quarta-feira, maio 25, 2022

Glauber Rocha no exílio II - Cabezas Cortadas (1970)



Veneráveis irmãos d'armas:

Fazendo uma retrospectiva do cinema de Glauber Rocha no exilio, hoje foi a vez daquela que se calhar é sua criação mais densamente alegórica y profundamente enigmática: CABEZAS CORTADAS, rodado em 1970 nas evocativas paisagens de Cadaqués na Catalunha; localidade que aliás tanto fascinou Buñuel e Dali, duas referências fulcrais para este longa, que é de longe a obra mais surrealista em toda a filmografia do cineasta. Vale dizer que o próprio Glauber definia CABEZAS CORTADAS  como uma “viagem borgeana pela obra de Shakespeare”, o que por si só já é indicativo de suas pretensões c/ o filme.  

Tal como afirmei em comentário anterior, é preciso antes de qualquer outra coisa sublinhar a sutil intertextualidade existente entre as diferentes fases do opus glauberiano, uma complexa teia semiótica de retroalimentações e reflexos invertidos. Assim sendo, se DER LEONE HAS SEPT CABEÇAS se apresenta como o desdobramento / expansão mítica do conflito espiritual e ideológico de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO para a geopolítica do continente africano, CABEZAS CORTADAS  pode ser caracterizado como a implosão / desintegração onírica de TERRA EM TRANSE

C/ efeito, o filme se formula como um labirinto de alegorias, uma hipnótica procissão de arquétipos e mitologias abordando questões que vão do paradoxal destino dos caudilhos, sempre a oscilar entre as dimensões do trágico e do patético, aos meandros dialéticos da epopeia colonial ibérica nas Américas. E a maneira como Glauber constrói / entretece essas mandalas de signos é magistral. Cito aqui três passagens que me parecem particularmente brilhantes: 

- Uma espécie de contenda / bailado envolvendo dois caballeros medievais das guerras da Reconquista - um caracteristicamente trajado como lanceiro do Califado Almóada, outro envergando a armadura da cavalaria pesada do Reino de Castela - e o caudilho latino-americano no exílio; depois envolvendo duas figuras das classes populares agrárias - um yanacona inca e um camponês espanhol; e por fim incorporando o proletariado da Guerra Civil de 1936-39, ou seja, ou seja, a própria síntese dinâmica da Hispanidade in totum.

- O caudilho Diaz II, magnificamente interpretado por Francisco Rabal, mergulhado num lamaçal, confrontando-se caoticamente c/ os destroços míticos de seu passado, primeiro sozinho, mais tarde espojando-se c/ uma luciferina cigana, ícone das vertigens da carne, delírio bunueliano ressignificado como happening performático sob o inclemente sol catalão.  

- O mesmo Diaz perambulando às margens do Mediterrâneo, cemitério marinho de tantos impérios e quimeras, c/ um imenso relógio em suas mãos, como se quisesse reverter a inexorável marcha do Tempo, retomar a glória perdida, talvez até mesmo capturar a Eternidade, La persistencia de la memoria de Dali convertida em tableau vivant.

Em suma: se a possibilidade de uma zona crepuscular onde se entrechoquem / entrelacem cinema, história, geografia sagrada e metafísica lhes parece algo fascinante, CABEZAS CORTADAS é um filme absolutamente fundamental.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 

Glauber Rocha no exílio I - Der Leone Has Sept Cabeças (1970)

 Alphonse van Worden - 1750 AD



Estimados confrades: 

Revi hoje pela manhã c/ o mesmo fascínio de sempre DER LEONE HAS SEPT CABEÇAS (1970), primeiro longa-metragem filmado por Glauber Rocha no exílio durante a década de 70 (no mesmo ano ele ainda rodaria CABEZAS CORTADAS na Espanha). 

E é sempre pertinente assinalar, antes de qualquer outra coisa, como genial cineasta baiano foi capaz de sintetizar exemplarmente as principais linhas de força conceituais e diretrizes estéticas de sua arte nos dois grandes manifestos que lançou respectivamente em 1965 e 1971: UMA ESTÉTICA DA FOME e EZTETYKA DO SONHO

C/ efeito, ainda que tipologias e classificações deste gênero inevitavelmente sejam um tanto quanto esquemáticas, podemos dizer que a primeira fase de sua carreira (até MARANHÃO 66) se desdobra sob o signo da Estética da Fome, ao passo que a partir de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO (1969), sua filmografia passa a refletir c/ intensidade cada vez o programa esboçado na 'Eztetyka do Sonho'. Nesse sentido, TERRA EM TRANSE (1967)  pode ser encarado como um divisor de águas, tanto como o pyramidion do primeiro período quanto como a pedra fundamental do processo de transfiguração estético-alegórica de sua obra, que acabaria resultando em todo um projeto de refundação mística e mítica do agir político no seio da criação artística. 

Cito aqui, para poupar tempo e esforço, algumas passagens de um artigo que escrevi sobre o tema:   

"Com efeito, a obra de Glauber flui numa linha ascendente, tanto no plano estético e artístico quanto no sentido da evolução progressiva de um projeto a um só tempo ideológico, espiritual e existencial. A cada filme e texto são agregados novos elementos, novas perspectivas a este work in progress, que vai expandindo suas coordenadas, revestindo-se de aspectos cada vez mais multifacetados e complexos, até o seu surpreendente coroamento final com A IDADE DA TERRA (1980).  É, pois, fascinante observar como esse work in progress glauberiano vai se processando ao longo de sua trajetória. Em BARRAVENTO (1962) e DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), seus primeiros longas-metragens, podemos observar um cinema ainda determinado por parâmetros narrativos e estéticos tradicionais, caudatário, sobretudo, do 'cinema dialético' do soviético de Sergei Eisenstein (1898-1948) e do neorrealismo italiano, não podendo também deixar de ser mencionada, especialmente no que concerne ao trabalho de direção dos atores, uma substancial influência da dramaturgia de Bertolt Brecht. (...) E se a princípio é patente o influxo dos modelos europeus de cinematografia e dramaturgia, Glauber se afasta paulatinamente de tais influências em direção a uma estética totalmente original, fusão de alegoria barroca, pajelança antropofágica e cristianismo libertário, num processo que acompanha o seu desligamento progressivo das categorias racionalistas da ortodoxia marxista em direção a um conceito de revolução messiânica, cujo veículo de transformação é precisamente o êxtase místico convertido em agir político. A partir da trinca de longas que dirigiu no exterior (CABEZAS CORTADAS - 1970; DER LEONE HAS SEPT CABEÇAS - 1970; CLARO - 1975) e, por fim, em A IDADE DA TERRA, obra que é muito mais uma experiência, um ensaio aberto, do que a estrutura fechada com ‘início-meio-fim’ que tradicionalmente entendemos como um 'filme', a dimensão ritualística da obra de Glauber, presente como embrião já nos primeiros curtas, atinge o seu ponto máximo de realização." 

Isto dito, gostaria ainda de fazer aqui mais três considerações adicionais, pontos que não observei no texto supracitado.

- É muito interessante notar como mesmo na fase messiânica, Glauber não abdica do recurso a modelos dramatúrgicos e referências estéticas 'ocidentais'; o que muda é o caráter mais decididamente 'vanguardista / experimental' dessas influências. Em DER LEONE, por exemplo, é a meu ver patente o emprego de elementos do happening e da performance característicos da vanguarda das artes cênicas dos anos 70; do Teatro Laboratório / Teatro Pobre de Grotowsky; do Teatro da Crueldade de Artaud e d'um modo geral de toda uma estética do absurdo; e talvez sobretudo do então recentíssimo cinema de agitprop experimental do Grupo Dziga Vertov.  

- Fazendo aqui uma espécie de análise da gramática formal do filme, rever DER LEONE proporciona ao espectador a oportunidade de mergulhar na intrincada intertextualidade existente entre as diferentes fases do opus glauberiano, uma complexa teia semiótica de retroalimentações e reflexos invertidos. Assim sendo, se CABEZAS CORTADAS pode sob certos aspectos ser caracterizado como a implosão / desconstrução onírica de TERRA EM TRANSE, DER LEONE se formula como o desdobramento / expansão mítica do conflito espiritual e ideológico de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO para a geopolítica do continente africano. 

- O epíteto que costumo atribuir a Glauber - PROFETA - não é um qualificativo gratuito, aleatório. Num dado momento do filme, quando o governador da Colônia (Reinhard Kolldehoff), o atravessador português (Hugo Carvana) e o agente da CIA (Gabriele Tinti) estão interrogando o líder guerrilheiro estrangeiro (Giulio Brogi) recém-capturado, o agente americano, divagando sobre o futuro do planeta, diz mais ou menos o seguinte: 

"No futuro tudo será resultado da planificação total da técnica e da economia pelos cérebros eletrônicos, que pertencem a nós, os povos civilizados. Surgirá um novo modelo de organização social, superior ao capitalismo e ao comunismo, e também uma nova Humanidade."

É ou não é a perversa utopia de 10 entre 10 potentados nefários da N.W.O hoje, os Zuckerberg, Soros, Schwab, Page, Bezos, Musk e Gates da vida?