A célebre assertiva cunhada por Ridenhour (a.k.a Chuck D), principal rapper do Public Enemy, sintetiza à perfeição o significado mais profundo do hip hop e da rap music para a América Negra: mais do que simplesmente um gênero musical, ou uma manifestação de street culture, o hip hop (ao menos em sua fase áurea) foi o grande veículo de conscientização, tanto política quanto existencial, para milhões de jovens negros nos EUA. Através de um suporte musical tecnicamente simples, mas de grande complexidade estética (ao facultar a incorporação de elementos sonoros e conceituais das mais diversas fontes), o hip hop verbalizou as angústias, frustrações, anseios, reivindicações e sonhos de uma vasta parcela da sociedade norte-americana. Sua importância, destarte, transcende a esfera musical, afirmando-se como fenômeno de primeira grandeza não apenas no âmbito da cultura pop, mas também da própria história do negro norte-americano.
Isto posto, a importância do Public Enemy para o hip hop é incontestável, sob qualquer ponto de vista que se possa aventar. Em termos musicais, o grupo (com a providencial colaboração de sua célebre equipe de produtores, a Bomb Squad) guindou o gênero a seu state of the art, transformando o que antes era um formato relativamente esquemático e espartano num caleidoscópico maremoto de sons e texturas; no que se refere à parte lírica, de fundamental relevância no universo hip hop, Chuck D afirma-se como o melhor letrista do gênero, convertendo o característico arsenal de alusões, assonâncias e aliterações do rap em letal metralhadora giratória a serviço das causas mais prementes da América Negra; e, por fim, no que tange o inequívoco caráter político do gênero, a banda sempre se notabilizou por sua coragem e desassombro, jamais fugindo de qualquer controvérsia.
It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, segundo álbum na carreira do PE, é a meu juízo não apenas sua grande obra-prima, mas também o melhor álbum da história do gênero (tendo em vista que o genial Paul's Boutique, dos Beastie Boys, a meu ver envereda por caminhos um tanto quanto distintos), e até mesmo um dos melhores discos de todos os tempos overall. Há que se ressaltar, em primeiríssimo lugar, o estratosférico salto qualitativo em relação a estréia do grupo (Yo! Bum Rush the Show - 1987), um excelente álbum, mas que ainda se pautava pelos cânones tradicionais do estilo; It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, pelo contrário, explode com a energia de mil supernovas, criando uma titânica argamassa sonora, um verdadeiro rolo compressor de samples, efeitos eletrônicos alucinantes, ritmos avassaladores e vocais tonitruantes; não seria, aliás, nenhum exagero afirmar que o efeito obtido, tangenciando a musique concrète, transfigura a mesma atmosfera brutal e opressiva do rock industrial em seus aspectos mais inovadores, o que confere ao disco uma atmosfera decididamente avant garde. O encadeamento entre beats, vocais, samples, scratches, efeitos sonoros, surpreendentemente orgânico e coeso (em tempo: vale também conferir o álbum seguinte, Fear of a Black Planet - 1989, ainda mais impressionante a esse respeito), propicia ao ouvinte a sensação de estar escutando uma espécie de sinfonia do caos, onde cada faixa é uma espécie de 'mini-movimento' que completa o anterior e prepara o próximo.
Conforme acabo de salientar, trata-se de um disco tão perfeitamente orgânico e coerente que destacar suas melhores faixas seria quiçá um mister supérfluo e improfícuo; mesmo assim, creio ser necessário sublinhar a excelência intrínseca de ao menos 4 petardos: Bring The Noise, com seu hipnótico entrelaçamento de scratches em moto contínuo e frenéticas agulhadas de saxofone; Terminator X to the Edge of Panic, grande showroom para o mitológico DJ do grupo, numa exibição de terrorismo industrialista no limite da psicose sônica; She Watch Channel Zero?!, envenenada pelo poderoso riff do clássico thrash metal Angel of Death (Slayer), estabelece o melhor crossover rap / metal da galáxia; e Black Steel in the Hour of Chaos, aterrador relato a propósito de um insurreição de detentos, hipnotiza com sua obsedante linha de piano e os trovejantes scratches em assimétrico tiroteio contrapontístico.
Enfim, confrades: clear the way for the Prophets of Rage!
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Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
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