segunda-feira, março 09, 2009

Notas de reflexão crítica XIX - a propósito de José Carlos Mariátegui

Alphonse van Worden - 1750 AD



























Gostaria de celebrar aqui neste espaço, ó meus insignes irmãos d’armas, a excelsa figura do marxista peruano José Carlos Mariátegui (1895 – 1930), a meu juízo um dos pensadores mais criativos no âmbito da esquerda, não só por suas ousadas idéias a respeito do desenvolvimento histórico peruano, enfatizando que o processo de construção do socialismo deve levar em conta as especificidades históricas da sociedade em que se insere, mas também por suas reflexões a propósito da natureza essencial do fenômeno revolucionário. Para tanto, esboçarei brevemente algumas de suas contribuições teóricas mais relevantes.

A fundamental importância que Mariátegui tem para o pensamento marxista reside, portanto, não somente em sua defesa de um processo socialista de cunho autóctone, correspondente às matrizes sócio-culturais da região em que se insere, mas também pelo aspecto decididamente messiânico, voluntarista e romântico que caracteriza sua concepção do marxismo não como tola pseudociência desprovida de fundamento epistemológico, mas como creación heroica da sociedade revolucionária.

Já à partida é mister sublinhar a influência axial que a obra do sociólogo francês Georges Sorel (1847 - 1922) exerceu sobre certos aspectos decisivos da reflexão mariateguiana. Em Réflexions sur la violence (1908), sua obra magna, Sorel estabelece uma distinção entre as noções de 'mito' (numa acepção político-ideológica do termo) e 'utopia' (ideal). O 'mito revolucionário' funcionaria como 'profecia auto-realizável', no sentido de não depender de fatores transcendentes para ser levado a efeito. O pensador peruano leva adiante tal concepção, conferindo-lhe um caráter mais radical e enfatizando decisivamente a profunda emoção messiânica inerente a qualquer processo revolucionário.

Mariátegui, por conseguinte, coloca-se inequivocamente na perspectiva de uma espécie de 'teologia messiânica' da ação revolucionária, onde, por um lado, o fervor religioso engendra a transformação política, e a consciência política, por outro, desperta a fé religiosa para a realidade concreta do Homem. Assim sendo, a meu juízo a dimensão da exaltação mística permanece até mesmo na construção da sociedade revolucionária, moldando seus horizontes. Examinemos a esse propósito algumas passagens da obra mariateguiana:


O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito.(...)

A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais.


O Homem e o Mito (1925), publicado originalmente na revista Amauta, e depois na coletânea de ensaios El Alma Matinal.


Fica patente, a meu ver, a necessidade de a esquerda que ainda acalenta alguma pretensão transformativa assimilar, d'uma vez por todas, a lição ministrada há já tantos lustros por Mariátegui:  a 'revolução social' não é um fenômeno que se possa interpretar mediante uma 'análise científica', já que não pode ser compreendido à luz dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da razão lógico-demonstrativa; ao contrário, afigura-se muito mais como fenômeno de cunho mítico-religioso, impermeável a abordagens racionalistas.

Há, portanto, que reconhecer a natureza essencialmente messiânica e mítica da Revolução, a dimensão mística, irracional, imprevisível e emocional presente intrinsecamente em todo processo revolucionário. A dimensão simbólico-messiânica é o alicerce em que se assenta o eixo do fenômeno político, que nada mais que uma versão laica do processo religioso. A ação revolucionária é, pois, Mito e Mística, é fome do Absoluto, mergulho nos báratros da imponderabilidade, salto temerário na escuridão inefável. Não há como negar, por exemplo, que o Islã militante hoje desempenha um papel revolucionário muito mais relevante que as modalidades tradicionais contempladas pelo pensamento marxista. A tipologia categorial estreita do marxismo não consegue, pois, compreender que um Osamah Bin Laden possa ser, como de fato o é, ao mesmo tempo um warlord medieval e um líder revolucionário contemporâneo, ou seja,uma figura onde o 'arcaico' e 'novo' estão entrelaçados de forma indissolúvel.

Outro aspecto que merece ser ressaltado em Mariátegui é sua ênfase na necessidade de se pensar um projeto socialista cujos alicerces correspondam ao ethos sócio-cultural de cada país; assim sendo, dava ele grande importâncias às tradições comunais no âmbito das civilizações indígenas pré-colombianas, cuja economia fundamentava-se no ayllu, agrupamento de famílias ligadas por laços de parentesco que usufruíam da propriedade coletiva da terra; e na 'marca', federação de ayllus que detinha a propriedade coletiva das águas, das pastagens e dos bosques. Há que salientar, pois, a perspicácia analítica de Mariátegui, ao perceber que as tradições de solidariedade e propriedade coletiva do comunismo primitivo incaico, as quais lograram sobreviver a séculos de opressão colonial e nacional, poderiam servir à perfeição como alicerces para a implantação de uma sociedade comunista moderna no Peru, sem necessidade de o país atravessar um longo e laborioso período de construção do capitalismo sob a égide da burguesia.

Mariátegui não advogava, é importante ressaltar, uma espécie de 'retorno' puro e simples a tais tradições e práticas, mas afirmava que o projeto político do comunismo peruano deveria nutrir-se de tais elementos como lastro cultural para as estruturas políticas e econômicas que sem dúvida o contexto contemporâneo demandaria.

Deve-se ressaltar, portanto, que tal concepção mariateguiana, malgrado heterodoxa e contrária a certa interpretação canônica e mecanicista da teoria marxista, não incorre no equívoco de uma romantização passadista da herança incaica; antes pelo contrário, uma vez que o pensador peruano salienta de modo insofismável que o contexto econômico de seu país nos primeiros lustros do século XX é de todo distinto da realidade em que se estabeleceram as estruturas econômicas do comunismo primitivo incaico, de modo que o processo revolucionário jamais poderia reproduzir artificialmente o modelo d'outrora, mas sim tomá-lo como base cultural autóctone para lastrear a implementação de uma sociedade comunista moderna no Peru.

Vale salientar, por fim, que a abordagem mariateguiana do processo revolucionário, até hoje sumamente ousada e inovadora, reveste-se de importância crucial para a compreensão dos movimentos contemporâneos de enfrentamento antiimperialista, cujo campo de batalha espraiou-se para dimensões que vão muito além da mera questão político-econômica, plasmando-se, de facto, como verdadeira ‘guerra cósmica’ entre visões de mundo rigorosamente antagônicas.

As mais belas mortes - VII

Hélène Althusser (1910-1980)


Cá estamos para narrar mais uma libitina sucedida em seara acadêmica. Desta feita falaremos sobre a socióloga francesa Hélène Althusser (1910-1980), esposa do célebre teórico marxista e mentecapto gaulês Louis Althusser (1918-1990), cuja lôbrega defunção ocorreu em circunstâncias que até hoje assombram a comunidade filosófica, mormente a de influência francófona.

No domingo 16 de novembro de 1980, por volta de 8 horas da manhã, Althusser, em estado de severa desorientação mental, emergiu do apartamento funcional que ocupava com sua esposa na ENS (École Normale Supérieure) berrando desesperadamente: "minha mulher está morta!". Logo a seguir deparou com o doutor Etienne, médico da instituição, a quem confessou em detalhes o ínvio uxoricídio: estrangulara Héléne com um lençol.

Internado em um hospital psiquiátrico parisiense, Althusser recebeu no dia seguinte a visita de um juiz de instrução; o referido magistrado decidiu cancelar todas as diligências processuais relativas à acusação de homicídio voluntário, tendo concluído, após conversar com o filósofo, que "sua mente já não pertencia a este mundo".

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Anton Webern (1883-1945)


O austríaco Anton Friedrich Wilhelm von Webern (1883-1945) foi, sem qualquer sombra de dúvida, um dos mais extraordinários compositores do século XX, quiçá de todos os tempos. Figura axial para a música de vanguarda contemporânea, notadamente nas vertentes atonal e dodecafônica, legou-nos um punhado de obras rutilantes, tais como Sechs Stücke für großes Orchester (opus 6 - (1909-10, reformulada em 1928), Sechs Bagatellen für Streichquartett (opus 9 - 1913), Symphonie (opus 21 - 1928), Variationen für Orchester (opus 30 - 1940), etc.

Pois muito bem: a morte do ático artista vienense foi das mais patéticas de que se tem notícia. No início de 1945, por ocasião da entrada das tropas soviéticas em Viena, Webern mudou-se com sua esposa para Mittersill, um vilarejo nas proximidades de Salzburg, onde imaginava que encontraria maior tranquilidade; a 15 de setembro do mesmo ano, todavia, o compositor, que se preparava para retornar à capital, foi acidentalmente alvejado por um soldado norte-americano das tropas de ocupação.
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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros