quarta-feira, janeiro 07, 2009

Notas de reflexão crítica XVII - o Problema da Indução em Hans Reichenbach

Alphonse van Worden - 1750 AD




Hans Reichenbach (1891-1953), lógico e filósofo alemão, abordou inicialmente o problema da inferência indutiva no ensaio Ziele und Wege der physikalische Erkenntnis ("Objetivos e Métodos do Conhecimento Fisico" - 1929), tendo em vista, sobretudo, a investigação de questões de metodologia científica.

Verificamos, assinala Reichenbach, a vigência de uma regularidade presente nas percepções que já experimentamos e, portanto, logo afirmamos que eventuais percepções futuras irão necessariamente apresentar os mesmos padrões de regularidade.
Nas palavras do filósofo alemão:


Trata-se de uma conclusão de caráter imediato, denominada conclusão
indutiva. Através dela se introduz o conceito de probabilidade no conhecimento da natureza, uma vez que semelhante afirmação não pode expressar-se senão por intermédio da probabilidade. A conclusão indutiva é também denominada, por esta razão, conclusão de probabilidade.


Reichenbach, a seguir, sintetiza em três proposições a maior parte das concepções filosóficas anteriores:

1° - A conclusão de probabilidade não pode ser fundamentada

logicamente, porque caminha de casos já observados para

casos ainda não observados, sob os quais nada se pode saber.


2° - A conclusão de probabilidade não é empiricamente

demonstrável, já que não é possível afirmarmos sua

validade pelo fato de que atenhamos comprovado muitas

vezes, pois esta constatação já seria, por si mesma, uma

conclusão de probabilidade.


3° - A conclusão de probabilidade é imprescindível para o
conhecimento natural.


Conforme Reichenbach nos relembra, Hume foi o primeiro a formular rigorosamente as duas primeiras propriedades da conclusão de probabilidade; também mencionou a terceira, salienta o autor alemão, mas não logrou conceber o papel fundamental que o raciocínio indutivo possui nos processos cognitivos. Hume acredita poder explicar os processos indutivos como um hábito desprovido de fundamento lógico-racional, concepção que, observa Reichenbach, não se revela um caminho profícuo para a resolução do problema.

O filósofo alemão estabelece, então, o procedimento que irá nortear suas investigações e conclusões a respeito do papel desempenhado pelas inferências indutivo-probabilistas no conhecimento científico. Reichenbach introduz, em primeiro lugar, a noção de probabilidade como conceito lógico essencial, presumindo que seu significado nos é fornecido axiomaticamente; estipula, para tanto, as seguintes suposições axiomáticas:


1° Faz sentido e é lícito extrair , com probabilidade, de um
número finito de ocorrências, todas as demais.


2° Faz sentido e é lícito afirmar, com probabilidade, da
probabilidade de um fenômeno sua correspondente ocorrência em um número finito de casos.



Tendo, pois, definido a perspectiva em que sua análise iria se delinear, Reichenbach concentrou-se em examinar a natureza da inferência indutiva no âmbito do conhecimento científico. O filósofo alemão, devemos ter em mente, encarava a epistemologia não como um saber meramente descritivo, mas sim como um exercício crítico e criativo, capaz de descortinar novas perspectivas para o pensamento científico: sua função mais importante era elaborar uma reconstrução racional do que seria o modo de pensar de uma ciência ideal, que deveria ser sempre cotejado com os processos utilizados pela ciência real.

O objetivo de tal comparação seria o abandono de todas as formas de pensamento que não respeitassem os dois critérios mínimos de aceitabilidade racional: 1) conformação compatível com o restante da estrutura previamente admitida como essencial e 2) certo caráter de diagnóstico ou parecer, isto é, de contribuição distinta e original para a supracitada estrutura. Os objetivos de Reichenbach em seu projeto de reelaboração racional da Filosofia da Ciência eram, sublinhemos, semelhantes aos de seus confrades austríacos do Círculo de Viena, tais como Rudolf Carnap (1891-1970) e Möritz Schlick (1862-1936); todavia, uma discrepância fundamental separava-os: a reiterada convicção de Reichenbach na validade das inferências indutivo-probabilistas no processo do conhecimento científico.

Para o filósofo alemão, uma proposição só possui significado se for possível determinar-lhe um grau definido de probabilidade; além disso, duas proposições têm o mesmo significado se demonstramos que são dotadas do mesmo grau de probabilidade. As experiências passadas proporcionam um suporte para as expectativas referentes a eventos futuros, na medida em que nos permitam estimar a probabilidade de sua ocorrência; tais eventos devem ser considerados como elementos de conjuntos, devendo ser também mais ou menos reincidentes, ainda que estejam em pauta eventos únicos, como quando, por exemplo, um médico constata, baseado em sua experiência passada com outros casos semelhantes, que um determinado paciente provavelmente faleceu em virtude de câncer. Assim sendo, ao lado do raciocínio indutivo, Reichenbach introduziu um elemento de pragmatismo em seu positivismo lógico, uma vez que o significado de uma proposição ou enunciado é determinado em função dos resultados e procedimentos empiricamente observados.

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[1] A supracitada discrepância, no que diz respeito a Carnap, se refere mais precisamente às concepções esposadas pelo filósofo austríaco em sua primeira fase; mais tarde, as posições de Carnap sobre a questão se aproximariam bastante das idéias de Reichenbach, o que podemos constatar, por exemplo, em obras do autor austríaco tais como Logical Foundations of Probability (1950) ou An Introduction to the Philosophy of Science (1966), dentre outras.

'That's Right, the Mascara Snake, Fast and Bulbous!'




