O desmoronamento das ditaduras stalinistas do leste europeu vem servindo, desde o início dos anos 90, de combustível para os arrazoados dos triunfantes neoliberais, que proclamam, com suas vozes altissonantes, a falência do marxismo. As atrocidades de Stalin, a corrupção generalizada da Era Brezhnev, o culto à personalidade de Mao Zedong, o genocídio promovido por Pol Pot no Cambodja, todos esses acontecimentos históricos seriam, consoante tal pérfida distorção ideológica, epifenômenos de um único e específico indivíduo: Karl Marx. Muito embora tenha morrido em 1883, 34 anos antes da primeira revolução no mundo a se denominar marxista, o célebre pensador alemão seria a nefária mão invisível por trás de todas as desventuras do movimento comunista em nosso século. Nesta perspectiva, poderíamos afirmar que Cristo é o culpado pelas atrocidades da Santa Inquisição, assim como que Lutero é o pai da exploração da miséria humana representada pela Igreja Universal do Reino de Deus.
A fragilidade desses tortuosos argumentos é mais do que evidente, e tão somente os meandros da má fé e dos interesses inconfessáveis podem justificar este tipo de falácia teórica. No entanto, a farsa do Marx ‘bicho-papão’ tem audiência cativa entre os intelectuais comprometidos com as estruturas do sistema, sobretudo os esquerdistas ‘arrependidos’. As palavras de ordem são, na vertente teórico-filosófica, o pós-moderno, a crise dos paradigmas, a morte das utopias, o fim da História; e na vertente econômica, a globalização da economia, a reengenharia, o mercado aberto. Os países do Terceiro Mundo, submetidos aos instrumentos de dominação colonial, aos injustos termos de troca da divisão internacional do trabalho, devem engolir, como sendo o mais refinado dos manjares, uma política de abertura econômica que os próprios países que a apregoam a quatro ventos não praticam, enquanto a Academia de nossos países aceita, sem reflexão, todos os modismos intelectuais ditados pelos centros nervosos da Metrópole.
Será, entretanto, que Marx pode ser descartado peremptoriamente? A crítica ao sistema capitalista estaria por completo ultrapassada? Apesar de tudo, ainda existem muitos intelectuais que se recusam a embarcar no show-boat do neoliberalismo, figuras notáveis como Noam Chomsky, Eduardo Galeano, Antonio Negri, Perry Anderson, Frederic Jameson, Eric Hobsbawn e outros. Destacaremos aqui, todavia, a figura do sociólogo e economista alemão Robert Kurz, pela ousadia, e principalmente, pela originalidade fascinante de sua recuperação dos princípios marxistas. Autor de uma obra-chave para a compreensão dos mecanismos da economia contemporânea - O Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial - Kurz recupera, à luz dos mais recentes acontecimentos, a surpreendente atualidade da Economia Política de Marx, sobretudo em sua crítica fundamental ao fetichismo da forma-mercadoria, contradição fundamental e crescente do Sistema Produtor de Mercadorias.
Publicado em 1991, no auge da euforia neoliberal pela queda do Muro de Berlim, O Colapso da Modernização é um livro brilhante, desafiador e original, que se propõe a desafiar a tese, dominante em todas as latitudes, segundo a qual o fim do socialismo soviético representaria o triunfo do capitalismo liberal. Para Robert Kurz, a derrocada do chamado 'socialismo real' configura-se como o início de uma crise fatal no seio do próprio sistema capitalista, bem como, no plano teórico, significa a confirmação da economia política de Marx. Nesta perspectiva, os mecanismos ocultos e as contradições internas do capitalismo são o móvel principal da análise incisiva e implacável de Kurz.
A competição pelos mercados constitui a lógica central do Sistema Produtor de Mercadorias, obrigando a humanidade a promover um desenvolvimento contínuo e tendencialmente acelerado das forças produtivas. No século XX, este processo, inerente ao sistema desde seu princípio, alcançou um patamar decisivo, cujas conseqüências determinam a história contemporânea. O casamento, sob as bênçãos do regime mercantil, entre a ciência e o processo produtivo, é a chave da questão.
Esta dinâmica constante, que conduziu ao desenvolvimento da micro-eletrônica e da computação a partir dos anos 60, fatores fundamentais nos desdobramentos mais recentes da estrutura produtiva contemporânea, não pode ser acompanhada pelos países socialistas. A disparidade tecnológica cada vez maior entre os dois blocos empurrou, num período de menos de 30 anos, os países socialistas em direção a um colapso econômico irreversível. Para o economista alemão, entretanto, este fato não corresponde à vitória do capitalismo liberal: as economias ‘socialistas’ constituem, em oposição à perspectiva monetarista, tão somente o vetor estatista do sistema produtor de mercadorias, uma vez que não negam a sua essência primordial, que é o automovimento tautológico do dinheiro e a presença fetichista da forma-mercadoria como célula básica do Capital.
É mister incluir aqui um parêntese explicativo sobre este conceito, tendo em vista que a crítica da lógica da mercadoria é fundamental para se compreender o pensamento de Karl Marx: a transformação do trabalho vivo, que produz mercadorias, em trabalho morto, representado na forma encarnada do dinheiro, é o âmago desta lógica. O trabalho 'vivo' aparece apenas como expressão do trabalho 'morto', que se tornou independente, e o produto concreto como expressão da abstração inerente ao dinheiro. Como mercadorias, os produtos são coisas de valor abstrato, alienadas de suas qualidades sensíveis. Na crítica de Marx, esse valor econômico determina-se de modo puramente negativo, como forma fetichista, abstrata e morta, desprendida de todo conteúdo concreto sensível. O processo de produção apresenta-se, nos termos de Marx, como automovimento do dinheiro, como transformação de uma certa quantidade de trabalho ‘morto’ e abstrato em outra quantidade maior de trabalho ‘morto’, a mais-valia, e com isso, como movimento de reprodução e auto-reflexão tautológica do dinheiro, que somente nessa forma se torna Capital. Nessa forma de existência do dinheiro como capital abstrato, o dispêndio de trabalho desprende-se do contexto da criação de valores de uso sensíveis e transforma-se numa atividade abstrata que traz em si sua própria finalidade. Por terem permanecido como economias que funcionavam dentro da lógica da mercadoria moderna, e cuja única diferença era reservar ao Estado a exclusividade gerencial da produção, bem como por terem procedido a uma acumulação dita ‘socialista’ de capital como motor da atividade econômica, os países socialistas nunca saíram da esfera da produção capitalista.
Na verdade, a promoção das atividades econômicas pelo Estado, o que resultou numa espécie de organização do processo produtivo que poderíamos qualificar como 'Capitalismo de Estado', foi a única possibilidade encontrada por esses países para efetivarem a modernização de suas economias. Excluída do ciclo inicial do desenvolvimento capitalista, controlado pela Inglaterra, Alemanha e França, a Rússia, uma economia feudal às portas do século XX, não possuía uma classe empresarial capaz de promover a modernização capitalista. A organização da atividade produtiva pelas mãos do Estado foi a única alternativa possível, não apenas para a Rússia, bem como para o restante da Europa Oriental e países emergentes do Terceiro Mundo, como a China. Kurz observa que o controle estatal do processo econômico não significa per si a instauração de uma economia em bases socialistas. Não é apenas a propriedade privada dos meios de produção que marca o caráter capitalista de uma sociedade, mas sim a produção determinada pelos mecanismos do mercado, que transforma o produto em mercadoria, não importando se estamos diante de um mercado ‘fechado’ ou ‘aberto’.
Desta maneira, Kurz entende que as economias ditas ‘socialistas’ fazem parte do sistema capitalista, e que, portanto, sua debâcle possui implicações profundas na estrutura global do capitalismo. A crise não se restringe ao socialismo real, procedendo da periferia para o centro do sistema. Principiou pelo ‘Terceiro Mundo’, nas décadas de 70 e 80, espalhou-se para os países socialistas no fim da última década, e começa agora a instalar-se nas bordas dos países ricos. A investigação sobre a natureza desta crise é o passo seguinte de Kurz.
A concorrência no mercado mundial, que conforme já dissemos, acelerou-se enormemente no decorrer do século XX, tornou fundamental a obtenção de padrões cada vez maiores de produtividade, configurados pela combinação de ciência, tecnologia avançada e grandes investimentos. Pela primeira vez na história, o aumento de produtividade, em função das pressões da revolução tecnológica, está significando dispensa de trabalhadores em números absolutos; isto é, o Capital começa a perder a faculdade de explorar trabalho. A mão-de-obra barata e semi-forçada com que países como a URSS e a China contavam para desenvolver sua indústria, ficou sem relevância e não terá mais comprador. Mesmo a tradicional, qualificada e bem-estabelecida classe operária dos países ricos da Europa Ocidental, começa a perder a sua função econômica em sociedades que entram em um estágio pós-industrial, e que já não estão dispostas a suportar o welfare state construído por um século de lutas sindicais. Mas o caráter excludente da nova organização do Capital não para por aí e, na verdade, assume uma feição muito mais grave e abrangente. "Uma vez que a rentabilidade das empresas somente pode ser estabelecida no nível até então alcançado da produtividade, e isso apenas de acordo com o padrão social mundial, e uma vez que esse nível, em virtude da crescente intensidade de capital, está se tornando inalcançável para cada vez mais empresas, ficam paralisados em número crescente de países cada vez mais recursos materiais; desaparece a capacidade aquisitiva correspondente e os mercados que dela resultam, tirando-se assim dos homens as condições capitalistas da satisfação de suas necessidades", escreve Kurz, afirmando ainda que o agravamento deste processo começa a alijar não apenas empresas, mas regiões inteiras e até mesmo países do mercado mundial, que não podem arcar com os custos em tecnologia e investimento para atingir os padrões de produtividade exigidos pela lógica do sistema.
Todavia, o debate ideológico não trata desta exclusão contínua de forças produtivas, mas sim dos méritos genéricos de um modelo abstrato de mercado livre. Enquanto isso, o mercado concreto, que é histórico, eleva a alturas mais e mais inatingíveis os seus requisitos de acesso; o mercado não é, deste modo, como declaram os apologistas do liberalismo, para todos. Na lógica mercantil, o estoque de capitais que engendra os avanços produtivos não pode ser alcançado senão pelos líderes do mercado mundial, como Alemanha, Japão e EUA. Mesmo outras nações capitalistas desenvolvidas, como França, Inglaterra e Itália, não podem competir no limite máximo da produtividade exigida. Assim sendo, a lógica excludente do sistema produtor de mercadorias leva o processo econômico a um círculo vicioso: por um lado, há uma necessidade cada vez maior de investimentos em tecnologia e infra-estrutura para que um país possa conservar-se nos padrões de produtividade exigidos pelo mercado; por outro, o estoque de capitais necessário para viabilizar estes investimentos só pode ser obtido mediante aumentos contínuos e crescentes na produção.
As perspectivas delineadas por Robert Kurz são pouco animadoras, para não dizer francamente ominosas: "É possível que a era de trevas da crise do sistema produtor de mercadorias, com suas formas de percurso e acontecimentos catastróficos, abranja boa parte do século XXI", considera. Apesar disto, as previsões de Marx sobre o esgotamento da dinâmica capitalista continuam sendo ignoradas por uma intelectualidade inconseqüente e irresponsável.
Kurz diz que não devemos de modo algum esperar que esta lógica destrutiva possa ser superada por administrações ‘estatistas’ da crise. Ela seria apenas superável, afirma o autor alemão, "se um movimento consciente social de supressão acabasse com a mera administração dessa crise, movimento que teria que derrubar, com violência maior ou menor" as estruturas do sistema. Esse rompimento teria que ser o "resultado de uma mobilização bem sucedida de grandes massas em favor de uma alternativa social nova e conscientemente formulada, que primeiro tem que ser elaborada". Nesse sentido, proclama Kurz, a forma geral das revoluções contemporâneas, a despeito de todas as reviravoltas históricas e econômicas nos últimos 50 anos, não se tornou obsoleta. A crítica dos resultados da ideologia revolucionária não significa, pois, que a luta revolucionária deva ser abandonada, em nome de um conformismo pessimista diante da catástrofe do sistema produtor de mercadorias.
Contudo, o exercício de uma crítica social radical, por intermédio de uma intelligentzia que se viu despojada dos seus instrumentos práticos e teóricos, pode ser seriamente prejudicado, e até mesmo anulado por um processo de legitimação covarde dos aparatos emergenciais porventura adotados pelo sistema para gerenciar a crise. A social-democracia reformista não logra divisar nenhum horizonte além da gestão passiva da crise sistêmica; e mesmo a esquerda ‘autêntica’ mostra-se completamente incapaz de elaborar um projeto de superação, porque seu pensamento ainda está firmemente vinculado às categorias marxistas ortodoxas da luta de classes e do movimento operário. O marxismo que importa, o da crítica radical ao fetichismo da mercadoria, está esquecido, abandonado numa twilight zone teórica. Em razão disso, a Esquerda, anota Kurz, ao invés de "radicalizar-se após a derrota dos 'mercados planejados', passa, ao contrário, a aproximar-se das formas ocidentais do mercado". Qualquer tentativa de elaboração de uma crítica radical deve levar em consideração que a humanidade, por meio das forças produtivas que ela mesmo gerou, foi socializada de forma ‘comunista’ no nível material e ‘técnico’, em outras palavras, a produção foi organizada como entrelaçamento global da atividade humana, fenômeno previsto por Marx. A questão reside no fato de que este comunismo de produção está dentro de um invólucro capitalista, sendo dirigido, nas palavras de Kurz, pela "estrutura cega e tautológica do dinheiro". Ou seja, a economia mundial vive a contradição existente entre o aspecto coletivo da produção e o caráter privado de sua apropriação. Eis a contradição central do capitalismo, conforme Marx a definiu, que não apenas permanece atual, bem como agudizou-se ainda mais com a elevação constante dos padrões de produtividade do mercado internacional.
Para Kurz, a Esquerda, por sua incapacidade em enfrentar a magnitude dos problemas propostos por esta crise, optou por refugiar-se no desencanto ‘pós-moderno’. A denúncia de toda a crítica social como uma presunção teórica inaceitável, a crença na impossibilidade de se pensar a totalidade, o ceticismo quanto às alternativas de mudança, a apologia do 'fragmentário' em detrimento da 'totalidade', são apenas alguns dos sintomas característicos desta ‘nova esquerda’, que se limita à condição de correia de transmissão das novas estratégias de alienação do Sistema capitalista. É o primado absoluto da ‘razão cínica’. A Esquerda recolheu-se, com hipócrita e fingida resignação, ao pseudo-dogma de que o mercado é a panacéia universal para todos os problemas, aceitando como única saída a adoção de reformas para ‘corrigir’ as eventuais distorções sociais do capitalismo; faz-se mister ser ‘pragmático’, pois a era das utopias terminou. Para Kurz, ser ‘pragmático’ neste sentido "não significa mais nada, portanto, do que se acomodar, até em crises e catástrofes, no automovimento abstrato do dinheiro, reduzir a subjetividade (inclusive a teórica) a uma estratégia astuciosa de sobrevivência". Afinal, é difícil resistir às benesses concedidas ao intelectual ‘bem-comportado’...
O economista alemão acredita que a superação do sistema atual exige um tipo de crítica completamente distinto desta apática ‘razão prático-cínica’. A crítica social deve tornar-se mais radical e incisiva, retomando as reflexões originais de Marx sobre a abolição da estrutura capitalista de produção. Ou, nos termos mais precisos do autor teutônico: "a substância material das potências alcançadas da socialização tem que ser radicalmente liberada da forma histórica que contaminou essa substância e tornou-a extremamente destrutiva". Já não faz mais sentido falar de reformas ‘isoladas’ ou locais, uma vez que a crise do sistema mundial de mercadorias é generalizada. A superação desta crise, se possível for, há de ser global, abolindo a categoria da forma-mercadoria e o auto-movimento cego do dinheiro. A única alternativa é a destruição do sistema mundial de rentabilidade e dos processos abstratos de exploração em empresas. Trata-se sem dúvida de uma revolução, mas não daquele tipo clássico no qual uma classe social derruba outra, ambas estando inseridas dentro do sistema da mercadoria. A violência resultará do fato de que esse sistema não será abandonado voluntariamente por seus representantes, os executivos, a classe política e o aparato emergencial de administração.
Esta Revolução deve, assevera Kurz, constituir-se como um movimento, "como uma força social de supressão, e isso é apenas possível por meio da consciência", da aufklärung, o que é, sem dúvida, uma tarefa das mais árduas e imprevisíveis. A perspectiva do fim das relações sociais determinadas pela mercadoria e pelo dinheiro é assustadora para uma humanidade cujos horizontes jamais entreviram outra modalidade de relações sociais; o processo será, pois, fatalmente traumático. A crítica do dinheiro, mesmo sendo a única possibilidade, ainda será, durante muito tempo, uma utopia irrealizável para a esmagadora maioria das pessoas.
Robert Kurz com honestidade afirma, na conclusão de sua obra, que "ninguém pode tirar da cartola um programa de supressão da mercadoria moderna" . A fatalidade está em que esse projeto sequer começou a ser pensado em suas bases iniciais. A corriqueira pergunta "como isso vai funcionar na prática", em vez de servir como estímulo à reflexão crítica, acaba sempre resultando numa nova sujeição à lógica dominante da destruição. Já não podemos mais recorrer ao Estado contra o mercado e ao mercado contra o Estado. "A falha do Estado e a falha do Mercado tornam-se idênticas, porque a forma de reprodução social da modernidade perdeu completamente a sua capacidade de funcionamento e integração". O retorno ao aspecto mais vital da teoria de Marx, que é sua contestação decidida e implacável ao fetichismo da forma-mercadoria, talvez seja a possibilidade do começo de uma nova crítica, de um programa resoluto de superação do sistema produtor de mercadorias.
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Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros