*O artigo que se segue, originalmente publicado neste espaço a 02/07/06, foi objeto d'algumas ligeiras malgrado significativas alterações, de maneira que julgamos por não apenas editá-lo, mas sim republicá-lo.
Alphonse van Worden - 1750 AD
"O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito.(...)"
"A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais."
José Carlos Mariátegui - O Homem e o Mito (1925), publicado originalmente na revista Amauta, e depois na coletânea de ensaios El Alma Matinal.
_____
Escrevesse nos dias de hoje, o eminente marxista peruano seria obrigado a concluir que hodiernamente também o movimento revolucionário tornou-se carente não apenas de mito, mas também de capacidade de invenção.
O que se vê, pois, na atualidade, é uma esquerda que está ou agrilhoada a concepções mediocremente legalistas e institucionais de ação política, para melhor ocultar sua covarde capitulação à ordem capitalista; ou então uma esquerda pseudo-revolucionária de todo estéril e improfícua, uma vez que se limita a reverberar as estratégias revolucionárias d'outrora, que se bem correspondiam ao contexto em que foram gestadas, hoje já não mais se revelam capazes de responder com eficácia às tarefas do presente.
Trata-se, portanto, d'um cenário sobremaneira ominoso: de um lado, uma 'esquerda' que renunciou por completo à transformação revolucionária da sociedade capitalista, quando muito acenando para mudanças de forma meramente retórica e oportunista; de outro, uma ruína ideológica dos tempos idos, que não apenas matraqueia os estrátegas do passado sem absorver-lhes o que de útil ainda possam ter, mas é também incapaz de compreender o contexto em que vive para assim formular novas estratégias de ação.
A propósito dos setores reformistas não há muito que se possa fazer: baldas são quaisquer expectativas de que voltem a exercer um papel sequer minimamente progressista, haja vista, por exemplo, o resultado de uma governo como a de Lula à testa do Brasil, que se limita a exercer o papel de mero gestor do sistema capitalista, sem a mais mínima preocupação em lançar os alicerces d'um futuro processo de transformação substantiva de nossa sociedade; destarte, tornou-se tão somente, para lançar mão aqui de bela imagem cunhada por Fernando Pessoa, um desprezível "cadáver adiado que procria" os mesmos horrores, ignomínias e malefícios de qualquer outro governo conservador que já tenha assolado nossas plagas. É mister d'uma vez por todas abandonar qualquer expectação no que tange á possibilidade de recuperar tais facções para a ação política revolucionária: à lógica do capital estão e estarão de todo submissas per saecula saeculorum.
Se algum laivo d'esperança inda nos resta, por conseguinte, encontrá-lo-emos nas hostes da esquerda que ainda nutre ambições revolucionárias (para não mencionarmos aqui a vastíssima galáxia da 'revolução conservadora', que ulteriormente será objeto d'outro artigo), pois esta ainda cultiva o necessário e feraz mito da transformação social: ainda que decerto árdua, há, de facto, em relação a tais elementos, uma empreitada passível de realização e, quero crer, pleno êxito.
Em primeiro lugar, é necessário à esquerda que ainda acalenta alguma pretensão transformativa d'uma vez por todas assimilar a lição ministrada há já tantos lustros por autores como Mariátegui, Sorel e Peguy: a 'revolução social' não é um fenômeno que se possa interpretar mediante uma analítica científica, já que não pode ser compreendido à luz dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da razão lógico-demonstrativa; ao contrário, afigura-se muito mais como fenômeno de cunho mítico-religioso, impermeável a abordagens racionalistas. Há portanto que reconhecer a natureza essencialmente messiânica e mítica da Revolução, a dimensão mística, irracional, imprevisível e emocional presente intrinsecamente em todo processo revolucionário. A dimensão simbólico-messiânica é o alicerce em que se assenta o eixo do fenômeno político, que nada mais que uma versão laica do processo religioso. A ação revolucionária é, pois, Mito e Mística, é fome do Absoluto, mergulho nos báratros da imponderabilidade, salto temerário na escuridão inefável. Não há como negar, por exemplo, que o islâ militante desempenha hoje um papel revolucionário muito mais relevante que as modalidades tradicionais contempladas pelo pensamento marxista. A tipologia categorial estreita do marxismo não consegue, pois, compreender que um Osamah Bin Laden possa ser, como de fato o é, ao mesmo tempo um warlord medieval e um líder revolucionário contemporâneo, ou seja,uma figura onde o 'arcaico' e 'novo' estão entrelaçados de forma indissolúvel; o que vai ao encontro, vale dizer, do que um gênio profético da estatura de Glauber Rocha asseverava já há alguns lustros:
"Na medida em que a desrazão planeja a revolução, a razão planeja a repressão".
"A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza".
"A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo".
"As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das forças irracionais das massas pobres".
"A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora".
Eztetyka do Sonho (1971)
À primeira lide, portanto, corresponde a um processo de radical reformulação de sáfaros preconceitos adrede esposados, ao abandono de panoramas d'ação e de pensamento inadequados à conjuntura presente; é sem sombra de dúvidas uma empresa complexa, uma vez que abdicar de certos hábitos e reflexos condicionados é algo que não raro resulta num doloroso processo de autotransformação psicológica; todavia, a segunda tarefa que se apresenta à esquerda revolucionária tradicional é ainda mais fragosa e intrincada.
Salientei acima o imperativo premente que representa para a esquerda contemporânea apreender corretamente os ensinamentos de Mariátegui; contudo, tão somente absorvê-los sem ulterior reelaboração não é de forma alguma suficiente: há que ir além deles, pois não basta reconhecer que Política é também Mito e Mística, mas sobretudo constatar que fora dos horizontes do Mito não há mais qualquer possibilidade revolucionária. E para tanto, é forçoso compreender as metamorfoses estruturais, tanto econômicas quanto políticas, do capitalismo nos últimos 100 anos.
A Revolução de Outubro, mito central do paradigma revolucionário no século passado, ocorreu num contexto histórico em que a indústria ocupava a centralidade da atividade econômica capitalista; assim sendo, como de sobejo o admitem até mesmo marxistas heterodoxos como Mariátegui, coube ao proletariado, protagonismo no supracitado processo, situação que teria se repetido, decerto de forma ainda mais cabal caso uma revolução comunista houvesse eclodido na Alemanha ou em Inglaterra, por exemplo. Não menos patente, todavia, é o facto de que o movimento operário veio perdendo força, substância e representatividade ao longo do século XX em função das metamorfoses estruturais do sistema produtor de mercadorias, cuja capacidade de explorar trabalho atrofia-se paulatinamente sobretudo a partir das décadas de 60-70; nas outrora afluentes sociedades capitalistas da Europa Ocidental, da Ásia e da América do Norte, pois, verifica-se mais e mais a presença de um desemprego que não é mais meramente conjuntural, mas estrutural, fenômeno que sobrecarrega em escala crescente os sistemas previdenciários e coloca em xeque um welfare state construído por um século de lutas sindicais. Ainda que em menor escala e velocidade, vale dizer, o mesmo fenômeno vem ocorrendo no âmbito das economias periféricas.
A dinâmica constante que levou ao desenvolvimento da microeletrônica, da automação dos processos produtivos e da computação desencadeou, portanto, uma série de transformações de suma importância no âmbito das estruturas dinâmicas do capitalismo: o eixo de sustentação do sistema deslocou-se radical, e quiçá definitivamente, do setor secundário para o terciário, da economia 'real' para a 'virtual' . Desta maneira, com a expansão acelerada do setor terciário no bojo da revolução informática, e agora no bojo dos primeiros e sombrios sinais de esgotamento desta 'terceira onda capitalista', emergem como sujeitos históricos privilegiados as legiões de excluídos por este processo, isto é, um 'neolumpesinato' que, ao contrário do lumpenproletariat tradicional, é formado não raro por indivíduos qualificados, mas que não mais conseguem viabilizar-se economicamente no seio de uma entropia crescente das atividades econômicas produtivas. Utilizo aqui o termo 'neolumpesinato' com o fito de sublinhar dois pontos que me parecem cruciais: em primeiro lugar, o facto de que os assalariados do setor terciário não possuem a consciência de classe e a coesão organizativa que o proletariado industrial revelou em seus momentos mais gloriosos, dos quais, claro está, a revolução soviética é o mais eloqüente exemplo; e, em segundo lugar, tendo em mente a legião de excluídos desencadeada pela progressiva 'fadiga' do setor terciário em sua capacidade de agregar nova mão-de-obra. Tal desgaste, aliás, revela como os ciclos de crescimento real de atividade econômica no âmbito do sistema produtor de mercadorias são cada vez mais breves; é facto, por exemplo, que não se geram novos postos de trabalho na UE há pelo menos 20 anos. Assim sendo, vislumbro um 'neolumpesinato' formado, por lado, pelos assalariados do setor terciário e, por outro, pelos excluídos em virtude da precoce decrepitude demonstrada pelo supracitado boom.
Não obstante, o facto de este neolumpesinato estar muito mais aparelhado para compreender o mundo em que vive do que seu correlato passado é, diga-se de passagem, assaz alvissareiro, em termos de esperanças para uma futura mobilização revolucionária.
Estamos sob a égide, conforme já assinalei outras vezes, d'uma verdadeira paralaxe estrutural, que desloca o eixo do processo econômico de forma irreversível da esfera produtiva para a twilight zone do setor terciário, bem como para a esfera puramente especulativa. A atividade industrial perde sua centralidade como locus privilegiado de onde o sistema extrai os recursos para sua auto-reprodução ampliada e, outrossim, o proletariado industrial perde sua centralidade como sujeito privilegiado dos processos revolucionários de superação do sistema produtor de mercadorias; doravante, tal papel estará a cargo de um nebuloso, cambiante e metamórfico neolumpesinato mais ou menos 'especializado', um lumpenproletariat pós-moderno atomizado/gerado pela implosão do setor terciário na atual conjuntura do sistema produtor de mercadorias que é hoje a verdadeira classe revolucionária. O sujeito revolucionário hodierno identifica-se, por conseguinte, com as legiões de excluídos pelo virtual achatamento do setor secundário e pelo esgotamento progressivo da capacidade de absorção do setor terciário, ou seja, o supracitado neolumpesinato gerado pelas metamorfoses do sistema produtor de mercadorias nas últimas décadas.
E eis então que aqui chegamos ao cerne da questão que nos ocupa, ou seja, a natureza dos processos revolucionários no mundo contemporâneo. O que afinal poderá mobilizar o 'neolumpesinato' a superar o estado d'apatia em que se encontra para enveredar pelas sibilinas sendas da transformação revolucionária? Creio firmemente que a clave puramente 'política' não mais poderá servir como força motriz capaz de desencadear qualquer processo revolucionário duradouro no imo do contexto hodierno do Capitalismo; não mais acredito, dessa maneira, na possibilidade da organização política de classe como veículo para a superação dialética do sistema produtor de mercadorias, mas tão somente na emergência de teologias messiânicas da ação revolucionária, que encaro como a única possibilidade de provocar um curto-circuito na própria razão dominadora do Capital, giroscópio conceitual em que se assenta todo o seu edifício. Hoje, mais do que nunca, a instância determinante em última instância não é mais a infraestrutura material, mas sim a superestrutura ideológica; há, pois, uma relação de superveniência desta em relação àquela. O assalto derradeiro e definitivo à ordem estabelecida se dará pela mente, pelo espírito, não pela matéria, pela concretude. O resultado? Imprevisível, um precipitar-se no escuro, um mergulho abissal no oceano ignoto do porvir, como de resto o é e sempre será qualquer transformação revolucionária. Não obstante, os perigos do abismo podem ao menos ser mais estimulantes que a letargia da planície!
Alphonse van Worden - 1750 AD
"O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito.(...)"
"A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais."
José Carlos Mariátegui - O Homem e o Mito (1925), publicado originalmente na revista Amauta, e depois na coletânea de ensaios El Alma Matinal.
_____
Escrevesse nos dias de hoje, o eminente marxista peruano seria obrigado a concluir que hodiernamente também o movimento revolucionário tornou-se carente não apenas de mito, mas também de capacidade de invenção.
O que se vê, pois, na atualidade, é uma esquerda que está ou agrilhoada a concepções mediocremente legalistas e institucionais de ação política, para melhor ocultar sua covarde capitulação à ordem capitalista; ou então uma esquerda pseudo-revolucionária de todo estéril e improfícua, uma vez que se limita a reverberar as estratégias revolucionárias d'outrora, que se bem correspondiam ao contexto em que foram gestadas, hoje já não mais se revelam capazes de responder com eficácia às tarefas do presente.
Trata-se, portanto, d'um cenário sobremaneira ominoso: de um lado, uma 'esquerda' que renunciou por completo à transformação revolucionária da sociedade capitalista, quando muito acenando para mudanças de forma meramente retórica e oportunista; de outro, uma ruína ideológica dos tempos idos, que não apenas matraqueia os estrátegas do passado sem absorver-lhes o que de útil ainda possam ter, mas é também incapaz de compreender o contexto em que vive para assim formular novas estratégias de ação.
A propósito dos setores reformistas não há muito que se possa fazer: baldas são quaisquer expectativas de que voltem a exercer um papel sequer minimamente progressista, haja vista, por exemplo, o resultado de uma governo como a de Lula à testa do Brasil, que se limita a exercer o papel de mero gestor do sistema capitalista, sem a mais mínima preocupação em lançar os alicerces d'um futuro processo de transformação substantiva de nossa sociedade; destarte, tornou-se tão somente, para lançar mão aqui de bela imagem cunhada por Fernando Pessoa, um desprezível "cadáver adiado que procria" os mesmos horrores, ignomínias e malefícios de qualquer outro governo conservador que já tenha assolado nossas plagas. É mister d'uma vez por todas abandonar qualquer expectação no que tange á possibilidade de recuperar tais facções para a ação política revolucionária: à lógica do capital estão e estarão de todo submissas per saecula saeculorum.
Se algum laivo d'esperança inda nos resta, por conseguinte, encontrá-lo-emos nas hostes da esquerda que ainda nutre ambições revolucionárias (para não mencionarmos aqui a vastíssima galáxia da 'revolução conservadora', que ulteriormente será objeto d'outro artigo), pois esta ainda cultiva o necessário e feraz mito da transformação social: ainda que decerto árdua, há, de facto, em relação a tais elementos, uma empreitada passível de realização e, quero crer, pleno êxito.
Em primeiro lugar, é necessário à esquerda que ainda acalenta alguma pretensão transformativa d'uma vez por todas assimilar a lição ministrada há já tantos lustros por autores como Mariátegui, Sorel e Peguy: a 'revolução social' não é um fenômeno que se possa interpretar mediante uma analítica científica, já que não pode ser compreendido à luz dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da razão lógico-demonstrativa; ao contrário, afigura-se muito mais como fenômeno de cunho mítico-religioso, impermeável a abordagens racionalistas. Há portanto que reconhecer a natureza essencialmente messiânica e mítica da Revolução, a dimensão mística, irracional, imprevisível e emocional presente intrinsecamente em todo processo revolucionário. A dimensão simbólico-messiânica é o alicerce em que se assenta o eixo do fenômeno político, que nada mais que uma versão laica do processo religioso. A ação revolucionária é, pois, Mito e Mística, é fome do Absoluto, mergulho nos báratros da imponderabilidade, salto temerário na escuridão inefável. Não há como negar, por exemplo, que o islâ militante desempenha hoje um papel revolucionário muito mais relevante que as modalidades tradicionais contempladas pelo pensamento marxista. A tipologia categorial estreita do marxismo não consegue, pois, compreender que um Osamah Bin Laden possa ser, como de fato o é, ao mesmo tempo um warlord medieval e um líder revolucionário contemporâneo, ou seja,uma figura onde o 'arcaico' e 'novo' estão entrelaçados de forma indissolúvel; o que vai ao encontro, vale dizer, do que um gênio profético da estatura de Glauber Rocha asseverava já há alguns lustros:
"Na medida em que a desrazão planeja a revolução, a razão planeja a repressão".
"A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza".
"A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo".
"As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das forças irracionais das massas pobres".
"A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora".
Eztetyka do Sonho (1971)
À primeira lide, portanto, corresponde a um processo de radical reformulação de sáfaros preconceitos adrede esposados, ao abandono de panoramas d'ação e de pensamento inadequados à conjuntura presente; é sem sombra de dúvidas uma empresa complexa, uma vez que abdicar de certos hábitos e reflexos condicionados é algo que não raro resulta num doloroso processo de autotransformação psicológica; todavia, a segunda tarefa que se apresenta à esquerda revolucionária tradicional é ainda mais fragosa e intrincada.
Salientei acima o imperativo premente que representa para a esquerda contemporânea apreender corretamente os ensinamentos de Mariátegui; contudo, tão somente absorvê-los sem ulterior reelaboração não é de forma alguma suficiente: há que ir além deles, pois não basta reconhecer que Política é também Mito e Mística, mas sobretudo constatar que fora dos horizontes do Mito não há mais qualquer possibilidade revolucionária. E para tanto, é forçoso compreender as metamorfoses estruturais, tanto econômicas quanto políticas, do capitalismo nos últimos 100 anos.
A Revolução de Outubro, mito central do paradigma revolucionário no século passado, ocorreu num contexto histórico em que a indústria ocupava a centralidade da atividade econômica capitalista; assim sendo, como de sobejo o admitem até mesmo marxistas heterodoxos como Mariátegui, coube ao proletariado, protagonismo no supracitado processo, situação que teria se repetido, decerto de forma ainda mais cabal caso uma revolução comunista houvesse eclodido na Alemanha ou em Inglaterra, por exemplo. Não menos patente, todavia, é o facto de que o movimento operário veio perdendo força, substância e representatividade ao longo do século XX em função das metamorfoses estruturais do sistema produtor de mercadorias, cuja capacidade de explorar trabalho atrofia-se paulatinamente sobretudo a partir das décadas de 60-70; nas outrora afluentes sociedades capitalistas da Europa Ocidental, da Ásia e da América do Norte, pois, verifica-se mais e mais a presença de um desemprego que não é mais meramente conjuntural, mas estrutural, fenômeno que sobrecarrega em escala crescente os sistemas previdenciários e coloca em xeque um welfare state construído por um século de lutas sindicais. Ainda que em menor escala e velocidade, vale dizer, o mesmo fenômeno vem ocorrendo no âmbito das economias periféricas.
A dinâmica constante que levou ao desenvolvimento da microeletrônica, da automação dos processos produtivos e da computação desencadeou, portanto, uma série de transformações de suma importância no âmbito das estruturas dinâmicas do capitalismo: o eixo de sustentação do sistema deslocou-se radical, e quiçá definitivamente, do setor secundário para o terciário, da economia 'real' para a 'virtual' . Desta maneira, com a expansão acelerada do setor terciário no bojo da revolução informática, e agora no bojo dos primeiros e sombrios sinais de esgotamento desta 'terceira onda capitalista', emergem como sujeitos históricos privilegiados as legiões de excluídos por este processo, isto é, um 'neolumpesinato' que, ao contrário do lumpenproletariat tradicional, é formado não raro por indivíduos qualificados, mas que não mais conseguem viabilizar-se economicamente no seio de uma entropia crescente das atividades econômicas produtivas. Utilizo aqui o termo 'neolumpesinato' com o fito de sublinhar dois pontos que me parecem cruciais: em primeiro lugar, o facto de que os assalariados do setor terciário não possuem a consciência de classe e a coesão organizativa que o proletariado industrial revelou em seus momentos mais gloriosos, dos quais, claro está, a revolução soviética é o mais eloqüente exemplo; e, em segundo lugar, tendo em mente a legião de excluídos desencadeada pela progressiva 'fadiga' do setor terciário em sua capacidade de agregar nova mão-de-obra. Tal desgaste, aliás, revela como os ciclos de crescimento real de atividade econômica no âmbito do sistema produtor de mercadorias são cada vez mais breves; é facto, por exemplo, que não se geram novos postos de trabalho na UE há pelo menos 20 anos. Assim sendo, vislumbro um 'neolumpesinato' formado, por lado, pelos assalariados do setor terciário e, por outro, pelos excluídos em virtude da precoce decrepitude demonstrada pelo supracitado boom.
Não obstante, o facto de este neolumpesinato estar muito mais aparelhado para compreender o mundo em que vive do que seu correlato passado é, diga-se de passagem, assaz alvissareiro, em termos de esperanças para uma futura mobilização revolucionária.
Estamos sob a égide, conforme já assinalei outras vezes, d'uma verdadeira paralaxe estrutural, que desloca o eixo do processo econômico de forma irreversível da esfera produtiva para a twilight zone do setor terciário, bem como para a esfera puramente especulativa. A atividade industrial perde sua centralidade como locus privilegiado de onde o sistema extrai os recursos para sua auto-reprodução ampliada e, outrossim, o proletariado industrial perde sua centralidade como sujeito privilegiado dos processos revolucionários de superação do sistema produtor de mercadorias; doravante, tal papel estará a cargo de um nebuloso, cambiante e metamórfico neolumpesinato mais ou menos 'especializado', um lumpenproletariat pós-moderno atomizado/gerado pela implosão do setor terciário na atual conjuntura do sistema produtor de mercadorias que é hoje a verdadeira classe revolucionária. O sujeito revolucionário hodierno identifica-se, por conseguinte, com as legiões de excluídos pelo virtual achatamento do setor secundário e pelo esgotamento progressivo da capacidade de absorção do setor terciário, ou seja, o supracitado neolumpesinato gerado pelas metamorfoses do sistema produtor de mercadorias nas últimas décadas.
E eis então que aqui chegamos ao cerne da questão que nos ocupa, ou seja, a natureza dos processos revolucionários no mundo contemporâneo. O que afinal poderá mobilizar o 'neolumpesinato' a superar o estado d'apatia em que se encontra para enveredar pelas sibilinas sendas da transformação revolucionária? Creio firmemente que a clave puramente 'política' não mais poderá servir como força motriz capaz de desencadear qualquer processo revolucionário duradouro no imo do contexto hodierno do Capitalismo; não mais acredito, dessa maneira, na possibilidade da organização política de classe como veículo para a superação dialética do sistema produtor de mercadorias, mas tão somente na emergência de teologias messiânicas da ação revolucionária, que encaro como a única possibilidade de provocar um curto-circuito na própria razão dominadora do Capital, giroscópio conceitual em que se assenta todo o seu edifício. Hoje, mais do que nunca, a instância determinante em última instância não é mais a infraestrutura material, mas sim a superestrutura ideológica; há, pois, uma relação de superveniência desta em relação àquela. O assalto derradeiro e definitivo à ordem estabelecida se dará pela mente, pelo espírito, não pela matéria, pela concretude. O resultado? Imprevisível, um precipitar-se no escuro, um mergulho abissal no oceano ignoto do porvir, como de resto o é e sempre será qualquer transformação revolucionária. Não obstante, os perigos do abismo podem ao menos ser mais estimulantes que a letargia da planície!