quinta-feira, maio 07, 2015

"Uma Visita de Alcibíades" - análise crítica

Alphonse van Worden - 1750 AD





O conto Uma Visita de Alcibíades, de Machado de Assis, se insere à perfeição em um gênero literário presente há muitos séculos no panorama da literatura ocidental, mas que viria a ser  definitivamente consagrado nos séculos XVIII e XIX: a narrativa satírica de caráter fantástico. Podemos encontrar exemplos similares nos mais diversos autores , dentre os quais se destaca aquele que talvez tenha sido o maior representante do gênero: o romântico alemão E.T.A Hoffmann, que conseguiu fundir fantasia e humor de modo irretocável em relatos memoráveis como Princesa Brambilla , Senhor Formica, O Conselheiro Krespel, O Pequeno Cinábrio Chamado Zacarias e, sobretudo, na extraordinária coleção de novelas e crônicas enfeixadas no romance Vida e Opiniões do gato Murr, onde o irônico felino é o contraponto satírico dos delirantes devaneios de seu dono, o Maestro Kreisler. Poderíamos ainda destacar outros escritores que praticaram de forma notável a sátira de corte fantástico:  nomes do porte de Jan Potocki, Nikolai Gogol, Gustavo Adolfo Becquer, Gerard de Nerval, Villiers de L’Isle-Adam, Marcel Schwob, Ambroise Bierce, Robert Louis Stevenson,  Oscar Wilde; mais recentemente, no século XX, o gênero continuou a ser cultivado por autores como Karel Tchapek, Gilbert Keith Chesterton, Sigismund Krzyzanowski, Macedônio Fernandez, Bioy-Casares,  Stanislaw Lem, Italo Calvino.

A modalidade literária de que estamos tratando se caracteriza principalmente por dois elementos: o uso do insólito, do fantástico, como instrumento para surpreender e seduzir o leitor, capturando sua atenção; e o desfecho irônico como desenlace aparentemente inusitado, mas pretendido desde o início da narrativa. Os elementos supracitados constituem, no âmbito da estrutura textual, as duas etapas complementares de uma estratégia narrativa: tendo sua imaginação despertada pelo sobrenatural, o leitor está preparado para ingressar numa suspension of disbelief à moda de S.T.Coleridge, condição indispensável para transitar numa zona de sombra  onde as  leis da natureza e da lógica deixam de vigorar; mergulhado, pois, na disposição mental própria do fantástico, o leitor é surpreendido pela irrupção do elemento satírico,  que subverte, no apagar das luzes  do  texto, as expectativas progressivamente acalentadas pelo desenrolar da fantasia.

Em Uma visita de Alcibíades, o Desembargador X..., preguiçosamente estirado em seu sofá depois do jantar, folheia  as Vidas Paralelas de Plutarco; o acaso escolhe como destino as páginas que discorrem sobre a vida de Alcibíades, o célebre general ateniense. Com o livre fluxo dos pensamentos ao sabor do fortuito, o cultor das letras helênicas especula sobre as impressões que o vestuário moderno causaria em Alcibíades; adepto do espiritismo (que considera como o mais “criativo” dentre sistemas de idéias que são “puras nulidades”), decide, entre a pilhéria e a vaidade, evocar o espírito do lendário ateniense.  Neste preciso momento, o autor coloca em cena o Fantástico: Alcibíades aparece, não apenas como espectro, mas em carne e osso. Machado de Assis, vale dizer, introduz o componente  extravagante de modo casual, sóbrio,  sem malabarismos estilísticos e fogos de artifício verbais,  de acordo com os procedimentos consagrados por Hoffmann,  primus  inter pares do gênero.  O advento de Alcibíades é, pois, ainda que extraordinário, de certo modo natural.  

Estupefacto,  nosso personagem não está mais preocupado em questionar Alcibíades sobre a moda moderna; na conversação que em seguida entabulam, relata ao general helênico alguns dos principais acontecimentos históricos que movimentaram  a Grécia no decorrer dos séculos. A presença tangível de tão remota figura, entretanto, longe de ser fonte de contentamento,  provoca crescente aflição no atabalhoado desembargador. Pretextando ter de ir a um baile, procura livrar-se do incômodo visitante. Alcibíades, todavia, ainda que abalado pela revelação de que os deuses olímpicos não mais constituem objeto de devoção, manifesta vontade de acompanhar seu anfitrião. Este, descorçoado,  procura argumentar que o general não poderia sair à rua  em seus trajes de ateniense antigo. Alcibíades, decidido, replica: “Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me emprestes?”. O helenista acaba por concordar, convencendo-se de que esta pode ser a melhor forma de se livrar do fantasma. Dirigem-se os dois então para os aposentos íntimos do dono da casa, que começa a vestir-se. Alcibíades não pode conter seu espanto ante os “canudos fechados”, as calças, e os “canudos abertos”, a casaca, que o outro veste, ambos de sombria e uniforme cor negra: “És a cousa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo côr de noite (...). O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma côr tão morta e tão triste. Nós éramos mais  alegres; vivíamos....”.  Quando o desembargador termina de trajar-se, a singular consternação do helênico não poderia ser maior. Perguntando se nada restava a ser acrescentado, se aquilo tudo era o que restava da elegância pelos gregos legada à posteridade,  nosso anfitrião lembra-se então de colocar seu chapéu. Alcibíades, contudo, não resiste a este último golpe desferido contra a singela e serena  excelência formal dos ideais estéticos clássicos; tomba, morto pela “segunda vez”, aos pés do assombrado desembargador.

No desenlace da fantasia  tramada por Machado, irrompe, coroando a narrativa, a surpreendente, patética e tragicômica dimensão satírica: Alcibíades resiste à morte dos Deuses e da polis ateniense, mas não à morte da beleza. Lembremos, de passagem,  que para o pensamento grego, o que pode ser constatado através da leitura de uma obra capital como a Ética a  Nicômaco de Aristóteles,  as noções de belo, bom e verdadeiro estão intimamente associadas; assim sendo, se a beleza desaparece do horizonte humano, também o bem e a verdade deixam de existir...  Mas será tão somente esta a mensagem que Machado de Assis  pretendeu nos comunicar  com o hábil e caprichoso devaneio farsesco aqui considerado? Se  porventura não é necessária, conforme os mestres do estilo nos ensinaram, a preocupação em detalhar as circunstâncias do aparecimento do fantástico, por que motivos deveríamos nos entregar a inúteis cavilações sobre os  possíveis níveis de leitura, subtextos,  cadeias significativas que uma sátira pode encerrar?  Contentemo-nos, pois, em concluir que Machado, em Uma Visita de Alcebíades,  executou com felicidade a tarefa precípua do gênero narrativo em pauta: recorrendo ao fantástico, atraiu a atenção de seu leitor para depois surpreende-lo com o advento de um inesperado desfecho satírico.