quarta-feira, junho 05, 2024

Ainda a propósito de OUT1: NOLI ME TANGERE...



Trata-se d'uma obra de tal modo impressionante y idiossincrática que não resisto a registrar mais algumas observações a propósito. 


- indagado anos mais tarde sobre o significado do título, Rivette declarou o seguinte: "Escolhi OUT em contraposição ao anglicismo 'In', então em voga na França, e que eu achava uma tolice. E como o filme tem uma estrutural serial, que poderia se desdobrar em vários episódios, acrescentei também o número 1." A resposta do cineasta demonstra a que ponto ele estava consciente do desafio que um filme como aquele representava, mesmo num contexto ainda plenamente receptivo às experimentações da Nouvelle Vague. É como frisei em minha resenha: Rivette decidiu levar às últimas e mais extremas consequências todo o universo estético, conceitual y espiritual da Nouvelle Vague, não apenas sem fazer qualquer tipo de concessão, mas indo muito além de tudo que fora proposto antes pelo movimento. Com OUT 1 ele dobra, triplica, quintuplica a aposta, traça a linha de demarcação definitiva: doravante somente os mais fiéis entre os fiéis o acompanharão.    

- O poder encantatório do verbo; o condão taumatúrgico, a energia mística da palavra enquanto tal; a autoconsciência progressiva no tocante aos procedimentos e recursos da linguagem, tal como Paul Valéry advogava. Tais são as grandes coordenadas do universo de OUT 1.

- De resto, volto a sublinhar: "cheguei a um estágio em minha trajetória como espectador y ouvinte em que a circunstância de 'gostar' ou não de um filme, uma peça de teatro, um disco está longe de ser o mais importante: importa antes o ASSOMBRO, o espanto, o pasmo, a infinita perplexidade." OUT 1 é se calhar o mais consumado exemplo desta disposição.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

Breve nota sobre um certo princípio e suas trágicas consequências...

 Alphonse van Worden - 1750 AD



Aqueles que se interessam verdadeiramente a sério pelo debate de ideias (e isto se aplica a qualquer área do conhecimento) devem ter em mente dois procedimentos basilares:


- a necessidade constante de investigar as origens, os fundamentos conceituais das doutrinas e sistemas de pensamento em voga na contemporaneidade;

- o imperativo tanto filosófico quanto ético de conhecer bem o pensamento de seus opositores.


Tendo isso em mente, estive a reler c/ muito proveito e prazer - afinal de contas, trata-se também d'um livro maravilhosamente bem escrito - o célebre ensaio ON LIBERTY (1859), do inglês John Stuart Mill, s/ dúvida um dos alicerces teóricos fundamentais do liberalismo.

Considerai, estimados irmãos d'armas, por exemplo, esta passagem, presente já no capítulo de abertura (I - INTRODUCTORY):


"The object of this Essay is to assert one very simple principle, as entitled to govern absolutely the dealings of society with the individual in the way of compulsion and control, whether the means used be physical force in the form of legal penalties, or the moral coercion of public opinion. That principle is, that the sole end for which mankind are warranted, individually or collectively, in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-protection. That the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilised community, against his will, is to prevent harm to others. His own good, either physical or moral, is not a sufficient warrant. He cannot rightfully be compelled to do or forbear because it will be better for him to do so, because it will make him happier, because, in the opinions of others, to do so would be wise, or even right. (...) The only part of the conduct of any one, for which he is amenable to society, is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign."


Toda a lógica estruturante não só da ética anarcocapitalista, do ideário transumanista, mas também do identitarismo liberal de esquerda, da ideologia de gênero, as pautas do feminismo ("meu corpo, minhas regras"), do movimento LGBT etc., tudo isso já está plenamente presente em potência no excerto supracitado.

Não obstante, como eloquente prova do vertiginoso processo de decadência intelectual e moral vivido pela Humanidade nos últimos 200 anos, reparem como o próprio Mill estabelece inequívocos limites para o domínio de aplicação de seu próprio Princípio:


"It is, perhaps, hardly necessary to say that this doctrine is meant to apply only to human beings in the maturity of their faculties. We are not speaking of children, or of young persons below the age which the law may fix as that of manhood or womanhood. Those who are still in a state to require being taken care of by others, must be protected against their own actions as well as against external injury."


Atentai: It is, perhaps, hardly necessary to say, vale dizer, "é porventura desnecessário salientar"; penso ser outrossim desnecessário frisar que um autor como Mill julgaria absolutamente monstruosa, por exemplo, a hipótese d'uma criança ter o direito de optar por uma 'cirurgia de redesignação sexual'. E no entanto...