quarta-feira, outubro 15, 2025

A propósito de ZANGUEZI (1922 / Velimir Khlebnikov)





Não é sempre que se tem a oportunidade, o privilégio e a ventura de se ler Велими́р Хле́бников (nosso venerando y venerável Velimir Khlebnikov) em bom (e deveras inventivo) português; oportunidade essa que desta feita nos chega pelas competentes mãos de Mário Ramos, poeta e professor de literatura russa na USP desde 2010. 

A obra traduzida por Ramos não poderia ser mais fascinante: Зангези / ZANGUEZI (1921-22 / ed. bras. Nauta 2025), sem dúvida um dos textos mais fascinantes e representativos do autor que V. Maiakovski um dia descreveu como o "Colombo dos novos continentes poéticos, agora povoados e cultivados por todos nós".

Mas que seria este ZANGUEZI, se calhar a grande síntese, a pedra filosofal do projeto estético, poético, conceitual y existencial de Khlebnikov? É decerto um 'monólito negro' em forma de texto literário, diria eu já à partida; um enigma no seio d'outro grande enigma, qual seja, seu próprio criador, este paradoxal, desconcertante, inefável amálgama entre bardo, profeta, linguista, sacerdote, matemático e magnetizador do fogo dos deuses. 


I


A começar pelo título: ZANGUEZI. Alguns estudiosos sustentam que seria um portmanteau formado pela combinação entre os rios Zambeze e Ganges, revelando o fascínio do pai fundador do cubofuturismo pela geografia de países 'exóticos' e remotos para o imaginário europeu do período; outros tantos acreditam que possa ser um neologismo derivado do vocábulo calmuque (povo nômade de origem mongol) zyange (que poderia ser traduzido como 'o mensageiro'),  dando conta dos estudos de linguística de Khlebnikov em S. Petersburgo. Ambas as hipóteses são razoáveis e plausíveis - inclusive perfeitamente complementares; entretanto, eu humildemente aventaria uma terceira possibilidade: o escritor eslavo desejava criar uma fraternidade transfinita y transcendental entre seu alter ego espiritual, o Zaratustra histórico da antiga Pérsia e o Zaratustra filosófico de Nietzsche, tão vastas, insondáveis y inextricáveis são as labirínticas (inter)conexões do espírito humano.


II


Isto, pois, quanto ao título. E no que se refere ao gênero, que seria ZANGUEZI? Vejamos o que afirma Khlebnikov em sua introdução ao poema:

“Uma narrativa é construída com palavras, assim como um edifício é construído por unidades. A supernarrativa, ou transnarrativa (сверхповесть) é constituída por fragmentos independentes.”

Este novo gênero, criado pelo poeta para classificar trabalhos sui generis como ZANGUEZI, KA (1915) etc. envolve fundamentalmente uma fusão / combinação - em aparência caótica e aleatória, mas estruturada a partir de uma lógica interna sobremaneira complexa e rigorosa - entre mais os diversos registros, literários e não-literários. Destarte, coexistem na obra a poesia lírica, o poema em prosa, a profecia bíblica, a narrativa épica arcana, a paródia do ensaio acadêmico etc. 

ZANGUEZI é tudo isso, muito embora não possa ser decomposto nos componentes que em tese constituem seu conjunto - se é que os srs. me compreendem. É sintético, misteriosa e elusivamente sintético, totalizante, mas não analítico - malgrado possamos dizer que foi planejado e executado por seu autor com a precisão de um tratado de lógica simbólica.  É sobretudo uma obra a que se pode atribuir o qualificativo de intemporal / atemporal com inteira e absoluta justiça: por um lado, em numerosas passagens soa quase como se fora uma espécie de pendant do GILGAMESH mesopotâmico, evocando o assombro, o terror, o tremor y o êxtase das cousas que pertencem à aurora da História; por outro contudo, não raro transmite a sensação d'um texto que poderia ter sido composto na manhã de hoje. 


III 


Tal é a estrutura, a moldura. Mas e a substância, a matéria de que são feitos os sonhos, pesadelos, delírios & ideais de ZANGUEZI - ou pelos de algumas de suas passagens mais emblemáticas? Trata-se de ZAUM - neologismo formado pelo prefixo за́ ('além', 'trans') e pela palavra умь ('mente', 'conhecimento', 'razão'); um termo cuja mera prosódia já reverbera um sentido mágico, encantatório - ZAUM / ALAKAZAM / ABRACADABRA

Concebido inicialmente pelo poeta Aleksei Kruchyonykh, fraterno amigo de Khlebnikov (com quem aliás colaboraria em diversos projetos), e ulteriormente desenvolvido por ambos, ZAUM pode ser definido como o 'idioma transmental / transracional'. É a linguagem universal do Inconsciente, que ultrapassa / transcende os limites da razão e do pensamento. Refletindo os aspectos mais utópicos do socialismo, seus criadores acreditavam que ZAUM poderia ser um instrumento fundamental para a criação de uma nova consciência coletiva, uma ferramenta crucial no processo de formação do Novo Homem. 

Não obstante, com o autor de A TROMBETA DE MARTE as coisas nunca são assim tão óbvias e unidimensionais; há sempre algo além, outras galáxias, outras dimensões.  Assim sendo, Khlebnikov também caracteriza ZAUM como a "linguagem dos pássaros" (ecos de Farid al Din Attar?); ou a "linguagem dos deuses" (Agrippa?); e ainda a "linguagem das estrelas" (John Dee?); outras galáxias, outras dimensões... universos paralelos.

Na prática, ZAUM se vale de procedimentos tais como a radical desconstrução morfológica, sintática e semântica do idioma; invenção incessante de neologismos; amplo emprego de toda sorte de jogos de palavras, bem como de assonâncias, aliterações etc. Ou seja, um laboratório de audaciosos experimentos linguísticos em moto contínuo. 

Além de ZANGUEZI e KA, suponho que a obra em que ZAUM atinge sua potência máxima de expressão seja a ópera VITÓRIA SOBRE O SOL (Победа над Cолнцем / 1913), porventura o texto-assinatura, o grande carro-chefe do futurismo russo como um todo, de certo modo encapsulando suas melhores possibilidades. É outrossim uma obra-vitrine, pois é o fruto coletivo de um verdadeiro dream team da vanguarda soviética:  libreto de  Kruchyonykh, prólogo de Khlebnikov, cenografia do mítico artista plástico Kazimir Malevich e música de Mikhail Matyushin, compositor hoje relativamente obscuro, mas à época figura de bastante renome.  


IV


Não poderia encerrar este artigo sem acrescentar uma ou duas palavras a propósito d'um dos elementos por assim dizer mais inelutável inequivocamente crípticos na obra de uma figura por si só tão essencialmente elusiva quanto Khlebnikov: as 'Tábuas do Destino'. 

Com efeito, é o nome que ele atribui a um insólito conjunto de fórmulas matemáticas que alegava ter concebido, e que poderiam ser utilizados para descobrir a existência de padrões cronológicos relativos a eventos históricos marcantes para a Humanidade. Por intermédio desses padrões, o poeta russo  julgava ser possível prever / estabelecer com considerável grau de certeza as datas de acontecimentos futuros importantes. 

Khlebnikov ficou de tal modo obecado com suas 'tábuas' que chegou a dedicar um livro inteiro a esses cálculos e especulações; desafortunadamente, até hoje não há tradução alguma desse trabalho, que imagino ser estrondoso. 


*


De resto, deixo vossas senhorias com um breve tributo que escrevi em louvor a este maravilhoso, incomparável escritor (V); e por fim,  com que o realmente interessa: alguns excertos de ZANGUEZI, na primorosa tra(trans)/recriação de Mário Ramos (VI). Os trechos escolhidos  ilustram bem, assim espero, algumas das facetas mais notáveis / idiossincráticas do poema: as 'tábuas do destino'; correlações misteriosas entre geometria e linguagem; o uso de ZAUM; os vertiginosos rasgos proféticos. 


*


V


ELE, que esbofeteou o Rosto do Público, preparou uma Armadilha para os Críticos, assumiu a presidência do Globo Terrestre e fez soar a Trombeta de Marte, tomando de assalto os insondáveis abismos siderais!


ELE, que nos revelou a Palavra como Tal; nos comoveu pela Fome; nos encantou pelo Riso; e que, magnetizando o Fogo dos Deuses, nos mesmerizou com a Linguagem Transmental, conquistando os infindos universos do inconsciente cósmico!


ELE, Arcano Transfinito, VELIMIR KHLEBNIKOV!!!

   


VI


PLANO IV


(...) As tábuas do destino! Eu vos talharei em letras da noite negra, tábuas do destino! 

Três números! O meu eu da juventude, o meu eu da velhice, o meu eu da meia-idade: juntos sigamos pelo pó dos caminhos! 

105 + 104 + 115 = 742 anos e 34 dias. Leiam, olhos, a lei da ruína dos impérios.

Eis a equação: X = k + n (105 + 104 + 115 - (10² - (2n - 1) 11) dias. 

K é o ponto de partida no tempo, a marcha dos romanos sobre o leste, a batalha do Ácio. O Egito rendeu-se à Roma. Isto foi em dois de setembro do ano 31 A.C. 

Com n=1, o valor de X na equação da ruína dos povos será o seguinte: X=21 de Julho de 711, ou o dia em que a Espanha perdeu sua imponência, conquistada pelos árabes. Caiu a imponente Espanha!

Com n=2, X= 29 de Maio de 1453:  foi o dia da tomada de Constantinopla pelos turcos selvagens. A cidade dos reis inundou-se de sangue e as gaitas de fole turcas transbordaram seu encanto selvagem. Osman pisoteou o cadáver da Segunda Roma. Na catedral de Sofia dos olhos azuis estava a capa verde do Profeta. Sobre os cavalos pançudos vão os vencedores, de turbante branco na cabeça.

A canção das três asas do destino: uma no cravo, outra na ferradura! A unidade sai de cinco e vai para dez, da asa para a roda, e os movimentos dos números em três bases (105 , 104 , 115 ) são fixados pela equação.

Entre a queda da Pérsia, em 1º de outubro de 331 a.C., sob a lança de Alexandre, o Grande, e a queda de Roma, sob os golpes potentes de Alarico, em 24 de agosto de 410, passaram-se 741 anos, ou (10⁵ + 10⁴ + 11⁵) – 3⁶ + 1,5 + 1/2 - 2³ × 3² dias.

As Tábuas do Destino! Leiam, passantes, leiam. Os números guerreiros passarão diante de vós como projeções filmadas em diferentes segmentos de tempo e em diferentes planos de tempo. E todos os seus corpos, de diferentes cidades reunidas, compõem o bloco de tempo entre as quedas dos impérios que traziam o horror.


___


PLANO VIII 


Esta é a língua estelar.

(...)

V significa a rotação de um ponto em torno de outro

(o movimento circular).

L é a quebra da queda, ou os movimentos que, em geral,

vão de um plano a um ponto em queda, em linha transversal (lancha, loar).

R é um ponto que atravessa transversalmente uma área.

P é o movimento rápido de um ponto que sai de outro ponto, e assim, de muitos pontos para outros, uma multidão pontilhada a partir de um ponto; a expansão do volume (pairar, planície).

M é a pulverização do volume em infinitas pequenas partes.

S é a saída de pontos a partir de um ponto imóvel (sinergia).

K é, aqui, o ponto de encontro dos movimentos de muitos pontos num ponto imóvel. Assim, o significado de K é a tranquilidade, a aquietação (...). 


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PLANO X 


Vai, poderói!

Marcha, poderói! Possarda, possardor!

Possaz, eu podo!

Poderudo, eu posso! Podei, eu podo!

Podei, meu eu prumado! Aprumado! Podei, posseidor!

Poderandai, olhos! Prumados! Aprumados!

Desfilai, podeidades!

Marcha, posseidor! Mãos, mãos!

Possálico, podivinoso semblante

cheio de pondorações!

Poderardentes olhos,

posselhonários pensares,

pondereiros sobreolhos!

O rosto dos pondentreiros.

A mão dos pondentreiros!

Possenvasores!

Mãos, mãos!

Possublimes, possálicas, podivinas.

Portenteiras, potenciosas, poderousadas!

Posserga-se, semblante!

Onipodentes, posserosas, podeidades!

Vocês espalharam-se, cabelos, possindígenos,

Poderanos: poderdeiros, pelo possenhor podivinoso,

por podescendentes,

No meio dos possinfantes: o potentaço, dos poderozes proverossimeis,  

Enrosca-se um sapoderoso,

Possencantado por podivineiros podencantos de possentes  posselhardários. 

Na multidão de possinfantes e poderdeiros.


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PLANO XVIII


Quando a Horda do Leste 

Saqueou as ruas de Roma, 

E fez do branco mármore negros grilhões, 

Dando de comer às legiões de corvos,

Dentro de duas vezes três à décima primeira 

Ergueu-se de novo a montanha de ossos:

Batalhas nos campos de Kulikovo.

Nisto Moscou punha os pingos nos "is", 

Escrevendo com as tintas das vitórias, 

Do fado de Roma, uma nova história.

Do Leste dos povos cessou a metralha, 

Acabou-se a grandiosa batalha 

Com a carga dos povos do Leste.

O moinho dos tempos 

Dos ossos de Kulikovo

Construiu um dique, um morro de esqueletos. 

Na estepe corre o grito: "Não!" 

É de Moscou o guardião.

Ondas de povos em profusão 

Sobre o Ocidente rolavam 

Os godos, os hunos e mais os tártaros. 

Dentro de duas vezes três à décima primeira.

Moscou ergueu-se num elmo de neve, 

E disse: “Nem mais um passo!" ao leste.

Lá, onde secava a terra tártara (...)



*


Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros