sábado, setembro 22, 2001

Devaneio onírico à sombra das policromias de nevóas oscilantes...

Devaneio onírico à sombra das policromias de nevóas oscilantes que, na hipnose lunar das miasmáticas madrugadas tartáricas, envolvem os melancólicos contrafortes do Bastiani...



Numa das mais antigas galerias comerciais da cidade de Ooth-Nargai, uma imponente estrutura em pórfiro, adornada por magníficos vitrais purpúreos, representando seres vagamente semelhantes aos sibilantes simurgs da sulfurosa Shandelarash, pavimentada por lajes de mármore negro e azul, e encimada por um teto rendilhado em hipnóticas abstrações geométricas que, de certo modo, evocavam as evanescentes muralhas de Evantarek, havia, segundo me disseram, uma fabulosa loja de discos, especializada em obras raras, e que possuía em seu acervo gravações de peças jamais lançadas, e até mesmo, especulava-se, registros de músicas imaginárias... Morando nos arredores da cidade, cujo centro parecia estar a cada ano mais distante, era-me custoso ir até a galeria, uma vez que para nós, criaturas periféricas, tornava-se difícil a orientação nos meandros labirínticos de uma arquitetura lúgubre e ominosa; a necessidade, contudo, haveria de resolver a questão: um antigo pagamento, já há muito prometido, finalmente estava à minha disposição. A sensação de poder gerada pelo dinheiro (uma quantia bastante razoável, asseguro-lhes) encorajou-me a procurar a famosa loja; para minha grata surpresa, não foi uma tarefa das mais árduas. O majestoso edifício rubro era uma construção única, distinguindo-se facilmente na monotonia cinzenta da paisagem urbana.

Ao atingir os majestosos portais de ônix que guarneciam sua entrada, percebi o profundo silêncio que emanava da galeria, em flagrante contraste com o ruído que se poderia esperar de um centro comercial. Um oceano iridescente de radiações cintilantes, que jorravam em sucessivas rajadas dos vitrais escarlates, envolvia o longo e largo corredor num tiroteio de reflexos flamejantes, fornalha infernal de nácares sangüíneos; as lojas, todas de igual tamanho, e com seus nomes cravejados em letras de bronze de feitio similar, estavam fechadas, o que não era de se esperar na manhã de um dia de semana. Decepcionado, e, em certa medida, um pouco aturdido, continuei percorrendo a galeria, apenas para me certificar de ser esta a correta localização da loja. Alguns passos depois, estava diante de um letreiro que dizia: MÚSICA DAS ESFERAS; não podia haver qualquer dúvida. Todavia, à diferença dos demais estabelecimentos, um delgado feixe de luz escapava pelo vão das portas de jade que a encerravam; além disso, uma inexplicável sensação de movimento parecia indicar que a loja estava funcionando. Convencido por estes indícios, animei-me a entrar. No mesmo instante, a tênue luminosidade deu lugar a uma penumbra indistinta, e o movimento evaporou-se em uma sala vazia, desprovida de móveis ou quaisquer outros objetos.

Era-me custoso acreditar no que estava vendo: não havia nada, qualquer vestígio de um ambiente ocupado por um ser vivo, mas apenas um deserto de rudes paredes de granito há muito esquecidas; todavia, a curiosidade me impelia, precisava descobrir algo que me dissesse o que ocorrera. Até que, em meio às sombras, esbarrei em uma pequena tabuleta pendurada na parede dos fundos. Aproximando-a dos olhos, pude ler os seguintes dizeres:


Em virtude da realização de obras para ampliação da loja, com o objetivo de proporcionar mais conforto aos nossos fregueses, estamos funcionando provisoriamente no subsolo da galeria.

Agradecendo antecipadamente vossa compreensão,

A Gerência



Apalpando mais detidamente, descobri tratar-se não de uma parede, mas de uma porta; e então pensei, com revigorada, embora não muita sincera disposição, que o desejo de conhecer o legendário estabelecimento não me seria afinal negado...

O que vinha a seguir era um longo, escuro e estreito corredor, bafejado por lufadas sucessivas de um mofo ancestral, o que parecia indicar um abandono secular; no fim do caminho, deparei-me com o início de uma escada em espiral. A diáfana claridade, entrevista depois do sexto ou sétimo degrau, dava-me direito a acreditar que meu destino estava próximo; expectativa que, no entanto, desapareceu assim que transpus o oitavo degrau. Continuei descendo e, para meu espanto, os reflexos de luz periodicamente surgiam e desapareciam, num ritmo ditado por um mecanismo misterioso, cujo compasso, em sua insólita intermitência, escapava à mais sutil das lógicas.

Dezenas de degraus mais tarde, desembarquei em uma pequena sala retangular, decorada apenas por um imenso candelabro de prata, engastado com minúsculas safiras, esmeraldas e rubis formando singulares mosaicos; a visão do conjunto despertava sensações de um passado cruel e inaudito; meditei, por alguns instantes, a respeito do eventual significado que tais engastes poderiam encerrar, mas não logrei encontrar uma resposta razoável. O impulso de seguir adiante, contudo, ainda predominava sobre a profunda inquietação que a enigmática peça suscitava; prosseguir era, portanto, imperativo.

O local conduzia a uma outra escadaria, esta mais ampla e ventilada, iluminada fracamente por archotes dispersos em suas paredes de pedra; um murmúrio, a princípio indefinível, chegava a meus ouvidos. Enquanto descia, o zumbido gradativamente transformava-se em algo semelhante a vozes humanas. Intrigado, parei de descer de colei a orelha a uma das paredes: tive então plena certeza de que se tratavam de vozes humanas. Porém, quando estava prestes a extrair alguma palavra da informe massa sonora, os sons desapareceram subitamente, dando lugar à mais impenetrável quietude, um manto noturno de silêncio que desvelou-se sobre tudo. Voltando a descer, notei que a distância entre as paredes começou a estreitar-se; em poucos instantes, tornou-se exíguo a ponto de dificultar até mesmo a passagem de um homem esguio como eu. Todavia,após longos minutos de aflição, senti uma leve brisa acariciando-me o rosto. A aragem se intensificou passos à frente, trazendo algum alento, um sopro de esperança para meus debilitados sentidos; foi então que, de súbito, sem o menor alarde, um fortíssimo jorro de luz inundou-me os olhos.

A impetuosidade coruscante dos trovões brancos de energia pura que desabavam sobre mim, destruindo qualquer senso de percepção que porventura houvesse preservado, tornou quase imperceptível o momento sublime em que, abandonando a sufocante escadaria, voltei a caminhar livremente por um espaço amplo. Após longos minutos de espera, quiçá mais duradouros que as eternidades que nossas temerárias almas engendram, a tempestade de luz começou a suavizar-se, permitindo-me contemplar um dos mais impressionantes milagres cruéis que as instâncias supremas permitiram à obscura existência humana divisar: caminhava agora através de um monumental salão de mármore nacarado, iluminado por gigantescos lustres de cristal. A ausência de paredes, substituídas por imponentes fileiras paralelas de colunas dóricas, fazia com que os limites do local (se é que estes existem, fato que até hoje não pude comprovar) se dissolvessem nos confins de uma refração luminosa argentina, inacessível ao olho humano. O teto elevava-se à uma altura tão incomensurável, que os lustres, cuja dimensão deveria ser tratada em termos de dezenas de metros, transformavam-se em pequeninas lâmpadas bruxuleantes. A luz que emitiam, em contraste com o turbilhão que há pouco me assaltara a visão, conferia uma iluminação vaporosa, diáfana ao grandioso salão, dando ensejo à uma intrincada geometria de sombras e reflexos.

A medida em que prosseguia, começou a entrar em meu campo visual a presença de uma ciclópica coluna azulada, que se distinguia das demais não apenas por sua coloração diferente, mas por sua largura infinitamente maior do que a de qualquer coluna já concebida pela imaginação humana. Caminhando a passos rápidos em direção ao colosso silencioso, com a alma dividida entre a descoberta da redenção e a iminência da tragédia, comecei a observar algumas características da titânica estrutura. O topo, imerso nas sombras indistintas que envolviam o teto do salão, dava, entretanto, a nítida impressão de ultrapassá-lo; a base estava circundada por manchas negras, talvez dejetos acumulados ao longo de anos, séculos, talvez milênios; e por fim, a característica mais misteriosa: a coluna era percorrida de cima a baixo por um incessante ponto luminoso.

Após algumas horas de angustiosa peregrinação, dois enigmas estavam solucionados: os detritos que pejavam a base do monumento nada mais eram do que dezenas de corpos humanos, espalhados ao seu redor e em torno de outras colunas; e o anteriormente pequenino ponto luminoso convertera-se num monumental elevador de portas de bronze. Aterrado, aproximei-me dos corpos que emolduravam a coluna principal. Ali jazia um amontoado de homens e mulheres de diferentes idades e raças, cujo único ponto de convergência era o fato de todos estarem trajados de negro. Chegando mais perto, verifiquei que não estavam mortos; ao contrário, respiravam com sofreguidão, e tinham suas faces de máscara de cera iluminadas por olhos invariavelmente arregalados. Percorrendo a base da coluna, notei que um deles, um homem de meia-idade, cujo rosto era adornado por uma copiosa barba ruiva, ainda conseguia manter-se sentado e, por instantes, parecia mover lentamente os olhos. Ajoelhei-me, então, diante dele, e perguntei: "o que está acontecendo?" Percebi que seus olhos cinzentos me encaravam, mas a boca escancarada não emitia qualquer vestígio de som. Exasperado, segurei-o pela gola da camisa e comecei a sacudi-lo, repetindo a pergunta. De repente, um balbucio chegou, remoto, a meus ouvidos: "est..." Encostei-me a sua boca e novamente o sacudi. O fragmento sonoro antes esboçado completou-se: "estamos esperando...". A perspectiva de decifrar aquele código secreto estimulou-me a insistir. Com os olhos cada vez mais esbugalhados, o espectro humano continuou com suas emissões intermitentes: "estamos esperando o momento..." , frase que repetiu algumas vezes. Depois disso, calou-se novamente. Furioso, agarrei sua cabeça, batendo-a com toda a violência contra a superfície da coluna.

Após este absurdo acesso de loucura, em que julguei tê-lo matado, percebi que continuava vivo, encarando-me com os mesmos olhos tetricamente abertos, com a mesma mudez impiedosa. Formulei, então, mais uma vez a pergunta; e enfim, o murmúrio, egresso das profundezas abissais daquele ser ausente, vinha à tona novamente, desta vez completo em sua alucinante lógica do inominável: "estamos esperando o momento de iniciarmos outra espera...". Desistindo de uma vez por todas de todo e qualquer sentido, larguei aquela massa inerte, recuei e dirigi meu olhar ao elevador, contemplei, paralisado, os números de seu enorme mostrador, que iam de 0 a 1000, estando este último número iluminado. Por longos minutos, projetado numa dimensão para além do espaço e do tempo, vislumbrei aquele inatingível sinal luminoso. Tão absorto estava naquela espécie de transe alucinógeno que mal percebi o vagaroso, porém contínuo, movimento iniciado pelo sinal de luz para baixo, acompanhado pelo imponente ponteiro do mostrador. Após mais alguns instantes de letargia, reparei que o elevador estava efetivamente descendo. Um frenesi de excitação incontrolável atravessou-me as entranhas; ia, enfim, me ver livre daquela legião de íncubos demoníacos, voltar para a superfície, para casa, para a periferia, para longe do centro da Terra, do vórtice funéreo... Mas quando o ponteiro, acompanhado por uma intensa luminosidade advinda da fresta entre as portas do elevador, atingiu o número 0, o pesadelo retornou em velocidade redobrada: os portões de bronze permaneceram fechados. Desesperado, esmurrei-os de todas as maneiras possíveis, tentei separa-los até o limite de minhas já esgotadas energias, num esforço vão, inútil. Em um espasmo de entendimento, compreendi em toda extensão de sua terrível e pavorosa simplicidade, o sentido das palavras sussurradas pelo espectro ruivo. Poucos minutos depois, o mefistofélico mecanismo voltou a subir, em seu ritmo imperturbável de coisa eterna e universal, presente desde o alvorecer dos tempos...

Nos primeiros dias, e talvez mesmo nas primeiras semanas, ainda esperei o momento da libertação, a epifania ansiada; logo, porém, parei de me indignar, de tentar reverter o irreversível. Gradativamente, sentei-me junto à coluna, e então, estendi-me, irresgatável, sobre a glacial superfície de mármore. Meus olhos não mais se fechavam; a boca, seca, escancarava-se num lamento sem voz. Nada mais me restava, para além da noite eterna do Tempo, senão esperar, continuar esperando pelo momento de iniciarmos outra...

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira do Norte - Deserto dos Tártaros