A meu juízo Agharta (1975) representa não apenas o ápice, a consumação estética da chamada 'fase elétrica' de Miles Davis, mas também de sua obra como um todo, sendo ainda um dos 10 melhores discos da história do Jazz. Para compreendê-lo, todavia, é mister recuar alguns anos em relação à data de seu lançamento, mais precisamente até 1969, ante-sala do mesmerizante turbilhão artístico com que o 'Dark Magus' aturdiria/maravilharia o mundo da música durante sete anos (Devo salientar que a trajetória de Miles até esse período, a despeito de sua enorme importância, não me interessa nem um pouco).
A década de 60 presenciava um Miles Davis caminhando perigosamente em direção à obsolescência artística. As circunvoluções do bebop e do cool jazz haviam ficado para trás, e Miles rejeitara enfaticamente a revolução free capitaneada por Ornette Coleman e Albert Ayler, não tanto por conservadorismo estético, pecado de que não se pode acusar-lhe, mas quiçá por vaidade; afinal de contas, não fora ele a lançá-la, o que para seu ego ciclópico já era razão mais do que suficiente para recusar-lhe qualquer mérito...; não obstante, hoje sabemos que o irrequieto trompetista, insatisfeito com os contornos que sua carreira vinha assumindo, estava urdindo em silêncio sua própria revolução: a fusão supersônica entre jazz, acid rock, música contemporânea e funk, cujo prelúdio, ainda que timidamente, viria à luz em 1968 com In a Silent Way. O marco fundamental, não obstante, estava reservado para o próximo ano...
Emoldurado por uma capa lisérgica, com seus longos temas, ora climáticos ora frenéticos, conduzidos por Miles com seu trompete guindado aos confins do espaço sideral pelos alucinantes cut ups e assombrosos efeitos de echo e delay criados pela arrojada produção de Teo Macero, Bitches Brew (1969) teve o efeito de uma bomba nuclear sobre o universo jazzístico, deixando a crítica a um só tempo perplexa, indignada e embevecida; não bastasse o impacto estético, converter-se-ia desde o princípio em grande sucesso de vendas, proporcionando a Miles margem de manobra para continuar experimentando bem como o pretexto ideal para uma série de injustas e patéticas acusações de sell out. Felizmente alheio a tais injunções, o mestre aprofundaria/ampliaria nos anos seguintes os postulados de sua 'revolução elétrica', lançando uma série contínua de discos memoráveis, tanto de estúdio como ao vivo, d'entre os quais poderíamos destacar A Tribute to Jack Johnson (1970 - seu disco mais rock'n'roll); Live-Evil (1970); Black Beauty: Miles Davis at Fillmore West (1971); On the Corner (1972 - algo como Stockhausen on acid trocando figurinhas com Hendrix em clima de street funk cibernético em NY); In Concert: Live at Philharmonic Hall (1973), etc., até chegar ao zênite de seus poderes como magnetizador do fogo dos deuses no biênio 1974-75, cujo primeiro fruto seria o mefistofélico Dark Magus (1974); não obstante, 1975 testemunharia um Miles ainda mais avassalador e implacável, com o lançamento de 2 massacres sonoros gravados num mesmo dia ao vivo em Osaka, no Japão: Pangaea (que registra o concerto da noite, uma pajelança bárbara from Jupiter and beyond the Infinite) e, claro está, o álbum em tela neste pedaço d'escrita (que documenta o concerto da tarde).
Agharta é um estraçalhante maremoto magmático de eletricidade demencial em estado bruto conjurado por guitarras e metais em fúria, uma ominosa floresta equatorial de percussões tonitruantes e o Senhor das Trevas comandando o artaudiano ritual de destruição com as imprecações apocalípticas de seu luciferino trompete conectado ao vácuo turbilhonante do inner void of the sonic neverness; apelando aqui para o gênio crítico de Julian Cope, trata-se d'uma verdadeira "blueprint for 3rd Eye Travel" via lancinante "sustained sonic obliteration". A esta altura do campeonato Miles já não compunha 'canções' propriamente ditas, mas sim dava livre curso a uma desenfreada improvisação coletiva a partir de alguns poucos temas preestabelecidos, os quais não raro só eram nomeados a posteriori. É exatamente o caso de Prelude (Parts I e II) e Interlude, minhas peças prediletas no álbum, dois incomparáveis cataclismos de deep funk fusion schizo electric meditational voodoo jazz from Hell em combustão espontânea despejando raios e trovões para todos os lados ou, como diria Cope, "the sound of all seven CDs from the Stooges' Funhouse boxed set played simultaneously throughout the house on small inferior ghetto blasters". Ladeando estas sulfúricas emanações de garage hermétique transmental, Miles ainda nos oferece magníficas versões para Maiysha (onde temos os únicos e breves interlúdios de suavidade em todo o álbum) e Theme from Jack Johnson (ainda mais malévola, rock'n'rollin, lúbrica e venenosa que sua irmã de estúdio).
Insomma, confrades: uma obra-prima indispensável para todos os amantes da aventura musical sem fronteiras e limites.
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Ten. Giovanni Drogo
Forte Bastiani
Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros
1 comentário:
Seu artigo é mais um argumento de que o Jazz tem origem e é diabólico!
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