Alphonse van Worden - 1750 AD
Não há, pois, como saber se um evento irá
acontecer antes
que, de facto,
aconteça. Hume questiona, desse modo, a
possibilidade de validarmos logicamente as inferências que vão além
dos testemunhos presentes em nossos sistemas sensoriais e registros
da memória. Na seção V, com efeito, Hume apresenta duas
soluções para as dúvidas acima mencionadas. A primeira afirma não
são instâncias argumentativas que nos levam a extrair de
qualidades sensíveis semelhantes efeitos igualmente semelhantes, mas
sim o
hábito e a experiência. Como fanal de tudo que está
presente em nosso pensamento, são esses “grandes guias de tudo o
que acontece na vida humana” que sedimentam e dão origem a nossa
opção por uma probabilidade ao invés de outra. O que, a
nosso juízo, configura-se interessante constatar é que o
raciocinar
e o
sentir estão interligados e se afetam de forma recíproca,
visto que nunca estamos apenas pensando ou apenas sentindo, mas
sempre fazendo as duas coisas ao mesmo tempo, embora em graus
diferentes que se alteram continuamente. Quanto à segunda dúvida, a
do que nos leva a ir para além do presente e da memória, Hume
aponta como resposta analogias suscitadas por algum objeto ou pessoa
presente. Estamos sempre associando idéias (por
causa e
efeito,
semelhança ou
continuidade no espaço e
tempo), de maneira que, ao vermos algo (no presente) que nos é de
algum modo
familiar, ligaremos a experiência passada
(memória) que tivemos com esse objeto ao que está ocorrendo no
momento presente, bem como acalentaremos a suposição de que o
futuro irremediavelmente irá reproduzir
regularidades observadas
no passado.
Mas esse
erro que parece imperdoável é na verdade, diz Hume,
uma sistemática operação do entendimento, onde conjugamos o que
está presente com experiências passadas. Para melhor
esclarecer essa questão, Hume faz uso do conceito de
crença,
compreendida como um poderoso impulso, até certo ponto involuntário
e inconsciente, que nos faz preferir uma hipótese à outra frente à
conexão causal dos acontecimentos em permanente manar. É
precisamente esse impulso o fator responsável pela conexão de
um acontecimento a outro, conferindo à
possibilidade
aparência de
necessidade, tornando contínua, e não
fragmentária, a sucessão dos acontecimentos em nosso aparelho
perceptivo. Tal processo decerto difere da imaginação por ser mais
forte e vívido, e por não ser desencadeado deliberadamente,
mas antes por força da própria natureza de nossa estrutura
intelectiva. A sucessão de eventos no tempo nos parece sempre
palmilhar uma harmonia pré-estabelecida entre o Homem e a
Natureza. No entanto talvez possamos asseverar que, para Hume,
a enigmática estrutura que se erige no imo da realidade sensível,
regendo, sempiterna, os múltiplos desígnios do Universo,
permanecerá insondável, incognoscível para os seres humanos.
Retomando a questão central da argumentação humeana, examinemos as
seguintes questões propostas pelo filósofo escocês:
por que
pensamos que todo evento deve ter uma causa e
por que
acreditamos que cada causa particular deve ter o efeito que supomos
que possui. O princípio de causalidade geral não é
auto-evidente e nem tampouco pode ser demonstrado, nos diz Hume:
quando asseveramos a existência de uma conexão causal entre
eventos
– explicando um em termos do outro – estamos nos baseando na
existência
real de algum tipo de
conexão necessária
vigente na Natureza. No entanto, argumenta Hume, tudo que podemos
constatar são conjunções constantes entre eventos: dizemos que
A
causa
B ao observarmos que eventos do tipo
A têm
sido sempre seguidos por eventos do tipo
B. O que portanto
verificamos é tão somente a sucessão habitualmente constante entre
os eventos
A e
B, o que de modo algum nos autoriza a
garantir a existência de uma
conexão necessária entre
A
e
B.
Com a sutileza típica de sua engenharia argumentativa, Hume refuta
algumas das tentativas de justificação do supracitado princípio:
Locke, por exemplo, atalhou que se o princípio fosse falso, alguma
coisa teria sido necessariamente causada por
nada, e o
nada,
claro está, seria incapaz de causar qualquer coisa. Percebe-se
facilmente que esse argumento envolve uma
petitio principii,
uma vez que também não se pode provar que um evento particular
qualquer é causa daquilo tomamos como seu efeito.
Causa e
efeito se configuram como elementos distintos; não há,
portanto, contradição em supor que a primeira ocorra e o segundo
não.
A argumentação precípua de Hume pode ser, deste modo, resumida da
seguinte forma: quando acreditamos que dois tipos de eventos estão
causalmente relacionados, acreditamos que estarão constantemente
conjugados no futuro, com base na lembrança de que estiveram
efetivamente conjugados em nossa experiência passada. Somos, pois,
levados a tal concepção por influência de um determinado
hábito
mental, que converte nossa observação, no passado e no
presente, de
conjunções constantes entre fenômenos
naturais, na
crença da existência de uma
conexão
necessária, de uma
regularidade que rege a dinâmica da
Natureza. A inferência da conjunção limitada que observamos para a
conjunção universal envolvida em nossa crença causal assume, pois,
que o
inobservado assemelhar-se-á continuamente ao já
observado ou, em termos mais amplos, que a natureza é
uniforme e, por conseguinte, constituída por
regularidades
fenomênicas. Essa suposição, todavia, assim como o princípio
geral de causalidade, não é auto-evidente, nem demonstrável. O
i
nobservado é, desde sempre, potencialmente distinto do
observado: ele pode assumir qualquer forma que seja, bem como,
eventualmente, continuar compatível com o já
observado;
tampouco podemos estabelecê-la indutivamente a partir de que até
agora, pelo menos, o fenômeno que estivermos a examinar continua
reproduzindo os efeitos observados em experiências anteriores.
Proceder deste modo seria, vale dizer, argumentar em círculo,
assumir a validade da suposição como instância autocomprovável.
Faz-se mister a constatação de que a crítica humeana, pois, não
pode ser logicamente contornada argumentando-se que a natureza
procede por
regularidades, ou que o
inobservado irá
possivelmente assemelhar-se ao
observado, se for
esta a
forma de probabilidade que estiver em tela. Convicto, pois, de que a
inferência indutiva, que está imbricada em nossas crenças causais,
bem como em todas as demais crenças factuais que ultrapassam as
impressões presentes (caso, por exemplo, das proposições da Física
e demais ciências experimentais), não pode ser racionalmente
justificada, o filósofo escocês procura investigar por que,
reiteradamente, o ser humano lança mão de uma ampla gama de
decisões baseadas em inferências indutivas; e sua resposta, como já
verificamos, articula-se da seguinte maneira: por influência dos
processos associativos, nossa experiência de uma miríade de
conjunções constantes leva-nos a ter, por uma questão de costume
ou
hábito, vívida expectativa do estilhaçar de uma vidraça
quando vemos uma pedra voando em sua direção. A impressão da qual
se deriva nossa idéia de
conexão necessária não é uma
impressão de
sensação, mas de
reflexão, que se
manifesta, pois, ao nos sentirmos propensos a esperar, com um sólido
grau de certeza, que a vidraça estilhaçar-se-á quando observamos o
tijolo viajando em sua direção.