Não há muito que ainda se possa dizer a propósito d'um álbum submetido a décadas de minucioso escrutínio crítico; nem tampouco algo de relevante a acrescentar sobre o legado de seu criador, o genial compositor, vocalista, multi-instrumentista e artista plástico norte-americano Don Van Vliet, aka Captain Beefheart. Todavia, não seria justo que uma obra-prima da magnitude de Trout Mask Replica, um dos raríssimos discos legitimamente PROGRESSISTAS na história do rock, ficasse sem menção neste nosso espaço; isto dito, vamos à liça.

Se calhar o aspecto que mais aprecio na música do Capitão é que ela sempre parece um trem prestes a descarrilar, mas afinal d'algum modo mantendo-se nos trilhos; ou então um trapezista arriscando-se seriamente a se esborrachar no solo com suas temerárias acrobacias, mas sempre encerrando a performance com um ar triunfal de precisão e segurança. Assim ocorre com o saudoso Capitão: o ouvinte pensa que tudo está sempre à beira da catástrofe, quase desmoronando, a sensação de caos iminente e imanente, mas a complexa e admiravelmente a estrutura se mantém intacta. 

E tal aspecto se demonstra particularmente notável em TMR, até hoje um disco deveras impressionante, sobretudo como originalíssimo exercício de uma fusão não só meticulosamente concebida e executada, mas também milagrosamente orgânica e estruturada, dos mais díspares elementos: do R&B ao acid rock, do free jazz ao country, do blues tradicional à música eletroacústica, tudo se faz presente no grande 'forno alquímico' de mistáh Beefheart, de uma forma a um só tempo alucinatória e coerente, pois se em cada música o ouvinte tem a insólita impressão de estar escutando simultaneamente várias peças, há um assombroso senso de unidade formal em todas as faixas do disco. Tal impressão é acentuada, vale dizer, pela circunstância de a maior parte da banda estar solando simultaneamente em várias faixas do álbum; não há, aliás, uma diferença marcante entre 'base' e 'solo' na estética proposta por Vliet, mas sim a postulação d'uma massa sonora de admirável coesão formal. Destarte, temos em Trout Mask Replica um triunfo veramente assombroso: trata-se, pois, d'uma obra prenhe d'um esplêndido senso de liberdade e improvisação, mas onde todos os procedimentos são milimetricamente calculados e levados a efeito de forma deliberada. Para tanto, é mister lembrar Beefheart exigiu da Magic Band um grau de dedicação e disciplina realmente jesuítico: seus integrantes passaram 8 meses confinados, ensaiando exaustivamente as composições de Beefheart, em jornadas de trabalho que não raro chegavam a 12 / 14 horas por dia.

Alicerçando esse primoroso trabalho de composição e organização do material sonoro, temos um instrumental simplesmente soberbo, com destaque para o notável senso de fluidez rítmica de John 'Drumbo' French (a meu ver o grande destaque da banda, e sem dúvida um dos bateristas mais subestimados da história do rock); as agulhadas ácidas das guitarras elétricas da dupla Zoot Horn Rollo / Antennae Jimmy Semens; e, é claro, o verdadeiro jazz from hell desencadeado pelo 'Capitão' e seu primo Mascara Snake. Coroando tudo, temos os inacreditáveis vocais de Vliet, com seu escalafobético arsenal de recitativos, imprecações, soluços, uivos e interjeições.

Não é tarefa das simples apontar os pontos culminantes numa obra de tamanha complexidade e riqueza, mas a meu ver, diria eu que a espinha dorsal do disco consiste d’uma memorável série de dada blues meets schizo jazz in the land of Thomas Pynchon: Dachau Blues, Ella Guru, Moonlight in Vermont, Pachuco Cadaver, My Human Get's Me Blues e When Big Joan Sets Up; são igualmente credoras de menção especial as instrumentais Hair Pie: Bake 1 e 2, onde a esmerilhação free se desdobra em arrojado exercício de música contemporânea de vanguarda; a impagável The Blimp (mousetrapreplica), com seu maníaco impromptu verbal gravado via conversa telefônica; e por fim Sugar 'N Spikes, que se não é especialmente marcante per si, a meu juízo registra a mais inspirada performance de Drumbo no álbum.

A produção, a cargo de Frank Zappa, é absolutamente revolucionária para a época, ao incorporar vários 'defeitos especiais' (quedas de áudio, faux finales não-intencionais, erros de execução, etc.) de forma ousada e criativa, assim gerando toda uma ambiência de desorientação aleatória essencial para a atmosfera 'dadaísta' pretendida por Beefheart; para tanto também contribui, há que frisar, o facto de as faixas de TMR serem provenientes de diversas fontes, desde gravações caseiras até registros profissionais em estúdio, e ainda o uso de numerosos fragmentos de conversas, risadas, monólogos e 'intervenções poéticas' de Beefheart e seus asseclas.

Por fim, por despretensiosa que seja, uma resenha de TMR não poderia deixar de dizer uma ou duas palavras sobre o universo poético de Beefheart, que é absolutamente único: à moda de um Lewis Carroll on acid, Vliet desencadeia vertiginosos feux d’artifices de jogos de palavras, assonâncias mirabolantes, alusões crípticas, estranhíssimos seres metafóricos, private jokes, delírios surreais e observações hilariantes, conjurando assim toda uma galáxia de referências que seria impossível de deslindar sem uma exegese crítica das mais laboriosas.

Bottom line: Trout Mask Replica é um CLÁSSICO eterno do avant rock, e um dos poucos discos na história do gênero que realmente faz jus ao epíteto de 'fundamental'.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros