domingo, janeiro 10, 2021

Apontamentos sobre o pensamento conservador - II: a próposito de Charles Maurras

 Alphonse van Worden - 1750 AD





Há já alguns meses comentara eu convosco, excelsos irmãos d'armas, ter adquirido certas obras de pensadores importantes para a formação de um bom militante dissidente; outrossim prometi que tão logo fosse possível, escreveria alguma coisa a propósito delas.

E principiarei registrando algumas observações a propósito de Charles Maurras, o excelso patriarca da direita católica francesa na primeira metade do século XX, fundador da Action Française e principal teórico do Nacionalismo Integral.  

Escritor que sou, gostaria à partida de dizer uma ou duas palavras sobre as qualidades estilísticas de nosso autor. Que ventura, pois, é ter a oportunidade de enfim ler Maurras no original (no caso um volume que recolhe Enquête sur la monarchie - 1900 e mais alguns artigos avulsos)! Pois o iracundo polemista não é apenas o legatário espiritual da longa e augusta tradição do pensamento católico galicano francês, que deita raízes em Bossuet e Richelieu no século XVII e depois se espraia pela escola contrarrevolucionária e anti-iluminista de Joseph de Maistre e Louis de Bonald: é também o herdeiro literário por excelência dessa nobre estirpe. A exemplo de sua ilustre progênie, a prosa maurrasiana é solene, severa e hierática, conjugando o estrondo e a ira dos profetas do Antigo Testamento, o ostinato rigore conceitual da melhor tradição cartesiana e a limpidez cristalina e majestosa da dicção clássica, que tão somente poderia ser haurida d’uma profunda intimidade c/ as obras-primas da literatura greco-romana e da própria plêiade renascentista francesa.

Ideologicamente falando, por seu turno, propugna Maurras um retorno ao regime monárquico, num modelo que de certo modo representa um aggiornamento do modelo de regime monárquico vigente no Medievo; com efeito, trata-se d’uma monarquia tradicional, hereditária, antiparlamentar e descentralizada. A fórmula não é si mesmo inovadora, admitamos; o que assume particular interesse para o leitor de hoje, por conseguinte, é a maneira como o autor interpreta cada um desses parâmetros. Para efeitos desta brevíssima nota, considerarei dois exemplos que me parecem particularmente emblemáticos.  

Consideremos, em primeiro lugar, o sentido que o termo ‘hereditário’ assumirá no léxico do pensador francês. Maurras deixa bem claro que não se trata exatamente d’uma herança ‘biológica’, ‘sanguínea’, mas sobretudo d’uma transmissão de índole ‘vocacional’, pela tradição oral e pela educação no meio familiar. Em suas próprias palavras:  

“Não se trata, em absoluto, de assegurar fisiologicamente ao serviço do Estado, de geração em geração, um conjunto de indivíduos mais distinto que o comum dos cidadãos; trata-se, c/ efeito, de utilizar as aptidões particulares, especiais e técnicas que se fixam em certo grau pelo sangue, mas sobretudo pela tradição oral e pela educação. Não se trata, em absoluto, do GRAU dessas aptidões, mas de sua QUALIDADE, ou, caso assim desejemos, de sua orientação consuetudinária. Nasce-se juiz ou comerciante, militar, agricultor ou marinheiro e, quando se nasceu tal ou qual, também se é, não só por natureza, mas também por posição, mais capaz de executar de maneira útil a função correspondente: um filho de diplomata ou de comerciante encontrará nas palestras de seu pai, no círculo de sua família e de seu mundo, na tradição e no costume que o haverão de envolver e sustentar, os meios eficazes de progredir mais rapidamente do que qualquer outro, seja no comércio ou na diplomacia.” (ENQUÊTE SUR LA MONARCHIE). 

Tão logo aplique à política tal raciocínio, no caso específico à forma monárquica, e de imediato o leitor chegará a uma inevitável conclusão: da mesma maneira que que o negociante, o militar, o comerciante, o marinheiro, o juiz ou o camponês, o príncipe soberano é uma variedade social de tipo humano, sujeita aos mesmíssimos parâmetros e regras das demais variedades. O exercício sistemático e contínuo da função através dos tempos adapta de modo quase que intuitivo, orgânico os filhos da família real à prática da governança. Destarte, o príncipe soberano, herdeiro d’outro príncipe soberano, estará não apenas por natureza e disposição, mas sobretudo por posição e adestramento específico, melhor preparado para bem exercer a função de príncipe soberano do que qualquer outro homem sobre a Terra.  

O segundo e último exemplo que me apeteceria sublinhar é caudatário do primeiro ou, melhor dizendo, é um desdobramento dele.  

Muito bem: de maneira a assessorar o monarca nas lides governamentais, seria mister estabelecer uma nova aristocracia, em bases igualmente hereditárias, tal como a família real. Certamente a questão dos laços de consanguinidade desempenhará um papel de relevo no processo, mas de modo algum o esgota, e nem sequer constitui seu aspecto mais importante. Crê Maurras que esta aristocracia deve ser ‘aberta’, sendo o acesso a ela potencialmente facultado a todos, por via da honra e do mérito. E ele audaciosamente vai além, prenunciando sob certos aspectos as ideias de Georges Sorel:  

“Por que não uma nobreza operária, como outrora houve uma nobreza togada? (Relembremo-nos de que o texto em tela data de 1900, e de que portanto a sociedade industrial estava na ordem do dia) (...) Quando a nova classe dos togados adquiriu enorme importância, à nobreza da espada acrescentou-se a nobreza togada, e o rei cumulou-lhe de benefícios até a saciedade. Pois bem! Hoje, devido aos progressos do maquinismo, nasceu uma nova classe poderosa. (...) O Estado atual carece de força como de luz. Realizai, pois, o Estado consciente e poderoso, isto é, estabelecei incontinenti a monarquia hereditária: tal Estado prevalecerá e ousará; logo saberá onde estender sua proteção, e ninguém em sã consciência confundirá suas complacências no tocante a uma justa e nova aristocracia do trabalho com as habituais baixezas de ordem eleitoral, disseminadas sem discernimento entre os líderes políticos do mundo operário pelos abantesmas de ministros que presidem o regime republicano." (ibid). 

Conforme assinalei adrede, no excerto acima já estamos no universo soreliano: é uma hipotética transição entre o nacionalismo integral, então uma realidade já consolidada e atuante, e o fascismo vindouro. Mas isso já é uma conversa para outra ocasião...