segunda-feira, abril 09, 2007

Capitalismo x Feudalismo na perspectiva kurziana

Alphonse van Worden - 1750 AD






O sociólogo e economista marxista alemão Robert Kurz, para além de suas controversas, malgrado percucientes análises a propósito da configuração atual do ‘sistema produtor de mercadorias’, tem sido particularmente útil no desmonte de certas ficções pseudo-revolucionárias, de origem mormente iluminista. Em seu livro Os Últimos Combates podemos encontrar, em diversos ensaios, referências positivas a respeito da sociedade feudal, não apenas no tocante ao processo de modernização que iria redundar, a partir dos séculos XVII e XVIII, na consolidação do capitalismo, mas até mesmo em relações a certos aspectos do próprio sistema capitalista.

Kurz salienta, com freqüência e sempre de modo enfático, que a vida dos camponeses, servos e artesãos medievais era, de uma maneira geral, mais livre e confortável que o padrão de vida do proletariado, e mesmo da classe média baixa, no século XIX e no início do século XX. No ensaio Escravos da luz sem misericórdia, por exemplo, o autor alemão, fazendo um cotejo entre a duração da jornada de trabalho na atualidade e no período medieval, nos diz ser possível constatar, por intermédio da consulta a documentos da época, "que a jornada de trabalho dos servos nas glebas 'devia durar da alvorada ao meio-dia'. Ou seja, a jornada de trabalho era mais reduzida do que hoje não apenas em termos absolutos, mas também relativos, por variar conforme a estação e ser menor no inverno que no verão" (pág.250); n'outra passagem do mesmo texto, escreve o seguinte: "Nos séculos XVIII e início do XIX, tanto o prolongamento absoluto quanto o relativo da jornada de trabalho, por meio da introdução da hora econômica abstrata, foram sentidos como uma tortura. Por muito tempo, houve uma luta desesperada contra o trabalho noturno ligado à industrialização. (...) Quando na Idade Média calhava de os artesãos trabalharem à noite por razões de prazo, cabiam-lhes lautos repastos e salários principescos. O trabalho noturno era uma rara exceção. E consta das grandes 'façanhas' do Capitalismo ter logrado converter o aguilhão tempo em regra geral da atividade humana"(pág.251). Na conclusão deste texto, Kurz faz uma severa crítica ao próprio pensamento marxista, que se converte em 'religião do trabalho': "O Marxismo, em contraste à sua própria pretensão social, foi um protagonista do 'trabalho abstrato', à medida que sucumbiu ao pensamento mecanicista do Iluminismo e a seu pérfido simbolismo da luz" (pág.253).

Observem agora este trecho do ensaio Gênese do Absolutismo do Mercado, onde Kurz analisa o impacto social das transformações ocorridas na fase inicial da implantação do sistema capitalista: "O absolutismo lançara então a primeira base do moderno modo de produção capitalista, ao dar sinal verde para que a economia monetária de mercado suprisse as demandas de seu gigantesco aparato militar e burocrático. A grande maioria das pessoas sentiu esse desenvolvimento como uma repressão insolente e francamente monstruosa. De fato, o antigo e 'simples' feudalismo sangrara apenas superficialmente os camponeses e artesãos da sociedade agrária, os quais reservavam uma pequena parcela de seus produtos aos senhores feudais ou lhes faziam certos trabalhos. Quanto ao resto, no entanto, o feudalismo os deixava em paz. Em seus campos e suas oficinas, eles podiam fazer o que bem entendessem. Além disso, eles dispunham de sua própria administração local" (pág.264). Afirmações como essas que citei não constituem exceções, repetindo-se em diferentes passagens do livro, sempre enfatizando a opressão social da modernidade capitalista frente a uma sociedade feudal onde havia mais liberdade e respeito pela dignidade humana.

Vale dizer que tal contexto de opressão já assumia contornos bem nítidos e inequívocos para muitos autores e pensadores do período em tela. Ao examinarmos a produção literária inglesa dos séculos XVIII e XIX, não é difícil encontrar numerosos testemunhos da brutalidade, sobretudo em termos de relações de trabalho e bem-estar social, que caracterizou a transição da economia feudal para o modo de produção capitalista; assim sendo, as páginas de autores tais como John Ruskin, William Blake, Charles Dickens, Thomas Carlyle, Robert Owen, William Morris estão pejadas de sentimentos de horror, consternação e indignação a propósito dos diversos efeitos dessa perversa dinâmica de transformação sistêmica; com efeito, as más condições de vida da classe trabalhadora não eram o único e, em alguns casos, tampouco mesmo o mais freqüente, alvo dessa rejeição quase generalizada: Ruskin, Blake e Morris, por exemplo, além de condenarem a iniqüidade da exploração econômica capitalista, também verberam contra o pragmatismo espiritual subjacente a tal visão de mundo, bem como chegam a antever, ainda que de forma vaga e intuitiva, que a dinâmica estruturante da ‘nova ordem’ fatalmente conduziria à absorção de toda a vida humana pela lógica fria e implacável da rentabilidade mercantil.

Como reflexão de índole mais analítica e sistemática a propósito do mesmo acervo de temas, lastreada, inclusive, por estatísticas e estudos disponíveis à época, temos o célebre volume A Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra (1845), de lavra do filósofo alemão Friedrich Engels (1820 - 1895); nessa obra, que se reveste de grande importância tanto como testemunho histórico quanto como crítica social, o autor denuncia, nos termos mais candentes, toda a truculência com que vastos contingentes populacionais foram praticamente arrancados do campo e confinados nos arrabaldes das grandes cidades sem as mais elementares condições de moradia, higiene e espaço físico.

Por mais 'heterodoxa' que sua interpretação do marxismo possa parecer, trata-se, creio, d'uma lufada de ar fresco necessária no âmbito dessa corrente de pensamento, que não pode mais coadunar com a pregação renitente e equivocada da Idade Média como tétrica 'idade das trevas', mundo sombrio de opressão e ignorância.

6 comentários:

Anónimo disse...

Outro bom artigo, Alfredo. Não esperava que Kurz se posicionasse de acordo com essa visão sobre a 'iade das trevas'. De fato, 'trevas' constitui, hoje, o caos e desemprego enfrentado por milhares de pessoas em que, se tivéssemos uma jornada de trabalho que pudesse ser dividida entre as pessoas, não haveria tamanho exército industrial de reserva. Por sinal, acredito que uma das poucas soluções que poderemos ter é essa mesmo: diminuição da jornada de trabalho das 40h semanais para 30h semanais sem perda do salário para que possa ter uma diminuição desse desemprego atroz que tira a dignidade de tantas pessoas.

Alphonse van Worden disse...

Pois é... urge, como Kurz também sublinha, uma redistribuição do próprio tempo na contemporaneidade.

Morg Ana disse...

Olá, cheguei aqui através de link em comunidade do Orkut.

Muito bom esse artigo! Gosto de saber sobre a época medieval e dos autores que buscam a verdade e terminam por desmontar as mentiras iluministas.

Fique com Deus!

Alphonse van Worden disse...

Prezada Andréa:

Agradeço imenso pelo comentário, muito obrigado! :-)

Cordialmente,
AVW

Anónimo disse...

isto é um bom artigo demonstra a rivalidade entre povos

Alphonse van Worden disse...

Obrigado pelo comentário!

Atenciosamente,
AVW