Alphonse van Worden - 1750 AD
Tendo em vista o ominoso, malgrado inelutável, facto de que o vasto experimento político-econômico do socialismo fracassou rotundamente, gestando sociedades que em tudo vão de encontro ao ideário proposto à partida por Marx e Engels, bem como às metas advogadas pelas famígeras jornadas d’Outubro; bem como a também insofismável constatação de que o capitalismo liberal, hoje infrene a reinar por todos os quadrantes da Terra, é um sistema autofágico, a predar progressiva e continuamente suas próprias bases de sustentação estrutural, torna-se imperativa a necessidade de encontrarmos uma opção viável, ou seja, um modelo de organização capaz de, a um só tempo, promover justiça social e crescimento econômico, conciliando assim as principais linhas de fuga dos sistemas socialista e do capitalista.
Enfaticamente refratária tanto às assimetrias inerentes ao capitalismo quanto à hipertrofia estatal do socialismo, a doutrina social da Igreja tornar-se-ia fonte de inspiração, mormente através da célebre encíclica
Rerum Novarum (Leão XIII - 1891), de uma das mais profícuas tentativas de estabelecer uma alternativa sólida ao dilema em tela: o ‘distributivismo’ (
distributism), propugnado, sobretudo, pelos insignes escritores católicos Gilbert Keith Chesterton (1874 -1936) e Joseph Hilaire Pierre René Belloc (1870 - 1953), ambos britânicos, em volumes como
What's Wrong with the World (Chesterton - 1910);
The Servile State (Belloc - 1913);
The Uses of Diversity (Chesterton - 1921);
An Essay on The Restoration of Property (Belloc - 1936).
Em que consistiria, pois, o distributivismo? Basicamente no que já está embutido em seu nome, vale dizer, na máxima distribuição possível da propriedade por todos os homens; preconiza, destarte, que os meios de produção devem pertencer ao maior número de indivíduos possível, e não permanecer sob o controle d'uma minoria proprietária (tal como no capitalismo), ou então sob a égide de um estamento gerencial (conforme ocorre no socialismo).
A perspectiva distributivista alega que, no regime capitalista, a propriedade produtiva é, ao fim e ao cabo, apanágio de uma camada minoritária de cidadãos, que acabam por deter uma influência sobre o conjunto da sociedade muito maior do que o que seria de bom alvitre; e malgrado todos tenham, sob o ponto de vista do formalismo jurídico-institucional, direito à propriedade privada, na prática isto acaba por ser prerrogativa quase exclusiva de uma pequena minoria ou, tal como assevera célebre observação de Chesterton, "
too much capitalism does not mean too many capitalists, but too few capitalists" (
The Uses of Diversity); por outro lado, há no âmbito socialista a promessa, de jaez igualmente formal, de um regime coletivo de propriedade, onde todos teriam acesso, consoante sua necessidade, aos frutos do trabalho social; todavia, o que na prática se verifica é a concentração progressiva de todos os ativos econômicos nas mãos do Estado, com o poder real delegado a uma reduzida camada de planejadores e administradores. O pensamento distributivista acredita, portanto, que a atomização das diversas instâncias de propriedade produtiva entre os componentes da comunidade irá garantir um acesso mais equânime aos benefícios oriundos do trabalho; conclui-se, ainda, que quanto maior for a capilarização dos ativos econômicos, maior será não apenas a justiça social, mas também o incentivo para que todos se dediquem de bom grado às atividades produtivas, já que a comunidade perceberá de forma direta e inequívoca os maneios do trabalho.
