quinta-feira, dezembro 11, 2003
quarta-feira, dezembro 10, 2003
Tempo, Eternidade e Criação: um cotejo entre a concepção agostiniana e a tradição védica
Alphonse van Worden - 1750 AD
O Tempo é, talvez, como diria o escritor argentino Jorge Luis Borges, o mais exigente e complexo problema da metafísica. Nenhum problema envolve um maior número de paradoxos e reflexões contraditórias. Quais as relações que se travam entre passado, presente e futuro? Como pode ser sincronizado o Tempo individual de cada pessoa com o Tempo geral das matemáticas? O Tempo é criatura ou criador? A soma de todos os Tempos pressupõe uma dimensão estática ou uma dimensão em movimento contínuo? Finalmente: como compreender o conceito de Eternidade, esta instância que não é somente um agregado mecânico de passado, presente e futuro, mas sim a simultaneidade destes Tempos? Ao longo dos séculos, as mais diversas concepções sobre Tempo, Eternidade e Criação foram elaboradas e propostas. Trataremos neste trabalho de duas concepções fundamentais: a de Santo Agostinho, provavelmente a mais importante reflexão sobre o tema no conjunto do pensamento ocidental cristão; e a concepção cosmológica do Vedanta, influência primordial no quadro do pensamento oriental. Acreditamos que o exame destas concepções é, sem dúvida, o ponto de partida para a compreensão dos caminhos divergentes que foram percorridos pelas metafísicas ocidental e oriental.
Para se compreender a questão do Tempo em Santo Agostinho, é preciso antes observarmos as relações que o pensamento agostiniano estabelece entre Tempo e Eternidade. Acrescente-se ainda que, para o bispo de Hipona, ambos os conceitos são pensados em função do problema da Criação do Universo. O céu, a terra e todos os outros seres existem porque foram criados. Escreve Agostinho: “Proclamem todas as coisas, que não se fizeram a si próprias: existimos porque fomos criados. Portanto, não existiríamos antes de existir para que nos pudéssemos criar”. Diante da evidência da Criação, e partindo-se do pressuposto da existência de um Deus criador, Agostinho em seguida se pergunta: De que modo Deus teria criado o céu e a terra, de que máquina ou instrumento teria ele se servido para levar a cabo sua imensa obra? Certamente não poderia, como o artífice, ter criado matéria a partir de matéria, já que não existia nenhuma matéria de que pudesse se servir; também não poderia ter gerado o Universo do Universo, porque, antes de o criar, não poderia haver espaço onde pudesse existir. “Portanto”, conclui Santo Agostinho, “é necessário concluir que falastes, e os seres foram criados. Vós os criastes pela vossa palavra!”. O verbo divino, eis a essência da criação, o sopro criador do Universo.
A natureza do Verbo é o próximo passo na reflexão agostiniana. O Verbo de Deus existe coeternamente com Deus. É pronunciado por toda a Eternidade e tudo o que nele se pronuncia é pronunciado eternamente. Nunca se esgota o que estava sendo pronunciado, nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Para Deus, não há distinção entre DIZER e FAZER. Se não procedesse desse modo, já haveria Tempo e mudança, e não verdadeira Eternidade e verdadeira imortalidade. No Verbo divino, nada desaparece, nada se substitui, porque é eterno e imortal. O verbo registra de uma só vez não apenas todos os instantes do Universo, como os que teriam lugar se o mais evanescente deles mudasse, e os impossíveis também. Todo o complexo da criação está contido simultaneamente na Eternidade combinatória do Verbo, uma análise combinatória onde todos os Tempos se fundem num instante eterno.
Na dissertação sobre o Verbo já se pode verificar uma das relações mais importantes entre Tempo e Eternidade. Observemos que o Tempo é referido como mudança, o que traduz, pois, uma idéia de transformação, metamorfose, processo, sucessão de aparições e desaparecimentos. A Eternidade, consubstanciada no Verbo, é, por outro lado, uma dimensão absoluta, soma de todos os Tempos, de todos os eventos, sendo, consequentemente, uma dimensão estática, imóvel, onde não há lugar para a mudança, pois a totalidade já é nela dada simultâneamente. O Verbo é eterno porque em sua natureza não existe transformação, mas o conjunto de todas as transformações possíveis e impossíveis; nele não há sucessão, pois todos os eventos se dão concomitantemente em um só instante eterno e imóvel. Não há, por conseguinte, movimento na Eternidade, pois movimento é sucessão, e no eterno não há sucessão, pois tudo nele está contido. Inversamente, tudo no Tempo é movimento, passagem, transformação.
A discussão avança mediante os argumentos formulados por Santo Agostinho para responder à seguinte questão: Que fazia Deus antes da criação? Os que assim perguntam, estão, para o Santo, cheios de velhice espiritual. Dizem eles: se Deus estava ocioso e nada realizava, “porque não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda ação? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se Nele aparece uma vontade que antes não existia?”. Ou seja, como pode haver um ANTES e DEPOIS numa totalidade que exclui qualquer idéia de sucessão?
