Alphonse Van Worden - 1750 AD
O cinema de Andy Warhol se distingue, pelo menos em sua fase experimental no início dos anos 60, por uma radical estética da imobilidade: planos fixos, câmera estática, edição imperceptível, roteiro quase inexistente. Geralmente mudos e com fotografia em B&W, seus filmes são relatos letárgicos sobre o que está acontecendo fora do espectro cênico enquadrado, como se a presença incidental de um facto, congelado ao acaso no tempo e no espaço, fosse apenas o indício de algo muito maior. Nesses ensaios sobre a ausência, o que está em foco não é importante, mas sim o que o espectador pressente estar acontecendo ao redor da cena. Em Kiss (1963), casais se beijam em close-up durante 58 minutos. A sensação de movimento é mínima, mas ele ainda se faz presente no campo visual do espectador. Warhol, entretanto, conceberia no mesmo ano experiências ainda mais insólitas, inclusive em termos de duração. Eat (1963) exibe, em 38 minutos, o pintor Robert Indiana comendo um cogumelo; em Sleep (1963), a câmera observa 6 horas de sono do poeta John Giorno. Em 1964, com Empire, o pintor/cineasta apresenta a realização máxima de seu cinema estático, sobretudo no plano da despersonalização narrativa e de uma calculada vacuidade dramática: uma câmera insuportavelmente imóvel examina, durante 8 horas, sob o mesmo ângulo, a calçada em frente ao Empire State Building.
É um cinema hiperrealista, já que nenhuma reestruturação narrativa do mundo é admitida, mas é também, do mesmo modo, um cinema extremamente artificial, pois no movimento reside a própria substância da realidade percebida pelo homem. Warhol consegue enredar o público num sortilégio angustiante, um estado de animação suspensa que provoca a expectativa, frustrada já de antemão, mas ainda assim presente, de que alguma coisa está prestes a acontecer. Essas obras não são exatamente grande cinema (e talvez tampouco o pretendam ser), mas formulam uma hipótese inquietante: o essencial nunca está em cena, mas oculto numa dimensão paralela, que se desvela na transcendência do já visto; deve ser construído na mente do espectador, que precisa abstrair-se da ilusão, subtilmente entretecida por Warhol, de que possui todo o tempo do mundo para apreender todas as dimensões de um fato. Curioso paradoxo: a possibilidade de uma visão essencial na negação simbólica da visão real, a verdade encoberta nos meandros do verdadeiro...
Em 1966, todavia, com Velvet Underground and Nico: a Symphony of Sound (67 minutos, B&W), Warhol inverte totalmente sua perspectiva cinematográfica: ao invés de êxtase contemplativo, movimento incessante, um ciclone desenfreado de energia cinética explodindo em velocidade warp na tela. É talvez seu melhor filme, intenso e envolvente, com a colaboração providencial de um Velvet Underground atroz, disposto a incinerar o suporte formal edificado por seu inventor, granadas sonoras estilhaçando fotogramas, celulóide posto em combustão elétrica pelo espectro de Antonin Artaud fragmentado pelos macabros sortilégios de quatro anjos negros, Not a bloodied country All covered with sleep Where the black angel did weep (...) And if Epiphany’s terror reduced you to shame Have your head bobbed and weaved Choose a side to be on........
O cenário é a lendária Factory, o atelier/QG do artista novaiorquino: um imenso e desordenado galpão, cujos limites se dissolvem na refração luminosa de suas superfícies argentinas. Em flashes rápidos e descontínuos, podemos entrever, espalhados pelo chão, alguns membros do famigerado séquito de Warhol: Gerard Malanga, Billy Name, Edie Sedgwick, Stephen Shore, talvez Mary Woronov, Ultra Violet, Ingrid Super Star; um pouco mais adiante, destacada do grupo, vemos Nico, a glacial valquíria junkie, sentada num banquinho com um pandeiro nas mãos; ao fundo, de óculos escuros e trajes negros, os Velvet Underground improvisam furiosamente uma espécie de Sister Ray avant la lettre, ainda mais caótica e desarticulada que sua ilustre herdeira.
Em giros cada vez mais rápidos, a câmera de Warhol voa desordenadamente pelo local, recortando a cena em desconcertantes fragmentos visuais. A muralha de white noise que flui dos amplificadores funde-se ao tiroteio pontilhista dos fotogramas de tal modo que podemos, sem exagero, falar num fenômeno de transubstanciação: estamos vendo a música e ouvindo as imagens. Aliás, este filme pode ser encarado como um magnífico tratado sobre a interconexão entre som e imagem na linguagem cinematográfica. De fato, Warhol e os Velvets entram em simbiose: as imagens se desmancham velozmente numa tempestade fotoelétrica, enquanto “Mo” Tucker acelera o compasso insidioso de sua bateria, as guitarras de Reed e Morrison rosnam microfonia, e as espasmódicas teclas do Vox Continental de Cale emitem ondas eletromagnéticas. O bailado supersônico de fragmentos cênicos e acordes dissonantes explode as perspectivas formais do filme em crescente desorientação mental. Avalanches trovejantes de ruído arrojando cascatas fluorescentes de signos gráficos voláteis, a hipercinesia levada ao extremo despejando pulsações corticais que paralisam o movimento numa onda estática de vibração luminosa, Who’s that knocking,Who’s that knocking on my chamber door, Could it be the police? They come and take me for a ride ride, But I haven’t got the time time... apoteose do pesadelo despertando os íncubos adormecidos no ventre ímpio do Dragão, que deslizam silenciosos pelos labirintos da madrugada metálica, you shouldn't do that,she’s busy suckin' on my din ding dong, desliguem!!!, é preciso desmontar o maquinário sagrado do inferno que transmite os urros tonitruantes de Lúcifer, por favor, senhor Warhol, compreenda, estamos aqui como oficiantes herméticos de um ritual sagrado para exorcizar a tenebrosa Missa Negra do Ruído Branco na Fábrica do Caos...................SCRÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉEEEiiiinch..................
*
Observações finais: A Symphony of Sound deve ser visto num quarto hermeticamente fechado, com o espectador solitário e imerso na mais profunda escuridão. Como complemento, no maior volume possível, competindo em insanidade com a trilha do filme, um bom e velho bootleg dos Velvets, talvez o EPI/66 (1996), edição japonesa de um dos melhores shows do VU em sua fase pré-histórica, ou então, o que seria ainda mais apropriado, o extraordinário pirata belga Sweet Sister Ray’s Murder Mystery (1993), gravação de um show de 1968 que traz uma aterradora versão de Sister Ray com 40 minutos de duração; discos raros, no entanto, dificilmente encontráveis; caso não possam ser obtidos, recomenda-se a seguinte seleção, pela ordem: White Light/White Heat, Hey Mr. Rain (version II), I Heard Her Call My Name, Black Angel’s Death Song, European Son To Delmore Schwartz e, é claro, Sister Ray. Tenham todos um bom divertimento.
O cinema de Andy Warhol se distingue, pelo menos em sua fase experimental no início dos anos 60, por uma radical estética da imobilidade: planos fixos, câmera estática, edição imperceptível, roteiro quase inexistente. Geralmente mudos e com fotografia em B&W, seus filmes são relatos letárgicos sobre o que está acontecendo fora do espectro cênico enquadrado, como se a presença incidental de um facto, congelado ao acaso no tempo e no espaço, fosse apenas o indício de algo muito maior. Nesses ensaios sobre a ausência, o que está em foco não é importante, mas sim o que o espectador pressente estar acontecendo ao redor da cena. Em Kiss (1963), casais se beijam em close-up durante 58 minutos. A sensação de movimento é mínima, mas ele ainda se faz presente no campo visual do espectador. Warhol, entretanto, conceberia no mesmo ano experiências ainda mais insólitas, inclusive em termos de duração. Eat (1963) exibe, em 38 minutos, o pintor Robert Indiana comendo um cogumelo; em Sleep (1963), a câmera observa 6 horas de sono do poeta John Giorno. Em 1964, com Empire, o pintor/cineasta apresenta a realização máxima de seu cinema estático, sobretudo no plano da despersonalização narrativa e de uma calculada vacuidade dramática: uma câmera insuportavelmente imóvel examina, durante 8 horas, sob o mesmo ângulo, a calçada em frente ao Empire State Building.
É um cinema hiperrealista, já que nenhuma reestruturação narrativa do mundo é admitida, mas é também, do mesmo modo, um cinema extremamente artificial, pois no movimento reside a própria substância da realidade percebida pelo homem. Warhol consegue enredar o público num sortilégio angustiante, um estado de animação suspensa que provoca a expectativa, frustrada já de antemão, mas ainda assim presente, de que alguma coisa está prestes a acontecer. Essas obras não são exatamente grande cinema (e talvez tampouco o pretendam ser), mas formulam uma hipótese inquietante: o essencial nunca está em cena, mas oculto numa dimensão paralela, que se desvela na transcendência do já visto; deve ser construído na mente do espectador, que precisa abstrair-se da ilusão, subtilmente entretecida por Warhol, de que possui todo o tempo do mundo para apreender todas as dimensões de um fato. Curioso paradoxo: a possibilidade de uma visão essencial na negação simbólica da visão real, a verdade encoberta nos meandros do verdadeiro...
Em 1966, todavia, com Velvet Underground and Nico: a Symphony of Sound (67 minutos, B&W), Warhol inverte totalmente sua perspectiva cinematográfica: ao invés de êxtase contemplativo, movimento incessante, um ciclone desenfreado de energia cinética explodindo em velocidade warp na tela. É talvez seu melhor filme, intenso e envolvente, com a colaboração providencial de um Velvet Underground atroz, disposto a incinerar o suporte formal edificado por seu inventor, granadas sonoras estilhaçando fotogramas, celulóide posto em combustão elétrica pelo espectro de Antonin Artaud fragmentado pelos macabros sortilégios de quatro anjos negros, Not a bloodied country All covered with sleep Where the black angel did weep (...) And if Epiphany’s terror reduced you to shame Have your head bobbed and weaved Choose a side to be on........
O cenário é a lendária Factory, o atelier/QG do artista novaiorquino: um imenso e desordenado galpão, cujos limites se dissolvem na refração luminosa de suas superfícies argentinas. Em flashes rápidos e descontínuos, podemos entrever, espalhados pelo chão, alguns membros do famigerado séquito de Warhol: Gerard Malanga, Billy Name, Edie Sedgwick, Stephen Shore, talvez Mary Woronov, Ultra Violet, Ingrid Super Star; um pouco mais adiante, destacada do grupo, vemos Nico, a glacial valquíria junkie, sentada num banquinho com um pandeiro nas mãos; ao fundo, de óculos escuros e trajes negros, os Velvet Underground improvisam furiosamente uma espécie de Sister Ray avant la lettre, ainda mais caótica e desarticulada que sua ilustre herdeira.
Em giros cada vez mais rápidos, a câmera de Warhol voa desordenadamente pelo local, recortando a cena em desconcertantes fragmentos visuais. A muralha de white noise que flui dos amplificadores funde-se ao tiroteio pontilhista dos fotogramas de tal modo que podemos, sem exagero, falar num fenômeno de transubstanciação: estamos vendo a música e ouvindo as imagens. Aliás, este filme pode ser encarado como um magnífico tratado sobre a interconexão entre som e imagem na linguagem cinematográfica. De fato, Warhol e os Velvets entram em simbiose: as imagens se desmancham velozmente numa tempestade fotoelétrica, enquanto “Mo” Tucker acelera o compasso insidioso de sua bateria, as guitarras de Reed e Morrison rosnam microfonia, e as espasmódicas teclas do Vox Continental de Cale emitem ondas eletromagnéticas. O bailado supersônico de fragmentos cênicos e acordes dissonantes explode as perspectivas formais do filme em crescente desorientação mental. Avalanches trovejantes de ruído arrojando cascatas fluorescentes de signos gráficos voláteis, a hipercinesia levada ao extremo despejando pulsações corticais que paralisam o movimento numa onda estática de vibração luminosa, Who’s that knocking,Who’s that knocking on my chamber door, Could it be the police? They come and take me for a ride ride, But I haven’t got the time time... apoteose do pesadelo despertando os íncubos adormecidos no ventre ímpio do Dragão, que deslizam silenciosos pelos labirintos da madrugada metálica, you shouldn't do that,she’s busy suckin' on my din ding dong, desliguem!!!, é preciso desmontar o maquinário sagrado do inferno que transmite os urros tonitruantes de Lúcifer, por favor, senhor Warhol, compreenda, estamos aqui como oficiantes herméticos de um ritual sagrado para exorcizar a tenebrosa Missa Negra do Ruído Branco na Fábrica do Caos...................SCRÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉÉEEEiiiinch..................
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Observações finais: A Symphony of Sound deve ser visto num quarto hermeticamente fechado, com o espectador solitário e imerso na mais profunda escuridão. Como complemento, no maior volume possível, competindo em insanidade com a trilha do filme, um bom e velho bootleg dos Velvets, talvez o EPI/66 (1996), edição japonesa de um dos melhores shows do VU em sua fase pré-histórica, ou então, o que seria ainda mais apropriado, o extraordinário pirata belga Sweet Sister Ray’s Murder Mystery (1993), gravação de um show de 1968 que traz uma aterradora versão de Sister Ray com 40 minutos de duração; discos raros, no entanto, dificilmente encontráveis; caso não possam ser obtidos, recomenda-se a seguinte seleção, pela ordem: White Light/White Heat, Hey Mr. Rain (version II), I Heard Her Call My Name, Black Angel’s Death Song, European Son To Delmore Schwartz e, é claro, Sister Ray. Tenham todos um bom divertimento.