terça-feira, agosto 22, 2023

A propósito de PARIS, TEXAS (1984 / Win Wenders)



- O texto a seguir assumirá o formato d’um conjunto de notas esparsas, já que há certas obras que, creio eu, jamais conseguirei resenhar de forma sistemática, convencional.


- Mamãe costumava descrever PARIS, TEXAS (Win Wenders / 1984) do seguinte modo: ‘fdp débil mental ferra c/ a vida de todo mundo; depois some do mapa; então do nada reaparece; faz a maior cagada do mundo novamente; e some mais uma vez’. - Uma sinopse jocosa, um review for dummies, digamos assim. Pensado, não obstante, por alguém que certamente estava longe de ser uma pessoa tola ou ignorante; antes pelo contrário, aliás: era uma cinéfila cultivada, de gostos refinados, apreciadora de rematados artífices da sétima arte como R. Bresson e C.T. Dreyer. Ao que acrescento: a despeito do que suas palavras à partida possam transparecer, ela gostou do filme. Muito até. Bem mais do que desejaria de ter gostado, diga-se de passagem. Pois em verdade PARIS, TEXAS pertence àquela seleta plêiade de obras de arte capazes de arrojar o espectador / ouvinte / leitor etc. no olho do furacão, num avassalador tsunami de emoções, sensações, y recordações. 


- Também eu fui fortemente atingido, golpeado em cheio em cheio no plexo solar da alma por esta obra devastadora, não somente o ponto culminante na trajetória de seu diretor mas também se calhar o filme mais emblemático em toda a década de 80, e até mesmo uma das grandes obras-primas da história do Cinema. Lembro-me como se fosse hoje: numa época em que abençoadamente não se era enxotado da sala de projeção após o término da sessão, permaneci estático / extático / mesmerizado em minha poltrona durante nada menos que QUATRO sessões consecutivas, e isso em se tratando d'um filme c/ quase duas horas e meia de projeção. Produto d'um casamento essencialmente disfuncional, filho d'um pai excêntrico / esquisitão (muito embora sob outros aspectos y circunstâncias), não é difícil imaginar porque PARIS, TEXAS me comoveu tão profundamente (e agora os srs. naturalmente compreendem porque outrossim sensibilizou minha mãe - que inclusive sabiamente não quis assisti-lo à época). De maneira que muito embora seja desde sempre um de meus filmes favoritos, é obra a que retornei tão somente duas vezes desde então: uma vez lá por meados dos anos 90 e agora neste fim de semana último. Há que ter cautela c/ estas altíssimas voltagens de 'vastas emoções e pensamentos imperfeitos' (Rubem Fonseca)... 


- Recorrendo cá a um surrado clichê da exegese crítica, PARIS, TEXAS é uma obra que opera em vários níveis, se desdobra em várias camadas. Dialogando morfológica, sintática y semanticamente c/ a avgvsta tradição da Hollywood Renaissance (filmes como THE SWIMMER, MIDNIGHT COWBOY, FIVE EASY PIECES, A WOMAN UNDER THE INFLUENCE etc.), Wenders (re)visita / ressignifica gêneros consagrados do panteão cinematográfico americano, reconfigurando-os sob uma perspectiva espiritual y estética que eventualmente só um estrangeiro poderia ser capaz de fazer. Pois essa é uma das claves fundamentais de PARIS, TEXAS: tal como tantas vezes sói acontecer na história de Hollywood, temos um forasteiro (que já foi Fritz Lang, Jean Renoir ou Billy Wilder) criando um complexo y imersivo painel da alma profunda da America. Assim sendo, o filme é, por exemplo, tanto um road movie (magnificamente registrado pela fotografia de Robby Müller, "intensa, radiante, ampla, límpida, altaneira, generosa, espraiando-se por desertos majestosos, desfiladeiros profundos e crepúsculos incandescentes", ecoando aqui o que assinalei a propósito de outro clássico da vertente - EASY RIDER) quanto western existencialista nas inclementes pradarias da pós-modernidade ( não me deixa mentir o inolvidável desfecho, com Travis Henderson partindo solitário em direção às terras sombrias do esquecimento de si mesmo, após ter levado a cabo sua derradeira missão), bem como um drama psicológico de finíssima carpintaria dramatúrgica (Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski sobretudo, mas também Dean Stockwell e o próprio menino Hunter Carson, todos eles nos brindam c/ interpretações definitivas, mergulhos abissais nos báratros insondáveis da existência humana, twilight zone de obsessões, sonhos, temores e desejos). 


- Meditação sobre a traiçoeira dialética danação / redenção; sutil e sensível 'estudo de caso' sobre as relações familiares, radiografando o irresgatável naufrágio de um casamento, bem como as tão delicadas e movediças linhas de demarcação entre os laços viscerais que ligam um filho a seus pais biológicos, por mais problemáticos que eles possam ser, e por outro lado a ligação sempre d'algum modo 'subsidiária' que se estabelece c/ os pais de criação, por melhores que eles sejam; retrato a um só tempo poético e cruel da alienação, solidão y sentimento de crescente  dissociação que caracterizam a vida na metrópole contemporânea (a esse respeito merece especial destaque a fortíssima sequência do 'pregador maldito' anunciando o fim do mundo), Win Wenders nos oferece, pois, uma ampla, multifária gama de itinerários e possibilidades. 


- Com suas paisagens monumentais; suas infindáveis autoestradas atravessando o deserto e a alma; seus labirintos de viadutos, avenidas, malls y outdoors refulgindo sob a espectral fantasmagoria das luzes de neon, um filme como PARIS, TEXAS exibe de forma particularmente dramática e efetiva um impressionante paradoxo: quão perversamente sedutora pode ser a mitologia larger than life de uma sociedade cada vez mais caótica ("Moloch whose skyscrapers stand in the long streets like endless Jehovahs! Moloch whose factories dream and croak in the fog! Moloch whose smoke-stacks and antennae crown the cities!" - Allen Ginsberg) e desesperada ("America why are your libraries full of tears?" - idem), mas ainda assim pulsando vertiginosamente c/ a esplêndida e torrencial energia de mil supernovas ("Strong, ample, fair, enduring, capable, rich (...) Chair’d in the adamant of Time" - Walt Whitman). 


- Por fim, seria um sacrilégio falar sobre PARIS, TEXAS sem mencionar sua absolutamente antológica trilha sonora. A cargo do guitarrista Ry Cooder, trata-se d'uma navalha na carne aural, um verdadeiro réquiem em forma de delta blues, country e tex-mex music.

E é isso. 



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros


segunda-feira, maio 29, 2023

Brevíssima nota sobre a grandeza das nações


Alphonse van Worden - 1750 AD



Li o seguinte comentário algures na bravia selva internética: 

"Roma não foi amada por ser grande, foi grande por ter sido amada"

Francamente, isto é um disparate, não faz o menor sentido. Trata-se d'uma chorumela sentimental, uma mera patacoada romântica.

Roma foi grande por ter sido uma sociedade organizada, bem governada, disciplinada, erigida sob a égide das grandes virtudes cívicas  - AVCTORITAS, GRAVITAS, IVSTITIA, DIGNITAS, PIETAS, SEVERITAS, VERITAS, FIRMITAS, INDVSTRIA, FRVGALITAS etc. -, predicadas por sábios e probos varões como os juristas Papianus e Ulpianus, o imperador Marcus Aurelius etc. Tais foram os alicerces da magnificência, da grandeza de Roma. E é tão somente a partir do pertinaz cultivo de tais virtudes que nasce o verdadeiro patriotismo, a energia vital que constrói impérios e conquista continentes, não essa patuscada de pacóvios, esse nacionalismo de pacotilha, de arquibancada de estádio de futebol, bloco de Carnaval ou comício / manifestação de demagogo mequetrefe.  

Enquanto não nos excedermos no exercício das grandes virtudes, jamais construiremos uma pátria digna de ser verdadeiramente amada. Urge começarmos por nós mesmos, e o princípio está no reconhecimento franco, sincero, até mesmo brutal, de nossos vícios e fraquezas. De nada adiantará dourar a pílula e fazer o elogio fátuo de quimeras e devaneios.

domingo, maio 28, 2023

A propósito de Desiderivs Erasmvs Roterodamvs, um tardio y merecido tributo


 

Gostaria hoje de corrigir uma flagrante, pertinaz injustiça. Trata-se de render preito y homenagem a um autor que nunca mencionei em qualquer texto, mas que sob certos aspectos exerceu influência determinante em minha trajetória intelectual: Desiderivs Erasmvs Roterodamvs (1466 - 1536), mais conhecido entre nós como Erasmo de Rotterdam, o famígero teólogo, reformador religioso e filósofo neerlandês; e analogamente celebrar o papel de duas mulheres incríveis nesta história: minha estimada profa. Marilena, de quem fui aluno de História Geral durante todo o ginásio e colegial; e minha falecida e amada mãe. 