Santo Agostinho replica que a vontade de Deus não é uma criatura, existindo antes de toda criatura, pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Deus cria livremente, por um ato eterno de sua vontade. As idéias de todas as coisas existem na inteligência divina desde toda a Eternidade. Porém, os termos ou objetos que Deus quer produzir só aparecem no momento determinado pela Sua vontade. O momento da Criação é fruto da vontade inescrutável de Deus. O complexo da Criação está presente, desde sempre, em sua totalidade, no verbo eternamente pronunciado por Deus, que, através de seu desígnio inacessível, dá materialidade aos seres, submetendo-os então ao curso do Tempo, ao transitório e ao efêmero. Quem enuncia tal questão ainda não compreendeu como se realiza a obra de Deus. “Esforça-se para saborear as coisas eternas, mas o pensamento ainda gira ao redor das idéias da sucessão dos Tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão”, escreve o filósofo. A fantasia dos inumeráveis séculos de vazio antes da Criação é, para Agostinho, um absurdo. Como poderiam ter se passado inumeráveis séculos, se Deus, o criador de todos os séculos, ainda não os havia criado? Que Tempo poderia existir, se o Tempo ainda não havia sido estabelecido por Deus? E como poderia o Tempo decorrer, se ainda não existia? O Tempo nasce, pois, com a Criação, e o primeiro segundo do Tempo coincide com o primeiro segundo da Criação. Não é possível comparar a Eternidade, perpetuamente imutável, com o Tempo, que nunca para, que está sempre em movimento. Na Eternidade, nada passa, tudo é presente; no Tempo, o passado é impelido pelo futuro, e todo futuro está precedido de um passado, e todo futuro e todo passado são criados e dimanam da instância suprema que os inclui, o eterno presente, a Eternidade. A Eternidade imóvel determina o futuro e o passado, sendo o Tempo a instância móvel e dinâmica que provêm de uma dimensão estática. Eis portanto a segunda relação entre Eternidade e Tempo, uma relação de antecedência e determinação
A Eternidade presente de Deus antecede, deste modo, a criação do Universo e do Tempo. Escreve Santo Agostinho, referindo-se ao Criador: “Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com Vossa Eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro porque está ainda por vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os Vossos anos não morrem”. Os anos de Deus, ao contrário dos nossos, que se sucedem, que vão e vêm, para que todos possam vir, estão conjuntamente parados, reunidos em um só instante eterno. Como compara Santo Agostinho, os anos de Deus são como um só dia, “que é um perpétuo ‘hoje’, porque este ‘hoje’ não se afasta do ‘amanhã’, nem sucede ao ‘ontem’. O Vosso ‘hoje’ é a Eternidade”, soma de todos os 'ontens' e amanhãs.
Assim sendo, Deus criou todos os Tempos, existindo antes deles. Santo Agostinho não hesita em afirmar que, antes de ter criado o Tempo e o Universo, Deus nada fazia em seu eterno presente. Por um ato impenetrável de Sua vontade eterna, Deus cria o Universo, e com ele o Tempo, imagem móvel da Eternidade, na definição lançada por Platão no Timeu.
A cosmologia védica apresenta uma concepção absolutamente diversa da tradição agostiniana. Como mais tarde iremos demonstrar, o conceito de Eternidade no Vedanta assume um caráter oposto ao de Agostinho, o que irá se refletir na questão da Criação; de uma certa maneira, Tempo e Eternidade se confundem no processo de Criação previsto nos Vedas. Este processo será agora brevemente descrito e analisado.
O Vedanta é a mais famosa escola filosófica da Índia antiga. Vedanta significa “culminação dos Vedas”, sendo portanto uma escola que tem sua raiz nos Vedas, uma série de livros sagrados escritos entre 2000 e 1500 AC. Em numerosas passagens destes livros, e, sobretudo, nos Upanishads, obras mais recentes da tradição védica, encontramos uma minuciosa e abrangente reflexão sobre a Criação e suas conexões com Tempo e Eternidade. Os Vedas, aos quais se atribui uma índole divina, se compõem de uma série de hinos, encantamentos, fórmulas mágicas, comentários místicos e teológicos e interpretações filosóficas. Entende-se que são obras da Divindade, o Nirguna, que não foi gerado e nem tampouco possui corpo, pelo que não é possível atribuir-lhe qualidades tangíveis. Tal Princípio Criador, ao cabo de cada uma das infinitas aniquilações e recriações do universo, os revela a Brahma, emanação da Divindade, o qual, por seu turno, mediante as palavras dos vedas, que são eternas, cria um novo universo.
Os princípios do Vedanta, assim como os de outras tradições hinduístas, pressupõem uma cosmologia de infinitas aniquilações e recriações periódicas. É importante considerar que as aniquilações são mencionadas em primeiro lugar justamente para eludir toda a idéia de um começo absoluto do Universo. Não há começo, mas sempre recomeço. A criação é um processo de renovação, de recuperação da realidade. Brahma cria o novo universo a partir da palavra revelada dos vedas. Deste modo, a palavra árvore, por exemplo, é necessária para que existam árvores em um ciclo universal. Percebe-se, nesta passagem, a intenção de propor uma realidade conceitual, o que contrapõe, de maneira radical, o discurso científico ocidental. Na prática científica, os conceitos são criados a partir da observação da realidade concreta. O ponto de partida do conhecimento é o exame do que existe como vigência. Na concepção védica, o processo é invertido: o conceito precede a coisa, o nome vem antes do nomeado. O processo de criação é, portanto, conceitual, uma instância puramente subjetiva. É virtualmente impossível imaginarmos a racionalidade científica ocidental funcionando nestes termos.
O primeiro elemento que aparece em cada período universal é o palácio de Brahma. O deus percorre seus aposentos vazios e se sente muito só. Pensa então nas outras divindades, e estas renascem no mundo de Brahma. Vão surgindo então em seguida o monte Meru (o centro do Universo), a Terra, os homens e demais seres, e os infernos. Dias, noites e anos integram a vida de Brahma, mas cada dia é um Kalpa, ou Aeon, que, eqüivale a 4.320.000.000 de anos humanos, cifra que pode ser encontrada no Bhagavad-gita. Para nos ajudar a compreender o que representa a magnitude de um Kalpa (ou quiçá com o fito de desencorajar questionamentos impertinentes...), os sábios hindus conceberam algumas comparações clássicas. Eis uma delas: Imaginemos uma montanha de pedra de dezesseis milhas de altura, que é roçada, a cada cem anos, por um finíssimo tecido de Benares. Quando tal processo houver gasto a montanha, não haverá transcorrido ainda sequer um Kalpa.
No decorrer de um período cósmico, o sistema de mundos completa sua evolução, de sua condensação inicial até sua destruição final. Um sistema de mundos é um conglomerado de muitas luas, sóis, etc. O Vedanta postula um número infinito de mundos, todos de idêntica estrutura. Inumeráveis sistemas surgem e se estendem ao longo do espaço cósmico. Esta concepção guarda certas analogias com a astronomia moderna, que fala na existência de bilhões e bilhões de ‘universos-ilha’. Cada um desses universos consiste em milhões de estrelas girando em torno de um centro comum. Sua forma seria a de uma roda de moinho.
Como já antes mencionamos, Brahma recria o universo, e, posteriormente, seus habitantes. Os seres existentes estão reunidos em 6 categorias diferentes, os seis planos da existência, crença também presente na cosmologia budista, derivada em grande parte das tradições cosmológicas do hinduísmo. Os 6 planos são: os deuses (devas), os asuras, os homens, os animais, os pretas e os seres infernais. Os deuses são seres superiores aos homens, pois sua constituição material é mais refinada que a humana. Seus sentimentos e pensamentos são mais evoluídos, são menos sujeitos ao sofrimento, e sua expectativa de vida é muito maior do que a nossa. Os asuras também são seres celestiais, e vivem em constante conflito com os devas, numa relação que se assemelha à existente entre os gigantes e os deuses nórdicos. Asuras e devas são, todavia, criaturas mortais, o que os distingue, por exemplo, da corte dos deuses olímpicos. O mundo animal, o dos pretas e o dos seres infernais são os 3 estados da extrema infelicidade. Os pretas são seres condenados, mortificados pela fome e pela sede. São negros, amarelos ou azuis, leprosos e imundos. Alguns devoram faíscas, e outros querem devorar sua própria carne. Os seres infernais são os habitantes dos infernos. O juiz das sombras habita o centro dos infernos, e pergunta ao pecador se este não viu o primeiro mensageiro dos deuses, (uma criança), o segundo (um ancião), o terceiro (um doente), o quarto (um homem torturado pela justiça) e o quinto (um cadáver já em decomposição). O pecador viu-os, mas não compreendeu que eram símbolos e advertências. O juiz então o condena ao Inferno de Bronze, que possui 4 cantos e 4 portas, é imenso e está cheio de fogo. Ao termo de muitos séculos, uma das portas se entreabre, e o pecador consegue sair, entrando no Inferno de Esterco. Ao fim de outros inumeráveis séculos, pode novamente fugir e entrar no Inferno de Cães. Deste, passará ao Inferno de Espinhos, de onde regressará ao Inferno de Bronze. Verifica-se, pois, que o espectro da criação na cosmologia védica é sobremaneira mais copioso do que o da criação cristã.
Brahma não é imortal, e seus dias e noites têm fim ao cabo de 36.000 Kalpas, quando morre e é substituído por outro Brahma, que retoma o jogo de emanações e aniquilações, e assim infinitamente. Dois motivos de natureza muito diferente foram sugeridos para justificar as sucessivas emanações e aniquilações periódicas do Universo; para uns, o processo cósmico é natural e involuntário como a respiração, enquanto para outros é o jogo infinito da divindade ociosa. A primeira interpretação indica a crença em um processo criador inconsciente, um mecanismo inconsciente que desencadeia o eterno processo de aniquilações e recriações do Universo. Quanto a segunda interpretação, ressalte-se sua característica de oferecer novamente a perspectiva de um processo de criação puramente subjetivo. Os dados objetivos da criação, essenciais na constituição da estrutura do conhecimento ocidental, desaparecem numa acepção que prevê a criação como eterna manifestação solipsista da mente divina. Estamos diante, pois, da perspectiva de uma realidade puramente subjetiva.
Seja como for, podemos verificar que, para o Vedanta, ainda que as cifras que envolvam a duração de cada período sejam monumentais, a Eternidade é o movimento sucessivo das aniquilações e recriações periódicas do Universo. O que é eterno não é o Universo e nem tampouco os deuses, mas o processo, o fluxo contínuo de reposição dos Universos. O Tempo se dissolve neste eterno processo de aniquilações e recriações. A transitoriedade é eterna, enquanto, para Agostinho, a eternidade é imóvel. Cada Universo é tão somente Maya, ilusão, que é um dos atributos da divindade. O Cosmo é a ilusão cósmica. O que é real e eterno é o processo, é o movimento da sucessão universal. Enquanto que, para Santo Agostinho, a Eternidade é uma dimensão estática, que inclui todos os tempos e eventos, um eterno presente de onde dimana o movimento do passado e do futuro, para o Vedanta a Eternidade é justamente o processo, a passagem, a criação em movimentos sempre sucessivos e contínuos. Para o bispo de Hipona, o universo é duração eterna; para o vedanta, instante passageiro. O nosso Universo, o Universo agostiniano, magistral criação de Deus, é tão somente, na cosmologia védica, um momento na infinita fileira de ciclos universais que se sucedem ao longo da Eternidade.
O Tempo é, talvez, como diria o escritor argentino Jorge Luis Borges, o mais exigente e complexo problema da metafísica. Nenhum problema envolve um maior número de paradoxos e reflexões contraditórias. Quais as relações que se travam entre passado, presente e futuro? Como pode ser sincronizado o Tempo individual de cada pessoa com o Tempo geral das matemáticas? O Tempo é criatura ou criador? A soma de todos os Tempos pressupõe uma dimensão estática ou uma dimensão em movimento contínuo? Finalmente: como compreender o conceito de Eternidade, esta instância que não é somente um agregado mecânico de passado, presente e futuro, mas sim a simultaneidade destes Tempos? Ao longo dos séculos, as mais diversas concepções sobre Tempo, Eternidade e Criação foram elaboradas e propostas. Trataremos neste trabalho de duas concepções fundamentais: a de Santo Agostinho, provavelmente a mais importante reflexão sobre o tema no conjunto do pensamento ocidental cristão; e a concepção cosmológica do Vedanta, influência primordial no quadro do pensamento oriental. Acreditamos que o exame destas concepções é, sem dúvida, o ponto de partida para a compreensão dos caminhos divergentes que foram percorridos pelas metafísicas ocidental e oriental.
Para se compreender a questão do Tempo em Santo Agostinho, é preciso antes observarmos as relações que o pensamento agostiniano estabelece entre Tempo e Eternidade. Acrescente-se ainda que, para o bispo de Hipona, ambos os conceitos são pensados em função do problema da Criação do Universo. O céu, a terra e todos os outros seres existem porque foram criados. Escreve Agostinho: “Proclamem todas as coisas, que não se fizeram a si próprias: existimos porque fomos criados. Portanto, não existiríamos antes de existir para que nos pudéssemos criar”. Diante da evidência da Criação, e partindo-se do pressuposto da existência de um Deus criador, Agostinho em seguida se pergunta: De que modo Deus teria criado o céu e a terra, de que máquina ou instrumento teria ele se servido para levar a cabo sua imensa obra? Certamente não poderia, como o artífice, ter criado matéria a partir de matéria, já que não existia nenhuma matéria de que pudesse se servir; também não poderia ter gerado o Universo do Universo, porque, antes de o criar, não poderia haver espaço onde pudesse existir. “Portanto”, conclui Santo Agostinho, “é necessário concluir que falastes, e os seres foram criados. Vós os criastes pela vossa palavra!”. O verbo divino, eis a essência da criação, o sopro criador do Universo.
A natureza do Verbo é o próximo passo na reflexão agostiniana. O Verbo de Deus existe coeternamente com Deus. É pronunciado por toda a Eternidade e tudo o que nele se pronuncia é pronunciado eternamente. Nunca se esgota o que estava sendo pronunciado, nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Para Deus, não há distinção entre DIZER e FAZER. Se não procedesse desse modo, já haveria Tempo e mudança, e não verdadeira Eternidade e verdadeira imortalidade. No Verbo divino, nada desaparece, nada se substitui, porque é eterno e imortal. O verbo registra de uma só vez não apenas todos os instantes do Universo, como os que teriam lugar se o mais evanescente deles mudasse, e os impossíveis também. Todo o complexo da criação está contido simultaneamente na Eternidade combinatória do Verbo, uma análise combinatória onde todos os Tempos se fundem num instante eterno.
Na dissertação sobre o Verbo já se pode verificar uma das relações mais importantes entre Tempo e Eternidade. Observemos que o Tempo é referido como mudança, o que traduz, pois, uma idéia de transformação, metamorfose, processo, sucessão de aparições e desaparecimentos. A Eternidade, consubstanciada no Verbo, é, por outro lado, uma dimensão absoluta, soma de todos os Tempos, de todos os eventos, sendo, consequentemente, uma dimensão estática, imóvel, onde não há lugar para a mudança, pois a totalidade já é nela dada simultâneamente. O Verbo é eterno porque em sua natureza não existe transformação, mas o conjunto de todas as transformações possíveis e impossíveis; nele não há sucessão, pois todos os eventos se dão concomitantemente em um só instante eterno e imóvel. Não há, por conseguinte, movimento na Eternidade, pois movimento é sucessão, e no eterno não há sucessão, pois tudo nele está contido. Inversamente, tudo no Tempo é movimento, passagem, transformação.
A discussão avança mediante os argumentos formulados por Santo Agostinho para responder à seguinte questão: Que fazia Deus antes da criação? Os que assim perguntam, estão, para o Santo, cheios de velhice espiritual. Dizem eles: se Deus estava ocioso e nada realizava, “porque não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda ação? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se Nele aparece uma vontade que antes não existia?”. Ou seja, como pode haver um ANTES e DEPOIS numa totalidade que exclui qualquer idéia de sucessão?
Santo Agostinho replica que a vontade de Deus não é uma criatura, existindo antes de toda criatura, pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Deus cria livremente, por um ato eterno de sua vontade. As idéias de todas as coisas existem na inteligência divina desde toda a Eternidade. Porém, os termos ou objetos que Deus quer produzir só aparecem no momento determinado pela Sua vontade. O momento da Criação é fruto da vontade inescrutável de Deus. O complexo da Criação está presente, desde sempre, em sua totalidade, no verbo eternamente pronunciado por Deus, que, através de seu desígnio inacessível, dá materialidade aos seres, submetendo-os então ao curso do Tempo, ao transitório e ao efêmero. Quem enuncia tal questão ainda não compreendeu como se realiza a obra de Deus. “Esforça-se para saborear as coisas eternas, mas o pensamento ainda gira ao redor das idéias da sucessão dos Tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão”, escreve o filósofo. A fantasia dos inumeráveis séculos de vazio antes da Criação é, para Agostinho, um absurdo. Como poderiam ter se passado inumeráveis séculos, se Deus, o criador de todos os séculos, ainda não os havia criado? Que Tempo poderia existir, se o Tempo ainda não havia sido estabelecido por Deus? E como poderia o Tempo decorrer, se ainda não existia? O Tempo nasce, pois, com a Criação, e o primeiro segundo do Tempo coincide com o primeiro segundo da Criação. Não é possível comparar a Eternidade, perpetuamente imutável, com o Tempo, que nunca para, que está sempre em movimento. Na Eternidade, nada passa, tudo é presente; no Tempo, o passado é impelido pelo futuro, e todo futuro está precedido de um passado, e todo futuro e todo passado são criados e dimanam da instância suprema que os inclui, o eterno presente, a Eternidade. A Eternidade imóvel determina o futuro e o passado, sendo o Tempo a instância móvel e dinâmica que provêm de uma dimensão estática. Eis portanto a segunda relação entre Eternidade e Tempo, uma relação de antecedência e determinação
A Eternidade presente de Deus antecede, deste modo, a criação do Universo e do Tempo. Escreve Santo Agostinho, referindo-se ao Criador: “Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com Vossa Eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro porque está ainda por vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo, e os Vossos anos não morrem”. Os anos de Deus, ao contrário dos nossos, que se sucedem, que vão e vêm, para que todos possam vir, estão conjuntamente parados, reunidos em um só instante eterno. Como compara Santo Agostinho, os anos de Deus são como um só dia, “que é um perpétuo ‘hoje’, porque este ‘hoje’ não se afasta do ‘amanhã’, nem sucede ao ‘ontem’. O Vosso ‘hoje’ é a Eternidade”, soma de todos os 'ontens' e amanhãs.
Assim sendo, Deus criou todos os Tempos, existindo antes deles. Santo Agostinho não hesita em afirmar que, antes de ter criado o Tempo e o Universo, Deus nada fazia em seu eterno presente. Por um ato impenetrável de Sua vontade eterna, Deus cria o Universo, e com ele o Tempo, imagem móvel da Eternidade, na definição lançada por Platão no Timeu.
A cosmologia védica apresenta uma concepção absolutamente diversa da tradição agostiniana. Como mais tarde iremos demonstrar, o conceito de Eternidade no Vedanta assume um caráter oposto ao de Agostinho, o que irá se refletir na questão da Criação; de uma certa maneira, Tempo e Eternidade se confundem no processo de Criação previsto nos Vedas. Este processo será agora brevemente descrito e analisado.
O Vedanta é a mais famosa escola filosófica da Índia antiga. Vedanta significa “culminação dos Vedas”, sendo portanto uma escola que tem sua raiz nos Vedas, uma série de livros sagrados escritos entre 2000 e 1500 AC. Em numerosas passagens destes livros, e, sobretudo, nos Upanishads, obras mais recentes da tradição védica, encontramos uma minuciosa e abrangente reflexão sobre a Criação e suas conexões com Tempo e Eternidade. Os Vedas, aos quais se atribui uma índole divina, se compõem de uma série de hinos, encantamentos, fórmulas mágicas, comentários místicos e teológicos e interpretações filosóficas. Entende-se que são obras da Divindade, o Nirguna, que não foi gerado e nem tampouco possui corpo, pelo que não é possível atribuir-lhe qualidades tangíveis. Tal Princípio Criador, ao cabo de cada uma das infinitas aniquilações e recriações do universo, os revela a Brahma, emanação da Divindade, o qual, por seu turno, mediante as palavras dos vedas, que são eternas, cria um novo universo.
Os princípios do Vedanta, assim como os de outras tradições hinduístas, pressupõem uma cosmologia de infinitas aniquilações e recriações periódicas. É importante considerar que as aniquilações são mencionadas em primeiro lugar justamente para eludir toda a idéia de um começo absoluto do Universo. Não há começo, mas sempre recomeço. A criação é um processo de renovação, de recuperação da realidade. Brahma cria o novo universo a partir da palavra revelada dos vedas. Deste modo, a palavra árvore, por exemplo, é necessária para que existam árvores em um ciclo universal. Percebe-se, nesta passagem, a intenção de propor uma realidade conceitual, o que contrapõe, de maneira radical, o discurso científico ocidental. Na prática científica, os conceitos são criados a partir da observação da realidade concreta. O ponto de partida do conhecimento é o exame do que existe como vigência. Na concepção védica, o processo é invertido: o conceito precede a coisa, o nome vem antes do nomeado. O processo de criação é, portanto, conceitual, uma instância puramente subjetiva. É virtualmente impossível imaginarmos a racionalidade científica ocidental funcionando nestes termos.
O primeiro elemento que aparece em cada período universal é o palácio de Brahma. O deus percorre seus aposentos vazios e se sente muito só. Pensa então nas outras divindades, e estas renascem no mundo de Brahma. Vão surgindo então em seguida o monte Meru (o centro do Universo), a Terra, os homens e demais seres, e os infernos. Dias, noites e anos integram a vida de Brahma, mas cada dia é um Kalpa, ou Aeon, que, eqüivale a 4.320.000.000 de anos humanos, cifra que pode ser encontrada no Bhagavad-gita. Para nos ajudar a compreender o que representa a magnitude de um Kalpa (ou quiçá com o fito de desencorajar questionamentos impertinentes...), os sábios hindus conceberam algumas comparações clássicas. Eis uma delas: Imaginemos uma montanha de pedra de dezesseis milhas de altura, que é roçada, a cada cem anos, por um finíssimo tecido de Benares. Quando tal processo houver gasto a montanha, não haverá transcorrido ainda sequer um Kalpa.
No decorrer de um período cósmico, o sistema de mundos completa sua evolução, de sua condensação inicial até sua destruição final. Um sistema de mundos é um conglomerado de muitas luas, sóis, etc. O Vedanta postula um número infinito de mundos, todos de idêntica estrutura. Inumeráveis sistemas surgem e se estendem ao longo do espaço cósmico. Esta concepção guarda certas analogias com a astronomia moderna, que fala na existência de bilhões e bilhões de ‘universos-ilha’. Cada um desses universos consiste em milhões de estrelas girando em torno de um centro comum. Sua forma seria a de uma roda de moinho.
Como já antes mencionamos, Brahma recria o universo, e, posteriormente, seus habitantes. Os seres existentes estão reunidos em 6 categorias diferentes, os seis planos da existência, crença também presente na cosmologia budista, derivada em grande parte das tradições cosmológicas do hinduísmo. Os 6 planos são: os deuses (devas), os asuras, os homens, os animais, os pretas e os seres infernais. Os deuses são seres superiores aos homens, pois sua constituição material é mais refinada que a humana. Seus sentimentos e pensamentos são mais evoluídos, são menos sujeitos ao sofrimento, e sua expectativa de vida é muito maior do que a nossa. Os asuras também são seres celestiais, e vivem em constante conflito com os devas, numa relação que se assemelha à existente entre os gigantes e os deuses nórdicos. Asuras e devas são, todavia, criaturas mortais, o que os distingue, por exemplo, da corte dos deuses olímpicos. O mundo animal, o dos pretas e o dos seres infernais são os 3 estados da extrema infelicidade. Os pretas são seres condenados, mortificados pela fome e pela sede. São negros, amarelos ou azuis, leprosos e imundos. Alguns devoram faíscas, e outros querem devorar sua própria carne. Os seres infernais são os habitantes dos infernos. O juiz das sombras habita o centro dos infernos, e pergunta ao pecador se este não viu o primeiro mensageiro dos deuses, (uma criança), o segundo (um ancião), o terceiro (um doente), o quarto (um homem torturado pela justiça) e o quinto (um cadáver já em decomposição). O pecador viu-os, mas não compreendeu que eram símbolos e advertências. O juiz então o condena ao Inferno de Bronze, que possui 4 cantos e 4 portas, é imenso e está cheio de fogo. Ao termo de muitos séculos, uma das portas se entreabre, e o pecador consegue sair, entrando no Inferno de Esterco. Ao fim de outros inumeráveis séculos, pode novamente fugir e entrar no Inferno de Cães. Deste, passará ao Inferno de Espinhos, de onde regressará ao Inferno de Bronze. Verifica-se, pois, que o espectro da criação na cosmologia védica é sobremaneira mais copioso do que o da criação cristã.
Brahma não é imortal, e seus dias e noites têm fim ao cabo de 36.000 Kalpas, quando morre e é substituído por outro Brahma, que retoma o jogo de emanações e aniquilações, e assim infinitamente. Dois motivos de natureza muito diferente foram sugeridos para justificar as sucessivas emanações e aniquilações periódicas do Universo; para uns, o processo cósmico é natural e involuntário como a respiração, enquanto para outros é o jogo infinito da divindade ociosa. A primeira interpretação indica a crença em um processo criador inconsciente, um mecanismo inconsciente que desencadeia o eterno processo de aniquilações e recriações do Universo. Quanto a segunda interpretação, ressalte-se sua característica de oferecer novamente a perspectiva de um processo de criação puramente subjetivo. Os dados objetivos da criação, essenciais na constituição da estrutura do conhecimento ocidental, desaparecem numa acepção que prevê a criação como eterna manifestação solipsista da mente divina. Estamos diante, pois, da perspectiva de uma realidade puramente subjetiva.
Seja como for, podemos verificar que, para o Vedanta, ainda que as cifras que envolvam a duração de cada período sejam monumentais, a Eternidade é o movimento sucessivo das aniquilações e recriações periódicas do Universo. O que é eterno não é o Universo e nem tampouco os deuses, mas o processo, o fluxo contínuo de reposição dos Universos. O Tempo se dissolve neste eterno processo de aniquilações e recriações. A transitoriedade é eterna, enquanto, para Agostinho, a eternidade é imóvel. Cada Universo é tão somente Maya, ilusão, que é um dos atributos da divindade. O Cosmo é a ilusão cósmica. O que é real e eterno é o processo, é o movimento da sucessão universal. Enquanto que, para Santo Agostinho, a Eternidade é uma dimensão estática, que inclui todos os tempos e eventos, um eterno presente de onde dimana o movimento do passado e do futuro, para o Vedanta a Eternidade é justamente o processo, a passagem, a criação em movimentos sempre sucessivos e contínuos. Para o bispo de Hipona, o universo é duração eterna; para o vedanta, instante passageiro. O nosso Universo, o Universo agostiniano, magistral criação de Deus, é tão somente, na cosmologia védica, um momento na infinita fileira de ciclos universais que se sucedem ao longo da Eternidade.
quarta-feira, julho 30, 2003
terça-feira, junho 24, 2003
Cingido pelas de Selene hialinas emanações...
