segunda-feira, abril 09, 2007

Notas de reflexão crítica V - Nietzsche e a perversão irracionalista




- A estetização sem limites formula-se como descompromisso total em relação à realidade concreta, ignorando as particularidades sociais, culturais, econômicas e políticas de um dado contexto em seu processo histórico.

- A estetização exacerbada da política conduz inelutavelmente ao mais radical autoritarismo, uma vez que ignora a diferença e o contraditório, quando não tenciona pura e simplesmente suprimi-los.

- O Nacional-Socialismo é o fruto mais rematado da supracitada dinâmica (cf. A Arquitetura da Destruição)

- O ideal estético, quando lastreado por manifestações concretas, pode funcionar como hipótese de reforma da realidade; todavia, quando desligado de qualquer injunção pragmática ou âncora material, converte-se em fantasia caprichosa de imprevisíveis conseqüências, mormente na esfera política.

- Consoante o dinamarquês Kierkegaard, há três vias para a existência humana: a via moral, a via estética e a via espiritual; em última instância, salienta o autor dinamarquês, todas conduziriam ao desespero. A princípio, o ideal estético procede em busca do bom, do belo e do verdadeiro, mas como não há termo final para esses talantes, em função da inexistência de parâmetros objetivos que os norteiem, essa busca leva à fome insaciável pelo absoluto. Eis, então, o ‘ovo da serpente’: tal desmesura, que ignora por completo a singularidade humana, é terreno fértil para toda sorte de fundamentalismos políticos e religiosos, que se nutrem precisamente do anseio desesperado pela totalidade que tudo poderia explicar e solucionar.

- Portanto, a 'fome do absoluto' nietzscheana, em seu âmbito filosófico, nos leva à estetização radical da realidade, processo que forçosamente irá redundar em retumbante sentido de fracasso e enorme frustração, feita a constatação óbvia e inescapável de que o Real não pode ser moldado livremente a partir de nossa subjetividade; no plano político, por um lado, a saída para tal impasse é o advento de regimes totalitários, os quais acalentam a ilusão de que a realidade possa ser formatada à imagem e semelhança de uma dada visão de mundo; na esfera existencial, por outro, a patente negação empírica do desejo infrene de transformação nos remete, em primeira instância, a uma ‘solução’ niilista, postulando a rejeição completa das possibilidades efetivas da ação humana, em conclusão de certo modo análoga às ficções budistas.

- Nietzsche, por seu turno, dá entretanto um passo além: do niilismo absoluto salta para a apologética do engajamento existencial, filosófico e político, mesmo que a priori desprovido de qualquer possibilidade de êxito. O indivíduo passa a agir sem qualquer estribo em convicções sólidas, mas tão somente movido por um fascínio mórbido e oligofrênico pela afirmação irresponsável de sua própria 'vontade de potência'.



Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Capitalismo x Feudalismo na perspectiva kurziana

Alphonse van Worden - 1750 AD






O sociólogo e economista marxista alemão Robert Kurz, para além de suas controversas, malgrado percucientes análises a propósito da configuração atual do ‘sistema produtor de mercadorias’, tem sido particularmente útil no desmonte de certas ficções pseudo-revolucionárias, de origem mormente iluminista. Em seu livro Os Últimos Combates podemos encontrar, em diversos ensaios, referências positivas a respeito da sociedade feudal, não apenas no tocante ao processo de modernização que iria redundar, a partir dos séculos XVII e XVIII, na consolidação do capitalismo, mas até mesmo em relações a certos aspectos do próprio sistema capitalista.

Kurz salienta, com freqüência e sempre de modo enfático, que a vida dos camponeses, servos e artesãos medievais era, de uma maneira geral, mais livre e confortável que o padrão de vida do proletariado, e mesmo da classe média baixa, no século XIX e no início do século XX. No ensaio Escravos da luz sem misericórdia, por exemplo, o autor alemão, fazendo um cotejo entre a duração da jornada de trabalho na atualidade e no período medieval, nos diz ser possível constatar, por intermédio da consulta a documentos da época, "que a jornada de trabalho dos servos nas glebas 'devia durar da alvorada ao meio-dia'. Ou seja, a jornada de trabalho era mais reduzida do que hoje não apenas em termos absolutos, mas também relativos, por variar conforme a estação e ser menor no inverno que no verão" (pág.250); n'outra passagem do mesmo texto, escreve o seguinte: "Nos séculos XVIII e início do XIX, tanto o prolongamento absoluto quanto o relativo da jornada de trabalho, por meio da introdução da hora econômica abstrata, foram sentidos como uma tortura. Por muito tempo, houve uma luta desesperada contra o trabalho noturno ligado à industrialização. (...) Quando na Idade Média calhava de os artesãos trabalharem à noite por razões de prazo, cabiam-lhes lautos repastos e salários principescos. O trabalho noturno era uma rara exceção. E consta das grandes 'façanhas' do Capitalismo ter logrado converter o aguilhão tempo em regra geral da atividade humana"(pág.251). Na conclusão deste texto, Kurz faz uma severa crítica ao próprio pensamento marxista, que se converte em 'religião do trabalho': "O Marxismo, em contraste à sua própria pretensão social, foi um protagonista do 'trabalho abstrato', à medida que sucumbiu ao pensamento mecanicista do Iluminismo e a seu pérfido simbolismo da luz" (pág.253).

Observem agora este trecho do ensaio Gênese do Absolutismo do Mercado, onde Kurz analisa o impacto social das transformações ocorridas na fase inicial da implantação do sistema capitalista: "O absolutismo lançara então a primeira base do moderno modo de produção capitalista, ao dar sinal verde para que a economia monetária de mercado suprisse as demandas de seu gigantesco aparato militar e burocrático. A grande maioria das pessoas sentiu esse desenvolvimento como uma repressão insolente e francamente monstruosa. De fato, o antigo e 'simples' feudalismo sangrara apenas superficialmente os camponeses e artesãos da sociedade agrária, os quais reservavam uma pequena parcela de seus produtos aos senhores feudais ou lhes faziam certos trabalhos. Quanto ao resto, no entanto, o feudalismo os deixava em paz. Em seus campos e suas oficinas, eles podiam fazer o que bem entendessem. Além disso, eles dispunham de sua própria administração local" (pág.264). Afirmações como essas que citei não constituem exceções, repetindo-se em diferentes passagens do livro, sempre enfatizando a opressão social da modernidade capitalista frente a uma sociedade feudal onde havia mais liberdade e respeito pela dignidade humana.

Vale dizer que tal contexto de opressão já assumia contornos bem nítidos e inequívocos para muitos autores e pensadores do período em tela. Ao examinarmos a produção literária inglesa dos séculos XVIII e XIX, não é difícil encontrar numerosos testemunhos da brutalidade, sobretudo em termos de relações de trabalho e bem-estar social, que caracterizou a transição da economia feudal para o modo de produção capitalista; assim sendo, as páginas de autores tais como John Ruskin, William Blake, Charles Dickens, Thomas Carlyle, Robert Owen, William Morris estão pejadas de sentimentos de horror, consternação e indignação a propósito dos diversos efeitos dessa perversa dinâmica de transformação sistêmica; com efeito, as más condições de vida da classe trabalhadora não eram o único e, em alguns casos, tampouco mesmo o mais freqüente, alvo dessa rejeição quase generalizada: Ruskin, Blake e Morris, por exemplo, além de condenarem a iniqüidade da exploração econômica capitalista, também verberam contra o pragmatismo espiritual subjacente a tal visão de mundo, bem como chegam a antever, ainda que de forma vaga e intuitiva, que a dinâmica estruturante da ‘nova ordem’ fatalmente conduziria à absorção de toda a vida humana pela lógica fria e implacável da rentabilidade mercantil.

Como reflexão de índole mais analítica e sistemática a propósito do mesmo acervo de temas, lastreada, inclusive, por estatísticas e estudos disponíveis à época, temos o célebre volume A Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra (1845), de lavra do filósofo alemão Friedrich Engels (1820 - 1895); nessa obra, que se reveste de grande importância tanto como testemunho histórico quanto como crítica social, o autor denuncia, nos termos mais candentes, toda a truculência com que vastos contingentes populacionais foram praticamente arrancados do campo e confinados nos arrabaldes das grandes cidades sem as mais elementares condições de moradia, higiene e espaço físico.

Por mais 'heterodoxa' que sua interpretação do marxismo possa parecer, trata-se, creio, d'uma lufada de ar fresco necessária no âmbito dessa corrente de pensamento, que não pode mais coadunar com a pregação renitente e equivocada da Idade Média como tétrica 'idade das trevas', mundo sombrio de opressão e ignorância.