Com efeito, foi por intermédio da referida mestra que tive pela primeira vez ciência do insigne humanista batavo, numa aula em que ela discorreu sobre os grandes pensadores do período renascentista na Europa, se bem me recordo na quinta série do curso ginasial. Sempre nutri uma forte atração por tudo aquilo que d’alguma forma representa um ‘ponto fora da curva’, e a peculiar y carismática figura de Erasmo, tingida por todos os matizes d’uma personalidade essencialmente flamboyant e indômita, bem como sua rocambolesca trajetória, eivada de peripécias y controvérsias, inevitavelmente suscitaram minha curiosidade; como se não bastasse, o título de sua obra capital era de todo irresistível para um menino como eu: STULTITIAE LAUS / MORIAE  ENCOMIUM, ou seja, o mítico ELOGIO DA LOUCURA. Fazer a apologia da ‘loucura’... ou em outras palavras, remar contra a maré, desafinar o coro dos contentes... evidentemente aquilo fora feito para mim! 

O fato é que já naquele mesmo final de tarde, ao encontrar minha progenitora na saída da escola, bombardeei a pobre senhora c/ mil e uma informações sobre as aventuras y desventuras de meu novo herói, e obviamente pedi a ela o livro de presente. E era justamente em contextos como este que tanto a generosidade quanto o fino descortino psicológico y intelectual de mamãe ficavam evidenciados: não opôs qualquer óbice à minha demanda, um reles frangote de apenas 11 anos, e dias depois lá estava eu c/ o livro nas mãos (uma modesta edição portuguesa daquelas coleções de bolso da Europa-America, não obstante esplendidamente bem traduzida, e que preservo c/ muito carinho até hoje). E o resto é história. 

Pois bem: relendo a obra esta semana, após um considerável hiato de quatro décadas, pude compreender c/ plena exatidão as razões pelas quais este desconcertante ensaio incendiou a imaginação daquele impressionável infante d’outrora; entre o homem feito e Erasmo, contudo, são muitos e profundos os pontos de divergência, e se calhar devo começar por eles. 

Para além de ter sido um dos mais notáveis inspiradores da Reforma (mormente d’uma perspectiva mais moderado no seio deste processo, tal como o anglicanismo, já que nosso autor não via c/ bons olhos os excessos farisaicos do luteranismo), há que frisar ter sido Erasmo um acerbo paladino do Estado laico e do secularismo d’uma maneira geral, e também sob vários aspectos um precursor do pensamento liberal; e tudo isto mesmo tendo permanecido nas fileiras da Igreja até o fim de seus dias, registre-se. De qualquer maneira, nada poderia estar mais longe das convicções de alguém como eu, assume francamente a defesa do absolutismo monárquico, do cesaropapismo e do direito divino dos reis... 

Mas ora retornemos aos idos da década de 80, para enfim tratarmos do que tanto impressionou aquele jovem mancebo. 

À partida ressalte-se o óbvio ululante: que magnífico escritor era Erasmo de Rotterdam! Manejando c/ pleno conhecimento de causa e assombrosa facilidade todo o arsenal retórico y literário da tradição clássica greco-romana (que muito embora fosse patrimônio comum de todos os eruditos de seu tempo, nem sempre era trabalhada c/ tanta sutileza e elegância), o excelso teólogo cria um texto ágil, exuberante, pejado de metáforas surpreendentes e audazes alegorias, c/ um resultado por certo jocoso, até mesmo hilariante, mas s/ jamais perder o caráter de  densa reflexão filosófica. Sendo das belas letras um entusiasta desde muito cedo, era impossível, portanto, não me ver hipnotizado por uma obra como essa.

Todavia, e aqui chegamos ao âmago da questão, foi o que Paul Valéry denominaria de ‘atitude central’, tanta na obra quanto no itinerário de vida de Erasmo, o que efetivamente me fascinou outrora, e certamente até hoje me arrebata: uma inteligência essencialmente crítica, analítica, a serviço d’um espírito altivo, combativo, sobranceiro, que não está disposto a fazer concessões torpes. Suponho que d’algum modo estes traços já correspondiam à minha própria índole, a uma disposição d’alma já atavicamente presente em mim; não obstante, outrossim estou convicto de que as boas leituras não são fundamentais somente para a formação intelectual do indivíduo, mas também para a formação do caráter. Se hoje sou ou pelo menos me empenho em ser um homem de espírito independente e altaneiro, disposto a desafinar o coro dos contentes e a não hipotecar sua dignidade em nome de compromissos espúrios, quero crer que a leitura do esplêndido libelo de Erasmo naquele já tão remoto ano de 1982 n’alguma medida deu lá seu providencial contributo.   



 

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros