Alphonse van Worden - 1750 AD
Gostaria de salientar, na abertura da terceira seção de nosso ensaio, duas coisas que se calhar não ficariam suficientemente claras: a) o pensamento marxista não é, claro está, incapaz de formular observações válidas, isto é, concordes com fenômenos empiricamente verificáveis; tão somente assevero que tais enunciados não satisfazem os critérios de cientificidade, sobretudo os termos estabelecidos pelo 'Principio de Verificação'; b) outrossim, ao identificar a presença de alguns elementos messiânicos na tessitura conceitual da perspectiva marxista, uma vez que a noção de 'revolução social' não é um objeto científico, ou seja, não é um objeto empiricamente dado passível de análise lógico-demonstrativa, mas sim um fenômeno humano, socialmente construído, e portanto pejado de elementos subjetivos, dimensão na qual não pode estar ausente o componente irracional e inconsciente, não pretendo sustentar que o marxismo é,
tout court, uma teologia messiânica da ação revolucionária Há que ter em mente, vale frisar, que 'revoluções sociais' não são fenômenos naturais ontologicamente independentes da percepção humana, nem tampouco tautologias da razão pura, mas processos voluntaristas que se forjam no âmbito da ação social humana e, por conseguinte, inscrevem-se na esfera subjetiva da decisão, envolvendo SIM componentes irracionais.
Isto posto, seria cabível alegar que a possibilidade de efetuar reformulações
a posteriori não implica a impossibilidade do marxismo em formular-se como teoria científica; ao mesmo tempo, seria irrazoável exigir que Marx pudesse prever o deslocamento do foco revolucionário, visto que suas formulações dialéticas a respeito da superação do capitalismo estavam calcadas na etapa concorrencial. Muito bem: se os postulados originais de Marx não foram capazes de prever a supracitada transformação, isto significa que os fenômenos observados deixaram de se ajustar ao comportamento previsto pelos referidos postulados; ou. em outras palavras, que as conclusões obtidas extrapolaram o que estava disposto pelas premissas apresentadas, e que portanto foi necessária, sim, uma reformulação
a posteriori da teoria. Isto não significa que a hipótese ulterior seja desprovida de valor cognitivo, mas que refuta inequivocamente a concepção anterior. Recorde-se aqui que uma teoria científica não admite reformulações
a posteriori: quando os resultados experimentais obtidos não mais se ajustam ao comportamento previsto pelos postulados da teoria, estava deve ser abandonada e substituída por mais acurada e consistente.
Analogamente, poder-se-ia sustentar que uma mercadoria é passível de ser vista e tocada e que, portanto é um objeto empiricamente identificável. Pois bem: que é uma 'mercadoria'? Qualquer produto (matérias-primas, gêneros, artigos manufaturados etc.) suscetível de ser comprado ou vendido. Assim sendo, o que empiricamente são os objetos designados pelo conceito 'mercadoria', mas não o construto conceitual em si mesmo, que é uma generalização dedutiva. Ora, não há problema algum em elaborar generalizações, que de resto são axiais para a sistematização e transmissão do conhecimento. O erro está em crer na realidade ontológica do conceito, que é apenas um 'nome', não um ente/evento concretamente existente no espaço-tempo.
As chamadas 'Ciências Sociais' sustentam que a objetivação das relações humanas" é um procedimento cientificamente válido. Ora, trata-se d'assertiva que não se sustenta: relações humanas são eventos essencialmente subjetivos, construções sociais necessariamente contingentes, submetidas portanto a influxos volitivos; gostaria de saber, destarte, como enunciados hipotético-dedutivos, isto é, generalizações lógico-demonstrativas elaboradas a partir de dados empíricas externas à percepção humana, poderiam ser construídos a partir de fenômenos essencialmente subjetivos e existentes tão somente no plano social, e não na natureza.
Um, sociólogo ainda poderia atalhar o seguinte, a propósito, por exemplo, da exigência de rigorosos critérios de objetividade na construção do objeto científico: 'aceitando-se a veracidade de tal exigência, nada pode ser enquadrado no âmbito de um esquema científico 'puro' e o marxismo seria tão a-científico como qualquer outra corrente de pensamento social". Para grande decepção de boa parte dos 'cientistas' sociais, trata-se d'uma verdade patente: qualquer modalidade de pensamento social está fora do âmbito da racionalidade científica, uma vez que o objeto de tais saberes não pode ser pensado/concebido/ sem mediações subjetivas, ou seja, a partir da observação direta de dados empíricos alheios à ação humana. Se há intervenção da subjetividade humana na construção do próprio objeto do conhecimento (uma vez que, claro, as generalizações conceituais decorrentes naturalmente são humanas), não há objetividade científica envolvida. O ato de observar a realidade concreta e a operação conceitual que dele decorre na elaboração dos enunciados cognitivos obviamente envolve a subjetividade humana, mas o objeto tomado em si mesmo, o dado empírico da realidade a ser considerado, deve ser necessariamente objetivo,em outros termos, de todo alheio a nosso aparato perceptivo e até mesmo de nossa existência.
Digamos, por fim, a título de ilustração, que a 'luta de classes' seja de facto uma espécie epifenômeno sociológico dos modos de produção correspondentes. Muito bem: se 'luta de classes' não é uma categoria ontológica, tampouco 'modo de produção' o será, configurando-se, ao contrário, como construto conceitual gerado a partir da observação, sistemática ou não, de um determinado conjunto de fenômenos sociais, vale dizer, de dados já subjetivamente construídos, não existentes na realidade empírica. Destarte, 'modo de produção' não é realidade objetiva, mas derivação ou epifenômeno conceitual. Poderíamos então apresentar uma dada realidade social como substrato ontológico para 'modo de produção', instância que nosso procedimento analítico revelaria ser também um construto conceitual caudatária da observação circunstancial de fenômenos sociais não universalizáveis, etc., e assim sucessivamente, numa improfícua
reductio ad infinitum.
Impõem-se a meu ver, tendo em vista as considerações adrede feitas, algumas indagações de cunho psicológico: qual a necessidade, para efeito de sua efetiva aplicação como instrumento de luta política, de o marxismo ser considerado uma teoria científica? Por que seus adeptos mais fervorosos insistem nisso, se o propósito central do marxismo é justamente funcionar como guia prático para a transformação revolucionária, e não como sistematização científica da realidade? Por que tanto fetichismo em relação ao estatuto científico, como se tal condição fosse a única maneira de garantir prestígio intelectual ao marxismo?