

O que está em jogo, portanto, é a substituição da legitimidade, que emana de seu guardião (o soberano), pela legalidade, fazendo-se desta última condição suficiente para legitimar a decisão. Assim sendo, o ponto mais fraco do sistema de representação parlamentar consiste na transformação de questões político-substanciais em processos de mera quantificação dos votos, sem que se possa impedir a tomada de decisões que atentem contra os interesses do Estado.

Para Schmitt a força concentrada em um ‘Estado total’ é a única saída para a teia de contradições geradas pelo pluralismo de partidos e lobbies econômicos que ele define “como os contratorpedeiros da ordem institucional”.

Isto posto, mais uma vez, é-nos possível verificar quão proféticas são as observações schmittianas: o que está em pauta hoje, através da bem orquestrada histeria d’uma infinda girândola de ONG’s, OS’s, movimentos sociais e organizações do gênero (obviamente sob os nefários auspícios dos conglomerados da grande finança internacional), é toda uma dinâmica, muitíssima bem urdida, planejada, articulada e propagada, para desmoralizar o papel do Estado não só como custódio da soberania e segurança nacionais, mas também como indutor por excelência de qualquer processo efetivo de transformação social.


Sobre a ‘Teologia Política’


Por fim, gostaria aqui de abordar a controvérsia a respeito da supracitada noção, que se estabeleceu entre Carl Schmitt e outros dois autores alemães: o teólogo Hans Barion (1899 - 1973) e o historiador eclesiástico Erik Peterson (1890 - 1960).

Obviamente seria impossível exprimir aqui todos os matizes e sutilezas d'um debate tão complexo e erudito, de maneira que apresentarei apenas um simples bosquejo das principais posições em tela.

Consoante Schmitt, "todos os conceitos da moderna Teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados, não somente nos marcos de seu desenvolvimento histórico (gradualmente transitando da Teologia para a Teoria do Estado, à medida que o Deus omnipotente converteu-se no legislador omnipotente), mas também em sua própria estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica de tais conceitos. O conceito de 'estado de exceção', por exemplo, tem para a jurisprudência um significado análogo à noção de 'milagre' para a teologia." (Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität / “Teologia Política” - 1922).

Assim sendo, há, para o autor, um insofismável vínculo conceitual e histórico entre as esferas da Teologia, do Direito e da Política, de maneira que é perfeitamente possível, e até mesmo necessário, falar numa 'teologia política'. O ínclito jurista ainda defende a "'forma política' da Igreja Romana como a representação, visível na História universal, do Cristo tornado homem, forma essa que se expressa de três modos: como 'forma estética' em sua grande arte; como 'forma jurídica' na constituição do direito canônico; e como 'forma de poder' na História, plena de glória e esplendor." (Römischer Katholizismus und Politische Form / “Catolicismo Romano e Forma Política” - 1923).

Hans Barion, por seu turno, no V volume de seus estudos sobre o concílio Vaticano II, lança, a propósito do quarto parágrafo da constituição pastoral do concílio (“Da Igreja no mundo”), as seguintes indagações, a primeira de âmbito mais específica e a segunda de escopo geral:

i) a Teoria do Estado ali proposta é 'Teologia Política'?;
ii) 'Teologia Política' é Teologia?

Sustenta Barion: "Tal teoria é 'Teologia Política', pois pretende estabelecer, catedraticamente, certo modelo político; todavia, exatamente por essa razão não pode ser teologicamente legítima, ou seja, formular-se como Teologia de facto, pois a Revelação não contém tais modelos. O reconhecimento do Estado romano do primeiro século foi mero reconhecimento de um facto consumado, bem como o de todos os outros modelos possíveis no âmbito dos 10 mandamentos."

O teólogo alemão fundamenta (assim como Peterson) sua crença numa cisão inexorável entre Teologia e Política a partir da teoria agostiniana dos '2 reinos' (Cidade de Deus / Império); assim sendo, tal polaridade metafísica, que analogamente se desdobra nas malhas da História, demonstraria a impossibilidade de se pensar numa 'Teologia Política'.

Erik Peterson, enfim, em obras como Was ist Theologie? (“O que é Teologia?”- 1925) e Der Monotheismus als politisches Problem (“O Monoteísmo como problema político” - 1935), advoga a impossibilidade conceitual da 'Teologia Política'. Para o historiador, o dogma da Trindade invalida a perspectiva de Eusébio de Cesaréia, o panegirista de Constantino o Grande, segundo a qual a monarquia, enquanto forma política, corresponderia a uma expressão secular do monoteísmo religioso. Diz Peterson: "o dogma da trindade estabelece uma ordem real além de toda a desordem caracterizada pelos conceitos de anarquia, poliarquia e monarquia."; destarte, a conclusão a que se chega é que não pode haver nenhuma realização política da 'monarquia divina': "quem tentasse tal realização seria comparado ao Anticristo de que fala Gregório de Elvira: ipse solus toto orbe monarchiam habiturus est (Was ist Theologie?).

Ademais, Peterson afirma que a supracitada concepção agostiniana dos '2 reinos' (assim como a doutrina trinitária) representa a "libertação da fé cristã dos grilhões do Império Romano" (Der Monotheismus als politisches Problem), refutando assim qualquer hipótese que pretenda a existência de laços isomórficos entre Igreja e Império.

Salientemos, por um lado, que Schmitt trabalha com toda uma série de paralelismos históricos e conceituais - a convergência entre Igreja e Império; o poder temporal dos papas; o vínculo estrutural entre o direito romano e o direito canônico; a similaridade entre a estrutura de poder eclesiástica e o aparato estatal / imperial -; e, por outro, recorre a uma esfera mais profunda, do ponto de vista filosófico, em sua vindicação da 'Teologia Política': a noção de que não se pode extrair da política sua dimensão essencialmente metafísica e escatológica, vale dizer, de conflito essencial entre 'bem' e 'mal', de maneira que toda ação política se configura como reflexo especular de tal confronto vital e perene.

Em contraposição a Schmitt, Barion e Peterson alegam que o conjunto de circunstâncias históricas que levaram à confluência entre Igreja e Império não seriam suficientes, por si só, como fundamento para a existência d’uma ‘Teologia Política’, tendo em vista que tais eventos não dimanam da Revelação continha nos Evangelhos; para tanto, aliás, ambos soem mencionar, entre vários outros argumentos, uma célebre passagem da Bíblia: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Lucas 20:25). Schmitt, todavia, replica que a passagem aludida se refere a um poder político (o dos césares) que não está sob a égide da Revelação, de maneira que não se refere, a princípio, a um poder político que se formule como expressão secular da Revelação.

Ademais, é mister sublinhar que suas reflexões sobre a questão supracitada, além de muito bem ‘amarradas’ em termos de construção formal do argumento, embasamento factual e erudição teológica, são também, malgrado num plano que já escapa ao âmbito do cristianismo, deveras impressionantes em sua pertinência para o contexto hodierno, tendo em vista, por exemplo, as teologias messiânicas da ação revolucionária em ascensão no mundo islâmico.

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