Buscando um paradigma histórico para o estabelecimento d’uma sociedade genuinamente distributivista no mundo hodierno, Chesterton e Belloc remontam à Idade Média: em sua encomiástica concepção da civilização católica, defendem, com efeito, uma filosofia da História que celebra a Idade Média pela abolição da escravatura; pela ampla difusão da propriedade através do povo; por um significativo grau de liberdade individual; e também pelo florescimento do ensino, das artes, da filosofia e da literatura, que fez a Europa emergir do caos desencadeado pela queda do Império Romano do Ocidente; assim sendo, ambos se debruçam sobre a história do período, de modo a identificar seus traços mais emblemáticos; e uma das características a que nossos autores atribuem grande destaque é o facto de que as guildas (corporações de ofício) não raro limitavam a quantidade de propriedade de que cada um podia dispor (por exemplo, limitando o número de empregados), justamente com o fito de evitar a possibilidade de crescimento exagerado de um determinado empreendimento particular, em detrimento dos demais, que poderiam ir à garra. Tal como Aristóteles e o Doutor de Aquino assinalam, se a propriedade privada tem algum objetivo, este é o de assegurar que cada homem e sua família possam levar uma vida digna, servindo à sociedade com os frutos de seu labor; deste modo, se os negócios d’um indivíduo permitem-lhe sustentar condignamente sua família, que direito teria ele de o expandir, eventualmente privando outras pessoas dos instrumentos e recursos necessários ao arrimo de suas respectivas famílias? A consciência cristã medieval cria (e esta é, diga-se de passagem, uma das características axiais de seu
ethos) que os indivíduos que se dedicavam à mesma actividade não eram rivais ou competidores, mas sim confrades empenhados de corpo e alma na egrégia lide de providenciar à comunidade bens e serviços necessários; outrossim, como irmãos agregavam-se em corporações, velando pelo bem-estar uns dos outros.
Numa sociedade distributivista, por conseguinte, as pessoas seriam capazes de organizar-se em regime de mutualismo, reunindo-se em cooperativas de produção, comércio e serviço, num sistema onde predominaria a solidariedade como princípio não apenas justo, mas racional e eficaz, de interação humana.
No que concerne à organização social, o distributivismo vê na família trinitária (um homem, uma mulher e uma criança) a unidade mais elementar, a pedra basilar na constituição d'uma sociedade harmoniosa; tal núcleo primordial funcionará como alicerce de unidades familiares mais amplas, multigeracionais e interligadas por laços de consangüinidade, que por sua vez desdobrar-se-ão em comunidades locais, regionais e nacionais, e por fim na ‘família’ humana como um todo. Desta maneira, o modelo de organização econômica proposto por Chesterton e Belloc florescerá a partir da família nuclear, não considerada como mônada estanque e impermeável, mas sim como unidade básica e interdependente da sociedade distributivista; tal concepção é, vale dizer, caudatária da noção de ‘subsidiariedade’ esposada pelo Papa Pio XI na encíclica
Quadragesimo Anno (1931), a qual advoga que qualquer atividade produtiva deve ser levada a efeito pela menor unidade possível, de modo a evitar a concentração do poder nas mãos de poucos agentes. Vê-se aqui, portanto, no seio da concepção distributivista, mais uma vez a racionalidade operacional caminhando de par em par com noções de justiça e virtude, pois é facto patente que unidades produtivas menores são em geral mais ágeis e eficazes que macroestruturas burocráticas, pouco importa se de natureza privada ou estatal.
O distributivismo não privilegia, em matéria de ordenamento político, nenhum dos modelos de constituição do Estado existentes, podendo em tese viger tanto sob regimes monárquicos quanto sob republicanos. É mister salientar, contudo, que a doutrina distributivista não se inclina para qualquer extremismo, rejeitando enfaticamente perspectivas de cunho coletivista ou individualista.
Por fim, há que sublinhar a índole em geral pacifista do pensamento distributivista. Chesterton e Belloc opunham-se ao imperialismo britânico, e ambos particularmente condenaram, nos termos mais acerbos, a segunda guerra contra os
boers; não obstante, apoiaram o envolvimento de seu país na I Guerra Mundial, a qual encaravam como justa.
Isto posto, ó supinos confrades, cremos vos ter propiciado, nestes infaustos lustros onde todas as convicções se dissolvem num vórtice caótico de nefárias incertezas, importantes subsídios para a questão mais premente da centúria em que vivemos: a formulação d’uma alternativa concreta para o pesadelo do sistema capitalista.