Alphonse van Worden - 1750 AD
As obras de Louis Antoine Léon de Saint-Just (1767 - 1794) e Maximilien Marie Isidore de Robespierre (1758 - 1794) constituem uma leitura fundamental para os que tencionam investigar a gênese do pensamento revolucionário moderno; contudo, tendo em vista sua maior relevância e elaboração teórica, para efeito destes breves apontamentos concentraremos nosso atenção nos trabalhos do primeiro, o flamejante Archange de La Terreur.
A primeira edição integral dos escritos de Sain-Just de que se tem notícia só viria a lume tão somente no século XX (Ouevres Complètes de Saint-Just; Fasquelle, Paris, 1908, II tomes in octavo), de modo que o escopo de seu pensamento durante muito tempo foi vítima d’uma avaliação errática e parcial; destacam-se, do conjunto de sua obra, indubitavelmente o ensaio L'Esprit de la Révolution et de la Constitution de la France (originalmente publicado em 1791); o volume Fragments sur les Institutions Républicaines(1793); e a versão definitiva de seus Discours et Rapports (editados pela primeira vez em 1848).
L'Esprit de la Révolution et de la Constituition de la France é a expressão mais rematada do Saint-Just constitucionalista en dépit de soi-même (pois embora tenha chegado a graduar-se em direito na Universidade de Reims, jamais acalentou pretensões acadêmicas), capaz de analisar com fina argúcia a natureza das instituições republicanas e seu papel na conformação da futura sociedade revolucionária; os Fragments sur les Institutions Républicaines, por seu turno, já trazem à tona o reformador radical forjado nas labaredas do clamor revolucionário, estabelecendo o programa político jacobino com grande acuidade e eloqüência; nos Discours et Rapports manifesta-se, por fim, em toda a sua exuberância e sagacidade persuasiva, o gênio retórico de Saint-Just, convertendo em ação política concreta suas ardentes aspirações revolucionárias; é forçoso sublinhar, não obstante, que Saint-Just não foi um pensador tout court radical desde o início de sua breve malgrado intensa trajetória, consoante poderemos verificar a seguir.
Refletindo de certa forma a disposição relativamente moderada que animou a Revolução Francesa em sua fase inicial, L'Esprit de la Révolution et de la Constitution de la France(1791) reúne as primeiras reflexões do autor a propósito das questões políticas, jurídicas e sociais da França de seu tempo; como tantos outros textos publicados no período, este ensaio de Saint-Just foi sobremaneira influenciado pela filosofia iluminista, notadamente por Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778) e Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu ( 1689 - 1755); trata-se, pois, d’uma obra caudatária das injunções da conjuntura político-social que o país atravessava: predica, por exemplo, a monarquia constitucional como melhor sistema de governo, por avaliar que naquele momento o rei ainda era considerado uma salvaguarda do povo contra os desmandos da aristocracia; deste modo, enfatiza apenas a isonomia jurídica entre os cidadãos, sem atentar para a igualdade de riquezas, item que se tornaria crucial no projeto político ulterior de Saint-Just; defende também o voto censitário, malgrado advogue em contrapartida o direito das classes menos favorecidas a uma ampla rede de proteção social, bem como ao não pagamento de impostos; e de resto, estabelece um programa que contempla as liberdades republicanas consagradas: liberdade de opinião, de imprensa, de ir e vir, direito à livre associação, de reunião, etc. Não encontraremos nestas páginas, portanto, o Saint-Just regicida, o igualitarista irredutível, mas sim uma espécie de ‘liberal avançado’, com algumas tendências socializantes: percebe-se nitidamente que o autor ainda não está seguro a respeito das efetivas possibilidades da Revolução, adotando destarte a postura de garantir o que já havia sido conquistado ao invés de pugnar por reformas que porventura não pudessem ser consubstanciadas; todavia, a radicalização do processo revolucionário em curso no próximo triênio o fará despir-se, para seu próprio gáudio, de tais hesitações, levando-o de todo a abandonar, como examinaremos adiante, as concepções adrede esposadas.
Redigidos entre 1793 e 1794, os Fragments sur les Institutions Républicaines representam a maturidade de Saint-Just como pensador e dirigente revolucionário, em consonância com a consolidação da Nova Ordem em França, mormente no front político-institucional: a Convention Nationale republicana estava então, em caráter incontestável e soberano, à testa do país; Luís XVI, por seu turno, fora guilhotinado a 21 de janeiro de 1793, tendo Saint-Just inclusive desempenhado função precípua em todo o processo, com uma série de discursos à Convention em que demandava a execução do monarca, pronunciamentos notáveis (e que lhe valeram grande nomeada) tanto por sua veemente facúndia quanto pela perspicácia de suas alegações jurídicas, asseverando ser tal intento uma “medida de salvação pública”, vero imperativo para a manutenção das conquistas revolucionárias; assim sendo, Saint-Just passa doravante a preocupar-se com o aprofundamento das conquistas sociais da Revolução e o fortalecimento de sua base de sustentação política, e as questões relativas a esses tópicos dominarão boa parte da obra em tela. O insigne Archange de La Terreur passa a propugnar o estabelecimento de uma sociedade igualitária, e para tanto propõe medidas tais como o confisco imediato das propriedades de todos os inimigos da República, com a distribuição de seus haveres entre a camada pobre da população; a restrição progressiva ao direito de herança, e ainda a criação de um novo sistema de herança fundiária, onde as terras não mais são transmitidas diretamente dos titulares para seus sucessores, mas sim de forma indireta, por intermédio de um fundo agrário público administrado pelo Estado; a adoção de um modelo de organização político-econômico baseado na pequena propriedade e em práticas cooperativas, predicando também a implementação de mecanismos de democracia direta, com intuito de conferir maior capilaridade e vigor ao sistema representativo; o estímulo à adoção voluntária de crianças pobres por parte de famílias em melhor situação; a ênfase na função social da propriedade, a ser regulamentada pelo poder público, bem como o estabelecimento de um estrito controle estatal sobre todas as transações econômicas. Do conjunto de tais disposições e projetos emerge claramente, é mister ressaltar, o horizonte de uma sociedade socialista, cabendo a Saint-Just uma posição de destaque entre os precursores desta corrente ideológica; a este respeito vale também salientar a importância que o autor atribui a uma ética do trabalho: todos os cidadãos devem contribuir com sua labuta para a riqueza da República, e o ócio deve ser punido com todo o rigor da lei. Descortina-se, portanto, a prospectiva de uma sociedade virtuosa, fundamentada em princípios ascéticos, com predomínio absoluto do interesse público e do labor coletivo sobre os desígnios particulares e privilégios.
Se a filosofia política de Saint-Just está plenamente delineada em suas principais linhas de fuga nos textos que consideramos nos parágrafos acima, é todavia nos Discours et Rapports, conforme assinalamos anteriormente, que seus dotes de exímio artesão da palavra eclodem com máxima magnitude: senhor de faiscante retórica literária, Saint-Just, com brilho ainda maior que Robespierre, transfigura na prática política diária da Revolução as teses progressistas do poder jacobino. É sobretudo fascinante examinar sua apologética do terror revolucionário como instrumento de intimidação política e regeneração moral, passível não apenas de alquebrar o ânimo da súcia reaccionária, mas também instruir o povo no rigor e firmeza necessários à constituição de uma república igualitária; presenciamos, outrossim, na reflexão de Saint-Just, o advento d'uma espécie de crueldade sagrada, iluminada pelo albor da justiça, compreendida como dever inescapável do revolucionário, pois só o terror revolucionário sublima, tempera, educa, exalta a ação transformativa das massas. Por fim, percebe-se claramente, através da leitura destas rutilantes filípicas, o patente elo de ligação conceitual e pragmática entre Saint-Just e os bolcheviques, com a noção de que o terror não precisa necessariamente ser um expediente a serviço da reação, mas também um dispositivo de ação revolucionária no enfrentamento das classes destronadas, bem como na formatação ideológica e até mesmo empírica da Nova Ordem, perspectiva política que a meu juízo permanece atualíssima, quiçá ainda mais relevante hoje do que outrora.
As obras de Louis Antoine Léon de Saint-Just (1767 - 1794) e Maximilien Marie Isidore de Robespierre (1758 - 1794) constituem uma leitura fundamental para os que tencionam investigar a gênese do pensamento revolucionário moderno; contudo, tendo em vista sua maior relevância e elaboração teórica, para efeito destes breves apontamentos concentraremos nosso atenção nos trabalhos do primeiro, o flamejante Archange de La Terreur.
A primeira edição integral dos escritos de Sain-Just de que se tem notícia só viria a lume tão somente no século XX (Ouevres Complètes de Saint-Just; Fasquelle, Paris, 1908, II tomes in octavo), de modo que o escopo de seu pensamento durante muito tempo foi vítima d’uma avaliação errática e parcial; destacam-se, do conjunto de sua obra, indubitavelmente o ensaio L'Esprit de la Révolution et de la Constitution de la France (originalmente publicado em 1791); o volume Fragments sur les Institutions Républicaines(1793); e a versão definitiva de seus Discours et Rapports (editados pela primeira vez em 1848).
L'Esprit de la Révolution et de la Constituition de la France é a expressão mais rematada do Saint-Just constitucionalista en dépit de soi-même (pois embora tenha chegado a graduar-se em direito na Universidade de Reims, jamais acalentou pretensões acadêmicas), capaz de analisar com fina argúcia a natureza das instituições republicanas e seu papel na conformação da futura sociedade revolucionária; os Fragments sur les Institutions Républicaines, por seu turno, já trazem à tona o reformador radical forjado nas labaredas do clamor revolucionário, estabelecendo o programa político jacobino com grande acuidade e eloqüência; nos Discours et Rapports manifesta-se, por fim, em toda a sua exuberância e sagacidade persuasiva, o gênio retórico de Saint-Just, convertendo em ação política concreta suas ardentes aspirações revolucionárias; é forçoso sublinhar, não obstante, que Saint-Just não foi um pensador tout court radical desde o início de sua breve malgrado intensa trajetória, consoante poderemos verificar a seguir.
Refletindo de certa forma a disposição relativamente moderada que animou a Revolução Francesa em sua fase inicial, L'Esprit de la Révolution et de la Constitution de la France(1791) reúne as primeiras reflexões do autor a propósito das questões políticas, jurídicas e sociais da França de seu tempo; como tantos outros textos publicados no período, este ensaio de Saint-Just foi sobremaneira influenciado pela filosofia iluminista, notadamente por Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778) e Charles-Louis de Secondat, Barão de Montesquieu ( 1689 - 1755); trata-se, pois, d’uma obra caudatária das injunções da conjuntura político-social que o país atravessava: predica, por exemplo, a monarquia constitucional como melhor sistema de governo, por avaliar que naquele momento o rei ainda era considerado uma salvaguarda do povo contra os desmandos da aristocracia; deste modo, enfatiza apenas a isonomia jurídica entre os cidadãos, sem atentar para a igualdade de riquezas, item que se tornaria crucial no projeto político ulterior de Saint-Just; defende também o voto censitário, malgrado advogue em contrapartida o direito das classes menos favorecidas a uma ampla rede de proteção social, bem como ao não pagamento de impostos; e de resto, estabelece um programa que contempla as liberdades republicanas consagradas: liberdade de opinião, de imprensa, de ir e vir, direito à livre associação, de reunião, etc. Não encontraremos nestas páginas, portanto, o Saint-Just regicida, o igualitarista irredutível, mas sim uma espécie de ‘liberal avançado’, com algumas tendências socializantes: percebe-se nitidamente que o autor ainda não está seguro a respeito das efetivas possibilidades da Revolução, adotando destarte a postura de garantir o que já havia sido conquistado ao invés de pugnar por reformas que porventura não pudessem ser consubstanciadas; todavia, a radicalização do processo revolucionário em curso no próximo triênio o fará despir-se, para seu próprio gáudio, de tais hesitações, levando-o de todo a abandonar, como examinaremos adiante, as concepções adrede esposadas.
Redigidos entre 1793 e 1794, os Fragments sur les Institutions Républicaines representam a maturidade de Saint-Just como pensador e dirigente revolucionário, em consonância com a consolidação da Nova Ordem em França, mormente no front político-institucional: a Convention Nationale republicana estava então, em caráter incontestável e soberano, à testa do país; Luís XVI, por seu turno, fora guilhotinado a 21 de janeiro de 1793, tendo Saint-Just inclusive desempenhado função precípua em todo o processo, com uma série de discursos à Convention em que demandava a execução do monarca, pronunciamentos notáveis (e que lhe valeram grande nomeada) tanto por sua veemente facúndia quanto pela perspicácia de suas alegações jurídicas, asseverando ser tal intento uma “medida de salvação pública”, vero imperativo para a manutenção das conquistas revolucionárias; assim sendo, Saint-Just passa doravante a preocupar-se com o aprofundamento das conquistas sociais da Revolução e o fortalecimento de sua base de sustentação política, e as questões relativas a esses tópicos dominarão boa parte da obra em tela. O insigne Archange de La Terreur passa a propugnar o estabelecimento de uma sociedade igualitária, e para tanto propõe medidas tais como o confisco imediato das propriedades de todos os inimigos da República, com a distribuição de seus haveres entre a camada pobre da população; a restrição progressiva ao direito de herança, e ainda a criação de um novo sistema de herança fundiária, onde as terras não mais são transmitidas diretamente dos titulares para seus sucessores, mas sim de forma indireta, por intermédio de um fundo agrário público administrado pelo Estado; a adoção de um modelo de organização político-econômico baseado na pequena propriedade e em práticas cooperativas, predicando também a implementação de mecanismos de democracia direta, com intuito de conferir maior capilaridade e vigor ao sistema representativo; o estímulo à adoção voluntária de crianças pobres por parte de famílias em melhor situação; a ênfase na função social da propriedade, a ser regulamentada pelo poder público, bem como o estabelecimento de um estrito controle estatal sobre todas as transações econômicas. Do conjunto de tais disposições e projetos emerge claramente, é mister ressaltar, o horizonte de uma sociedade socialista, cabendo a Saint-Just uma posição de destaque entre os precursores desta corrente ideológica; a este respeito vale também salientar a importância que o autor atribui a uma ética do trabalho: todos os cidadãos devem contribuir com sua labuta para a riqueza da República, e o ócio deve ser punido com todo o rigor da lei. Descortina-se, portanto, a prospectiva de uma sociedade virtuosa, fundamentada em princípios ascéticos, com predomínio absoluto do interesse público e do labor coletivo sobre os desígnios particulares e privilégios.
Se a filosofia política de Saint-Just está plenamente delineada em suas principais linhas de fuga nos textos que consideramos nos parágrafos acima, é todavia nos Discours et Rapports, conforme assinalamos anteriormente, que seus dotes de exímio artesão da palavra eclodem com máxima magnitude: senhor de faiscante retórica literária, Saint-Just, com brilho ainda maior que Robespierre, transfigura na prática política diária da Revolução as teses progressistas do poder jacobino. É sobretudo fascinante examinar sua apologética do terror revolucionário como instrumento de intimidação política e regeneração moral, passível não apenas de alquebrar o ânimo da súcia reaccionária, mas também instruir o povo no rigor e firmeza necessários à constituição de uma república igualitária; presenciamos, outrossim, na reflexão de Saint-Just, o advento d'uma espécie de crueldade sagrada, iluminada pelo albor da justiça, compreendida como dever inescapável do revolucionário, pois só o terror revolucionário sublima, tempera, educa, exalta a ação transformativa das massas. Por fim, percebe-se claramente, através da leitura destas rutilantes filípicas, o patente elo de ligação conceitual e pragmática entre Saint-Just e os bolcheviques, com a noção de que o terror não precisa necessariamente ser um expediente a serviço da reação, mas também um dispositivo de ação revolucionária no enfrentamento das classes destronadas, bem como na formatação ideológica e até mesmo empírica da Nova Ordem, perspectiva política que a meu juízo permanece atualíssima, quiçá ainda mais relevante hoje do que outrora.
Sem comentários:
Enviar um comentário