Alphonse van Worden - 1750 AD
Estive a ler nas últimas semanas, ó egrégios irmãos d'armas, um tomo dos mais interessantes: trata-se de uma compilação de artigos e ensaios do iminente prócer bolchevique e teórico marxista Nikolay Bukharin (1888-1938), organizada pelo renomado historiador soviético Roy Medvedev (autor, d’entre outras obras, do monumental Let History Judge, até hoje o melhor livro já escrito sobre a barbárie stalinista). O volume reúne textos publicados originalmente entre 1918 e 1936, em sua maioria nos diários Pravda e Izvestiia. Há, decerto, algumas peças menos inspiradas, até mesmo revoltantes, sobretudo no biênio 1927-28, ápice do duunvirato Stalin-Bukharin, com especial demérito para a cínica condenação da ‘Plataforma dos 46’ e a obscena celebração pelo expurgo da ‘Oposição de Esquerda’; todavia, o número e qualidade dos momentos luminosos compensa de sobejo os supracitados deslizes, nomeadamente os magníficos artigos escritos entre 1929-1936, vazados na críptica, epigramática e fascinante linguagem ‘esópica’, estratégia diversionária muito característica na imprensa soviética submetida ao tacão stalinista, d’entre os quais se destacam os célebres Notas de um Economista (1930), seu ‘testamento’ em matéria de pensamento econômico, e o belíssimo Caminhos da História: Pensamentos em Voz Alta (1936), um pungente testamento político e existencial.
O que, entretanto, tenciono discutir na presente nota são dois temas constantes no pensar de Bukharin, e que me parecem particularmente relevantes à luz dos sinistros desdobramentos ulteriores da verdadeira tragédia de Ésquilo em que se converteu a Revolução Soviética. A primeira questão, alvo de numerosos textos do líder bolchevique entre 1918-1922, é a terrível suspeita de que a necessária violência revolucionária estava servindo como pretexto para que um sem-número de sociopatas e criminosos aderissem à insurreição de Outubro, com o fito de dar livre curso a vendettas pessoais, ressentimentos homicidas e toda sorte de arbitrariedades e taras truculentas. Consternado com tais eventos, Bukharin advertia para a necessidade do Partido Bolvechique, de um lado, e do Estado soviético, de outro, exercerem o máximo de cuidado e rigor na filiação de novos militantes e na arregimentação de novos funcionários. É mister recordarmos, vale dizer, que Lenin também externou em seus últimos artigos as mesmas preocupações de Bukharin, advertindo repetidamente para o facto de que o Partido precisava exercer a mais estrita disciplina e vigilância no tocante à admissão de novos membros; aliás, o saudoso Ulianov concluiu, no último lustro de sua existência, que a nomeação de Stalin para o cargo de Secretário-Geral havia sido um erro, pressentindo que o líder georgiano abriria as portas do Partido num afluxo indiscriminado de novas filiações, com o fito de fortalecer seu poder no aparato; não obstante, mais do que qualquer outro bolchevique ilustre, Bukharin deplorava a permanência de tendências chivovnik de cunho ‘asiático-imperial’ no seio do Partido e da administração soviética, sublinhando a necessidade vital de cada indivíduo a serviço da Revolução desempenhar suas lides de forma ponderada e sensível, promovendo a fraternidade socialista e a emulação dos bons exemplos. Para Bukharin, uma interface solidária e confiável entre o novo Estado proletário e o povo seria quiçá o instrumento mais importante do Partido no sentido de aprofundar e consubstanciar as conquistas soviéticas. A nefária ‘Revolução pelo Alto’ promovida pela camarilha stalinista, macabro ritual de inaudita violência institucional contra o povo em máximo grau de selvageria e crueldade, arrojou por terra as preciosas lições ministradas por Bukharin, que, aliás, também foram encampadas por Lênin em seus últimos anos de vida.
A segunda temática, de certa maneira correlata a primeira e de caráter ainda mais axial, diz respeito à ‘Paz Civil’ advogada por Bukharin como viga mestra nos procedimentos do Estado soviético pós-guerra civil. De acordo com insigne bolchevique, superadas a ameaça da contra-revolução e as convulsões econômicas do ‘Comunismo de Guerra’, o Estado e o Partido deveriam adotar procedimentos, tanto administrativos quanto político-ideológicos / persuasivos, de jaez decididamente pacífico, estimulando a colaboração e o entendimento entre os diversos setores da sociedade soviética. Em termos econômicos, tal iniciativa se manifestaria na smychka campo-cidade, estabelecendo que o compasso de crescimento da atividade industrial deveria ser ditado em simetria perfeita com o fortalecimento do setor agrícola, salientando a importância da sinergia gerencial como linha de fuga essencial em termos de política econômica; no que concerne à questão social, a ‘Paz Civil’ se traduz como ênfase numa política de tolerância e serenidade, isto é, de cooperação solidária entre o Estado e a sociedade no esforço conjunto de implementação harmoniosa da ordem socialista; na esfera cultural, enfim, tais preceitos se formulam como estímulo à diversidade fecundante e criativa de escolas e expressões artísticas, elemento crucial para o aprimoramento intelectual do próprio socialismo. Mais uma vez, contudo, o advento da era stalinista abortaria os ideais acalentados por Bukharin: com a adoção da malévola teoria segundo a qual a luta de classes se intensifica com a consolidação do socialismo, a URSS mergulhou num frenesi maníaco de violência irracional que destruiu os ainda frágeis alicerces da nova ordem.
À luz das concepções acima esboçadas torna-se possível, quero crer, uma melhor compreensão do confronto ideológico entre a 'direita' bukharinista, de um lado, e a 'esquerda' trotskista, de outro, que convulsionou e fraturou o poder soviético nos anos 20. Houve, pois, uma ominosa 'dissonância cognitiva' de parte a parte: Bukharin, por um lado, hiperdimensionou a ênfase que o programa econômico da esquerda conferia ao ritmo da industrialização soviética, nele identificando um caráter artificialmente otimista e exagerado. Bukharin acreditava na possibilidade de construção do 'Socialismo num só país', mas nos termos gradualistas da smycha campo-cidade, e não sob o ditame alucinante do super-industrialismo 'stakhanovista' à la Kuybishev-Stalin, o qual equivocadamente associou à plataforma da esquerda, superestimando as semelhanças pontuais que existiam entre o programa econômico de Trotsky-Preobhazensky (sobretudo no que tange ao conceito de 'Acumulação Primitiva Socialista') e as teses super-industrialistas da facção stalinista. O 'predileto de todo o Partido' cria, por conseguinte, que Preobrazhensky e Trotsky pretendiam esmagar os mercados camponeses, promovendo uma industrialização às expensas do setor agrícola; a facção staliana, por sua vez, habilmente ocultou seus intentos ulteriores, sustentando por questões de aliança estratégica de momento as posições bukharinistas. Preobhazensky e Trotsky, por fim, hipertrofiaram o significado da moderação bukharinista em termos de projeto econômico, ignorando o facto de que a distinção entre as idéias de ambos os grupos era de grau, e não de gênero; ao mesmo tempo, não atentaram devidamente para as concepções políticas de Bukharin, que defendia com veemência, assim como a Esquerda, a democracia partidária, advogando a necessidade de ampla liberdade de discussão interna.
Há também que salientar, por fim, que Bukharin entusiasmou-se em demasia com sua concepção da smychka campo-cidade como via preferencial para um crescimento econômico sólido e auto-sustentável, bem como para a edificação de uma sociedade pacífica e harmoniosa. O excelso teórico bolchevique parecia acalentar uma visão de cunho 'organicista-naturalista', isto é, que o processo de construção do socialismo seria quase um epifenômeno automático, desta maneira hiperdimensionando o potencial da via gradualista de desenvolvimento. Para Bukharin, a economia camponesa paulatinamente evoluiria para a coletivização por intermédio de três vias: a) a industrialização progressiva possibilitaria a mecanização dos processos agrícolas; b) a introdução pelo Estado de intrumentos e práticas de gestão econômica mais modernas e racionais; e, finalmente, c) a introdução de novas técnicas via incentivo à pesquisa científica. Desafortunadamente, contudo, tal concepção da sociedade soviética, quiçá excessivamente gradualista, logo seria atropelada com uma crueldade sem quartel pelo delírio economicista do stalinismo.
Estive a ler nas últimas semanas, ó egrégios irmãos d'armas, um tomo dos mais interessantes: trata-se de uma compilação de artigos e ensaios do iminente prócer bolchevique e teórico marxista Nikolay Bukharin (1888-1938), organizada pelo renomado historiador soviético Roy Medvedev (autor, d’entre outras obras, do monumental Let History Judge, até hoje o melhor livro já escrito sobre a barbárie stalinista). O volume reúne textos publicados originalmente entre 1918 e 1936, em sua maioria nos diários Pravda e Izvestiia. Há, decerto, algumas peças menos inspiradas, até mesmo revoltantes, sobretudo no biênio 1927-28, ápice do duunvirato Stalin-Bukharin, com especial demérito para a cínica condenação da ‘Plataforma dos 46’ e a obscena celebração pelo expurgo da ‘Oposição de Esquerda’; todavia, o número e qualidade dos momentos luminosos compensa de sobejo os supracitados deslizes, nomeadamente os magníficos artigos escritos entre 1929-1936, vazados na críptica, epigramática e fascinante linguagem ‘esópica’, estratégia diversionária muito característica na imprensa soviética submetida ao tacão stalinista, d’entre os quais se destacam os célebres Notas de um Economista (1930), seu ‘testamento’ em matéria de pensamento econômico, e o belíssimo Caminhos da História: Pensamentos em Voz Alta (1936), um pungente testamento político e existencial.
O que, entretanto, tenciono discutir na presente nota são dois temas constantes no pensar de Bukharin, e que me parecem particularmente relevantes à luz dos sinistros desdobramentos ulteriores da verdadeira tragédia de Ésquilo em que se converteu a Revolução Soviética. A primeira questão, alvo de numerosos textos do líder bolchevique entre 1918-1922, é a terrível suspeita de que a necessária violência revolucionária estava servindo como pretexto para que um sem-número de sociopatas e criminosos aderissem à insurreição de Outubro, com o fito de dar livre curso a vendettas pessoais, ressentimentos homicidas e toda sorte de arbitrariedades e taras truculentas. Consternado com tais eventos, Bukharin advertia para a necessidade do Partido Bolvechique, de um lado, e do Estado soviético, de outro, exercerem o máximo de cuidado e rigor na filiação de novos militantes e na arregimentação de novos funcionários. É mister recordarmos, vale dizer, que Lenin também externou em seus últimos artigos as mesmas preocupações de Bukharin, advertindo repetidamente para o facto de que o Partido precisava exercer a mais estrita disciplina e vigilância no tocante à admissão de novos membros; aliás, o saudoso Ulianov concluiu, no último lustro de sua existência, que a nomeação de Stalin para o cargo de Secretário-Geral havia sido um erro, pressentindo que o líder georgiano abriria as portas do Partido num afluxo indiscriminado de novas filiações, com o fito de fortalecer seu poder no aparato; não obstante, mais do que qualquer outro bolchevique ilustre, Bukharin deplorava a permanência de tendências chivovnik de cunho ‘asiático-imperial’ no seio do Partido e da administração soviética, sublinhando a necessidade vital de cada indivíduo a serviço da Revolução desempenhar suas lides de forma ponderada e sensível, promovendo a fraternidade socialista e a emulação dos bons exemplos. Para Bukharin, uma interface solidária e confiável entre o novo Estado proletário e o povo seria quiçá o instrumento mais importante do Partido no sentido de aprofundar e consubstanciar as conquistas soviéticas. A nefária ‘Revolução pelo Alto’ promovida pela camarilha stalinista, macabro ritual de inaudita violência institucional contra o povo em máximo grau de selvageria e crueldade, arrojou por terra as preciosas lições ministradas por Bukharin, que, aliás, também foram encampadas por Lênin em seus últimos anos de vida.
A segunda temática, de certa maneira correlata a primeira e de caráter ainda mais axial, diz respeito à ‘Paz Civil’ advogada por Bukharin como viga mestra nos procedimentos do Estado soviético pós-guerra civil. De acordo com insigne bolchevique, superadas a ameaça da contra-revolução e as convulsões econômicas do ‘Comunismo de Guerra’, o Estado e o Partido deveriam adotar procedimentos, tanto administrativos quanto político-ideológicos / persuasivos, de jaez decididamente pacífico, estimulando a colaboração e o entendimento entre os diversos setores da sociedade soviética. Em termos econômicos, tal iniciativa se manifestaria na smychka campo-cidade, estabelecendo que o compasso de crescimento da atividade industrial deveria ser ditado em simetria perfeita com o fortalecimento do setor agrícola, salientando a importância da sinergia gerencial como linha de fuga essencial em termos de política econômica; no que concerne à questão social, a ‘Paz Civil’ se traduz como ênfase numa política de tolerância e serenidade, isto é, de cooperação solidária entre o Estado e a sociedade no esforço conjunto de implementação harmoniosa da ordem socialista; na esfera cultural, enfim, tais preceitos se formulam como estímulo à diversidade fecundante e criativa de escolas e expressões artísticas, elemento crucial para o aprimoramento intelectual do próprio socialismo. Mais uma vez, contudo, o advento da era stalinista abortaria os ideais acalentados por Bukharin: com a adoção da malévola teoria segundo a qual a luta de classes se intensifica com a consolidação do socialismo, a URSS mergulhou num frenesi maníaco de violência irracional que destruiu os ainda frágeis alicerces da nova ordem.
À luz das concepções acima esboçadas torna-se possível, quero crer, uma melhor compreensão do confronto ideológico entre a 'direita' bukharinista, de um lado, e a 'esquerda' trotskista, de outro, que convulsionou e fraturou o poder soviético nos anos 20. Houve, pois, uma ominosa 'dissonância cognitiva' de parte a parte: Bukharin, por um lado, hiperdimensionou a ênfase que o programa econômico da esquerda conferia ao ritmo da industrialização soviética, nele identificando um caráter artificialmente otimista e exagerado. Bukharin acreditava na possibilidade de construção do 'Socialismo num só país', mas nos termos gradualistas da smycha campo-cidade, e não sob o ditame alucinante do super-industrialismo 'stakhanovista' à la Kuybishev-Stalin, o qual equivocadamente associou à plataforma da esquerda, superestimando as semelhanças pontuais que existiam entre o programa econômico de Trotsky-Preobhazensky (sobretudo no que tange ao conceito de 'Acumulação Primitiva Socialista') e as teses super-industrialistas da facção stalinista. O 'predileto de todo o Partido' cria, por conseguinte, que Preobrazhensky e Trotsky pretendiam esmagar os mercados camponeses, promovendo uma industrialização às expensas do setor agrícola; a facção staliana, por sua vez, habilmente ocultou seus intentos ulteriores, sustentando por questões de aliança estratégica de momento as posições bukharinistas. Preobhazensky e Trotsky, por fim, hipertrofiaram o significado da moderação bukharinista em termos de projeto econômico, ignorando o facto de que a distinção entre as idéias de ambos os grupos era de grau, e não de gênero; ao mesmo tempo, não atentaram devidamente para as concepções políticas de Bukharin, que defendia com veemência, assim como a Esquerda, a democracia partidária, advogando a necessidade de ampla liberdade de discussão interna.
Há também que salientar, por fim, que Bukharin entusiasmou-se em demasia com sua concepção da smychka campo-cidade como via preferencial para um crescimento econômico sólido e auto-sustentável, bem como para a edificação de uma sociedade pacífica e harmoniosa. O excelso teórico bolchevique parecia acalentar uma visão de cunho 'organicista-naturalista', isto é, que o processo de construção do socialismo seria quase um epifenômeno automático, desta maneira hiperdimensionando o potencial da via gradualista de desenvolvimento. Para Bukharin, a economia camponesa paulatinamente evoluiria para a coletivização por intermédio de três vias: a) a industrialização progressiva possibilitaria a mecanização dos processos agrícolas; b) a introdução pelo Estado de intrumentos e práticas de gestão econômica mais modernas e racionais; e, finalmente, c) a introdução de novas técnicas via incentivo à pesquisa científica. Desafortunadamente, contudo, tal concepção da sociedade soviética, quiçá excessivamente gradualista, logo seria atropelada com uma crueldade sem quartel pelo delírio economicista do stalinismo.
3 comentários:
Qual o nome do livro em questão, que reúne artigos selecionados de Bukharin, confrade?
Trata-se do seguinte volume:
N. Bukharin, Selected Writings on the State, Nottingham, 1982
Creio, não obstante, que boa parte dos escritos do líder bolchevique contidos no referido tomo podem ser encontrados no seguinte sítio:
http://www.marxists.org/archive/bukharin/library.htm
Grato.
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