Alphonse van Worden - 1750 AD
A incapacidade em distinguir entre o misterioso universo de brumas imprecisas do Inconsciente, por um lado, e a realidade meridiana que se descortina perante a Consciência, por outro; ou ainda, a enigmática crença de que o ‘reino de sombras’ do Inconsciente se substitui à esfera de ‘certezas’ da Consciência como única e verdadeira REALIDADE, isto é, duas das linhas de força centrais da cosmovisão expressionista, podem também ser encontradas, por exemplo, em obras cronologicamente anteriores e posteriores ao movimento, o que indica sua vigência como dimensão universal da condição humana; ou, pelo menos, sua presença como traço emblemático da Modernidade, isto é, da ascensão do Indivíduo como sujeito privilegiado tanto da vida social quanto da experiência espiritual, em detrimento da comunidade como lastro identitário.
Consideremos, por exemplo, a seguinte passagem, um diálogo entre os protagonistas Fridolin e Albertine, presente no belo desfecho de Breve Romance de Sonho (Traumnovelle - 1926), do austríaco Arthur Schnitzler, texto que poderia ser descrito, vale dizer, como uma espécie de entrechoque entre o pesadelo expressionista e as paisagens oníricas do surrealismo:
(..)“O que vamos fazer, Albertine?”
Ela sorriu, e após breve hesitação, respondeu: “Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras – reais ou sonhadas.”
“Tem certeza de que é o que você quer também?”, perguntou ele. “Estou tão certa quanto suspeito que a realidade de uma noite, ou mesmo de toda uma vida, não significa sua verdade mais íntima.”
“Nem sonho algum é totalmente ‘sonho’”, suspirou, baixinho, Fridolin.
Ela tomou a cabeça dele nas mãos, e aninhou-a com carinho sobre o peito. “Agora estamos os dois acordados”, disse, “e por muito tempo.”
‘Para sempre’, ele quis acrescentar, mas antes ainda que houvesse pronunciado as palavras, ela colocou-lhe um dedo nos lábios e, como se o fizesse para si mesma, sussurrou: “Melhor não perguntar nada ao Futuro.”
Percebam, no trecho supracitado, a significativa presença da divisa que proclama “o expressionista já não vê, mas tem VISÕES”: por um lado, no transcurso da longa, insólita e, até certo ponto, ‘onírica’ aventura noturna de Fridolin (bem como, nos dias seguintes, em sua obsessão por solucionar a série de enigmas desencadeados por aquela noite inicial), um desejo avassalador pela traição amorosa funciona como elemento propulsor; não obstante o adultério jamais chega a se consumar. Por outro, no também longo e intrincado sonho de Albertine, o desejo de traição, ainda que como projeção na esfera abstrata do Inconsciente, é plenamente consumado.
Assim sendo, tanto os protagonistas, quanto nós, leitores, não ‘VEMOS’ qualquer ato de adultério ocorrendo como evento discernível no espaço-tempo; todavia, é inequívoca a ‘VISÃO’ que temos de tal ‘ato’ no universo simbólico do Inconsciente. Como afirmar taxativamente, destarte, que o propósito em tela (isto é, o da traição amorosa) não se realizou, apenas por não ter sido ‘visto’ como ocorrência real? Onde estaria, ao fim e ao cabo, a ‘zona de segurança’, a ‘linha de demarcação’ em nossa condição humana para verificarmos se algo, sobretudo na esfera do desejo e da vontade, ‘aconteceu’ ou não?
Eis, portanto, a grande indagação lançada pelo Expressionismo: Que seria, verdadeiramente, a Realidade Humana? Ou, em outras palavras, qual seria sua manifestação mais genuína? O nebuloso orbe de sonhos, pulsões e desígnios do Inconsciente, ou o plano ‘concreto’ da ação consciente?
Caberia aqui, creio eu, retomar o pensamento do francês Henri Bergson, mormente no que se refere às considerações do autor sobre a natureza
constitutiva da vida psíquica. Em seu Ensaio sobre os
Dados Imediatos da Consciência (1889), Bergson sustenta a existência de "dois eus
diferentes, sendo um como que a projeção do outro, a sua
representação espacial, por assim dizer social; este é um eu superficial". Por outro lado, haveria
também, na duração de nossa vida interior, o eu profundo, que
experimentamos através de "nossos estados internos como seres
vivos, incessantemente em vias de formação, como estados
refratários à medida que se penetram reciprocamente e cuja sucessão
na duração nada tem de comum com uma justaposição no espaço
homogêneo".
Para o filósofo francês, portanto, existiria uma modalidade de ‘eu’
que funciona como projeção representacional de uma dimensão mais
profunda; este ‘eu superficial’, portanto, funciona como uma
espécie de ‘máscara social’, vale dizer, de auto-representação
que fazemos de nós mesmos, consciente e inconscientemente, com
intuito de nos ‘apresentarmos’ ao mundo. Ora bem: em
contraposição a este ‘eu’ que funciona como veículo de
representação, como ‘personagem de nós mesmos’ para o mundo,
haveria um ‘eu profundo’, que no fundo consiste no que há de
incomunicável em nossa subjetividade, e cujo fluxo temporal, como
Bergson assevera, não entra em contato com a esfera representacional
do ‘eu superficial’, muito embora a alimente. Verifica-se, pois,
a existência d’uma sutil dialética: o ‘eu superficial’
comunica ao mundo a ‘máscara’ que nos representa, mas sua,
digamos assim, ‘fonte de alimentação’ é justamente o feixe de
profundos estados subjetivos que não podem ser plenamente
comunicáveis / decodificáveis.
Não obstante, malgrado estejamos a falar de duas instâncias distintas, isto não
significa que nossa estrutura psíquica perca sua unidade
fundamental, pois do contrário não poderíamos falar da presença
d’uma consciência em contínuo estado de ação. Assim sendo, o
que o autor denomina de ‘eu superficial’ ou, em outras palavras,
nossa interface com a realidade exterior, funciona a guisa
d’uma espécie de ‘carapaça psíquica’ que protege / encobre
/ oculta nosso ‘eu profundo' - que é exatamente, vale dizer, o que está em jogo durante a longa conversa entre Albertine e Fridolin. Não se trata, pois, d’um
processo de cisão, ou mesmo de afastamento radical, entre estas
duas instâncias da vida psíquica, mas sim da superposição d’uma
em relação à outra (o que, nos marcos da novela de Schnitzler, ocorre quando os protagonistas se interrogam mutuamente sobre a 'realidade' ou não de suas jornadas noturnas).
Ao atravessarmos a ‘camada protetora’ do
eu superficial, descemos às profundezas abissais do que há de mais
recôndito em nossa consciência, e assim acessamos o ‘eu
profundo’, ainda que este, por seu turno, não possa fazer o
caminho reverso e entrar em contato direto com o mundo exterior. Há
também assinalar ser precisamente o ‘eu profundo’ a esfera de
nossa estrutura psíquica que vivencia o processo de ‘duração’,
ou seja, o manar inconsciente do tempo, não redutível ou
quantificável em unidades formais de medida, nem tampouco passível de plena transcrição discursiva.
Em suma: o 'eu superficial', que toca o mundo
exterior pela superfície, está em contato direto com as causas
externas das sensações conservando delas algo de sua exterioridade
e, ao olhar para si, divide a vida psíquica em partes distintas à
imagem das coisas exteriores com as quais se relaciona. Este eu
rígido cujos estados são bem definidos, presta-se de forma muito melhor às
exigências da vida social e prática, pois tem o formato das coisas
distintas e definidas com as quais tem que lidar para sobreviver. O 'eu profundo', por seu turno, move-se livre e avassaladoramente, longe da
estabilidade e imobilidade da exterioridade material. Nele estão os
sentimentos mais íntimos, as paixões mais profundas, os pensamentos
mais próprios, a vontade mais livre, porque nele os estados mais
profundos duram sem a influência estabilizadora do exterior; nele as
sensações, enfim, percepções e emoções se organizam de forma
autêntica, viva e original.