Cingido pelas de Selene hialinas emanações sulforosas, que embebem as espectrais muralhas do Bastiani, oiço, extático, o ingente troar de armígeros tambores e o mirífico retinir argênteo de fádicos clarins, prenunciando o ciclópico bramir das insignes Legiões Transfinitas, que sob os auspícios de ALLAH, preclaro Soberano da Guerra Cósmica, ínclito Custódio do Concento Universal, retomam suas impertérritas refregas contra os escalfúrnios desígnios do hórrido Grande Satã; proclamo, pois, concitado pelo iridescente fulgor do Senhor da Arcana Coelestia, e sob o impávido comando de seus excelsos senescais mujahideen, Hassan Ibn Sabah e Usamah Bin-Muhammad Bin-Laden, que a rutilante cavalaria tartárica está a caminho!
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Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
quarta-feira, fevereiro 19, 2003
Solilóquios erráticos ou fragmentos de meditações ou devaneios transfinitos no Tempo do Fim do Tempo...
Alphonse Van Worden - 1750 AD
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... cada despertar é tão somente um degrau na insondável escadaria das sublimações do sonho; a realidade está nos páramos oníricos onde a Eternidade se dissolve no cintilar de um instante, e onde o que está sendo, e que logo terá sido, se desvela cíclica e inelutavelmente no vórtice caleidoscópico do É primordial e perene. Aquele que, portanto, lograr compreender que seu dia é apenas a noite de um outro, que seus dois olhos são as sombras oscilantes também de um outro, seguirá a pista do dia real que permite o verdadeiro despertar de sua própria realidade, da mesma forma que emergimos de um sonho, o que leva a um diáfano páramo onde o homem está mais desperto que na realidade; pois a sombra evanescente das noites espectrais é a infinda fímbria labiríntica de nossa única realidade, real tendo em vista que é sonh.........................................
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... cada despertar é tão somente um degrau na insondável escadaria das sublimações do sonho; a realidade está nos páramos oníricos onde a Eternidade se dissolve no cintilar de um instante, e onde o que está sendo, e que logo terá sido, se desvela cíclica e inelutavelmente no vórtice caleidoscópico do É primordial e perene. Aquele que, portanto, lograr compreender que seu dia é apenas a noite de um outro, que seus dois olhos são as sombras oscilantes também de um outro, seguirá a pista do dia real que permite o verdadeiro despertar de sua própria realidade, da mesma forma que emergimos de um sonho, o que leva a um diáfano páramo onde o homem está mais desperto que na realidade; pois a sombra evanescente das noites espectrais é a infinda fímbria labiríntica de nossa única realidade, real tendo em vista que é sonh.........................................
sábado, fevereiro 01, 2003
Fogo Sagrado
QUE A IRA SAGRADA E FLAMEJANTE DA GUERRA
CÓSMICA SE ABATA SOBRE O GRANDE SATÃ!!!
JÚBILO PARA AS LEGIÕES TRANSFINITAS!!!
Alphonse van Worden - 1750 AD
CÓSMICA SE ABATA SOBRE O GRANDE SATÃ!!!
JÚBILO PARA AS LEGIÕES TRANSFINITAS!!!
Alphonse van Worden - 1750 AD
sexta-feira, janeiro 31, 2003
Jean-Luc Godard: Idéias em Liberdade
Alphonse Van Worden - 1750 AD
Um escriba disse certa vez que o Cinema é um ótimo veículo para expressar sentimentos, embora seja pouco apropriado para exprimir conceitos (o nome do referido escriba no momento me escapa; o que no entanto pouco importa, pois como escreveu Jorge Luís Borges, "nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos"). Essa assertiva, de certo modo razoável na maior parte dos casos, é desmentida cabalmente quando a figura em questão é Jean-Luc Godard. Parafraseando E.A. Poe a respeito de seu personagem Roderick Usher, eu diria que se algum cineasta alguma vez filmou uma ideia, este sem dúvida foi Godard. Em toda a sua carreira, o que ele sempre nos propôs foi a perspectiva de um radical cinema de ideias, de construção rigorosamente intelectual. Trata-se de uma sintaxe, ou talvez de uma desconcertante antissintaxe, que se estrutura em torno de reflexões assimétricas, ricocheteando em vetores multidirecionais, compondo um painel aparentemente caótico, mas que sempre apresenta uma rigorosíssima, ainda que de difícil apreensão, coerência interna; uma coerência que, entretanto, não se constitui como circuito fechado, mas como abertura de possibilidades, como força de movimento em desdobramento . É um cinema que se formula como entrechoque dialético de ideias em incessante evolução, numa síntese dinâmica do mundo, onde as personagens não apresentam um descortino psicológico individual, mas funcionam como veículos para conceitos, que implodem desconstruídos numa fragmentação narrativa crescente, recusando, portanto, a doutrinação inerente à linguagem linear e arrastando o espectador para o confronto conceitual, "desarrumando o arrumado", como diria Antônio das Mortes...
Um escriba disse certa vez que o Cinema é um ótimo veículo para expressar sentimentos, embora seja pouco apropriado para exprimir conceitos (o nome do referido escriba no momento me escapa; o que no entanto pouco importa, pois como escreveu Jorge Luís Borges, "nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos"). Essa assertiva, de certo modo razoável na maior parte dos casos, é desmentida cabalmente quando a figura em questão é Jean-Luc Godard. Parafraseando E.A. Poe a respeito de seu personagem Roderick Usher, eu diria que se algum cineasta alguma vez filmou uma ideia, este sem dúvida foi Godard. Em toda a sua carreira, o que ele sempre nos propôs foi a perspectiva de um radical cinema de ideias, de construção rigorosamente intelectual. Trata-se de uma sintaxe, ou talvez de uma desconcertante antissintaxe, que se estrutura em torno de reflexões assimétricas, ricocheteando em vetores multidirecionais, compondo um painel aparentemente caótico, mas que sempre apresenta uma rigorosíssima, ainda que de difícil apreensão, coerência interna; uma coerência que, entretanto, não se constitui como circuito fechado, mas como abertura de possibilidades, como força de movimento em desdobramento . É um cinema que se formula como entrechoque dialético de ideias em incessante evolução, numa síntese dinâmica do mundo, onde as personagens não apresentam um descortino psicológico individual, mas funcionam como veículos para conceitos, que implodem desconstruídos numa fragmentação narrativa crescente, recusando, portanto, a doutrinação inerente à linguagem linear e arrastando o espectador para o confronto conceitual, "desarrumando o arrumado", como diria Antônio das Mortes...
Em seu Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 11 de maio de 1912, Filippo Tommaso Marinetti proclama, desafiador: "Por que razão nos devemos servir de quatro rodas exasperadas que se enfadam, a partir do momento em que nos podemos libertar do solo? Libertação das palavras, asas estendidas da imaginação, síntese analógica da terra abraçada num relance e inteiramente recolhida nas palavras essenciais", definindo sua obra como a "síntese de um 100 HP lançado nas mais loucas velocidades terrestres". No manifesto subseqüente, Destruição da Sintaxe Imaginação Sem Fios Palavras em Liberdade, de 11 de maio de 1913, o escritor e terrorista cultural italiano, prosseguindo na exposição de seu programa literário, acrescenta que "A irrupção do vapor-emoção fará saltar o tubo do período, a válvula da pontuação e os parafusos regulares da adjetivação. Mãos cheias de palavras essenciais sem nenhuma ordem convencional", afirmando também que "a imaginação do poeta deve enlaçar só as coisas distantes sem fios condutores, por meio de palavras essenciais em liberdade". Se Marinetti é o escritor das palavras em liberdade, Godard é justamente o grande cineasta das ideias em liberdade. Seus filmes são discursos onde as ideias estão livres das amarras da linearidade da argumentação convencional, privilegiando, ao contrário, o impacto da contradição como força que desencadeia o pensamento dialético, instaurando um cenário de tensão intelectual permanente que emite sinais nervosos para o espectador. O que Godard pretende é arrancar o conceito de seu contexto linear no discurso tradicional, desembaraçar a ideia de sua teia de conexões arbitrárias com as demais ideias, com o objetivo de, tornando-a única, atingir sua essência, que independe do estabelecimento de quaisquer relações transitórias. O cinema godardiano é um bombardeio implacável de conceitos, princípios e reflexões, que são exaustivamente discutidos num ritmo alucinante e pluridimensional, exigindo do público um estado de concentração constante. Não simplesmente assistimos a um filme de Godard, mas dialogamos com uma esfuziante usina de ideias a todo vapor.
Em seu excelente ensaio sobre o cineasta, intitulado simplesmente Godard (1968), a escritora norte-americana Susan Sontag distingue duas atitudes diferentes frente à tradição cultural, no quadro dos grandes artistas e intelectuais contemporâneos: "Alguns – como Duchamp, Wittgenstein e Cage – equipararam sua arte e seu pensamento a uma atitude desdenhosa em relação à alta cultura e ao passado, ou pelo menos mantém uma postura irônica de ignorância e incompreensão. Outros – como Joyce, Picasso, Stravinsky e Godard – exibem uma hipertrofia do apetite pela cultura (ainda que, com frequência, mais ávidos de escombros culturais que de realizações consagradas pelos museus); eles operam através de uma varredura voraz da cultura, proclamando que nada é alheio à sua arte". O que se pode verificar, no conjunto de sua filmografia, é que Godard, libertando a tradição cultural de sua camisa-de-força acadêmica, a transforma em matéria viva, pulsante, capaz de intervir de modo fecundante na realidade presente. A cultura em suas mãos é sempre arma de transformação, e nunca peça estéril de coleção. A citação nunca é usada por Godard como mero adorno erudito, mas sim como ideia em vigência plena, como elemento de diálogo com a urgência dos acontecimentos mais flamejantes. A herança cultural, para Godard, é um eterno presente sempre vigoroso em seu poder de intervenção e transformação do mundo.
Concluindo este breve artigo, gostaria de dizer que Godard, sendo, a meu juízo, um dos 5 diretores mais brilhantes da história do cinema (a título de frívola curiosidade, menciono os outros 4: Welles, Glauber, Dreyer e Antonioni), talvez seja o menos influente de todos os cineastas. E digo menos influente no sentido mais elogioso que se poderia imaginar. Sendo autor, como todo grande artista, de uma obra absolutamente única, seu cinema jamais poderia servir como influência para qualquer outro cineasta, pois a essência primordial dos resplandecentes filmes de Godard é algo que não pode ser incorporado como linguagem constitutiva, como elemento para reprocessamento, mas sim algo que deve ser incorporado como um processo de expansão de consciências, com o qual temos o privilégio de poder travar um colóquio sempre novo e revigorante.
domingo, janeiro 05, 2003
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