domingo, setembro 11, 2005

SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI!



É possível afirmar, sem falsas patriotadas e 'verdeamarelismos' caricatos, que nada há no cinema europeu ou norte-americano que se equipare ao que de melhor nosso 'cinema marginal' produziu em termos de radicalidade terrorista de linguagem, de descompromisso absoluto e debochado em relação a todas as convenções formais e narrativas da sétima arte, e até mesmo de pura e divinamente gratuita estranheza. Parece, aliás, razoável afirmar que uma estética 'marginal' encontrará sua transfiguração mais dinâmica, intensa e vigorosa justamente no cinema, que por sua capacidade sinestésica ímpar, é o veículo par excellence para a conjuração de atmosferas onírico-delirantes.


É sobretudo surpreendente a desconcertante polissemia que os filmes 'marginais' proporcionam: excitantes, divertidos e picarescos para o 'povão' (público-alvo de parte considerável da produção da Boca do Lixo paulistana, vale dizer); e sobremaneira 'toscos', 'feios', 'desagradáveis' e 'irritantes' para a intelectualidade classe média soi disant 'bem pensante', cujo horizonte não logra jamais transcender os padrões qualitativos estabelecidos pela metrópole e suas 'bíblias de estilo' (Cahiers du Cinéma e tutti quanti). Há portanto uma décalage proposital e provocativa entre níveis de leitura que se projetam como reflexos invertidos de um mesmo espelho estético, que simultaneamente radicaliza seu caráter popularesco e sabota com conhecimento de causa e densidade filosófico-formal todas as linhas de fuga consagradas da arte cinematográfica.


São obras que rejeitam decididamente, pois, a noção careta, castradora e em última instãncia medíocre do 'filme de arte', isto é, do cinema que se apresenta como veículo de apuro formal, complexidade literária e elevação espiritual/intelectual. Assim sendo, se o arquetípico 'intelectual' midbrow de corte 'marxóide-existencialóide-psicologizante' vai assistir a um Hitler IIIº Mundo (1968 - José Agripino de Paula) ou Meteorango Kid, o Herói Intergalático (1969 - André Luiz de Oliveira), por exemplo, com Bergman, Visconti ou Renoir na cabeça (autores cujo mérito intrínseco não se discute, mas sim sua mumificação em parãmetros canônicos e incontestáveis por parte de certos setores 'culturalistas' eurocêntricos com complexo de vira-lata), isto é, com toda uma preconcebida e preconceituosa concepção de 'excelência cinematográfica', sairá da sessão a nocaute, de todo desnorteado/horrorizado, sem saborear sequer um fotograma visto; aliás, mesmo que seus referenciais sejam cineastas mais ousados como Godard ou Antonioni, é mister salientar que o espectador precisará estar preparado para uma impiedosa desconstrução sintático-morfológica do cinema; não obstante, é forçoso também ressaltar que tal processo de subversão formal/narrativa comporta uma dimensão afetiva, calorosa (algo especialmente presente no cinema de Carlos Reichenbach), já que movido pelo talante de envolver o público numa espécie de pajelança festiva que objetiva a desmistificação liberatória, conquanto paradoxalmente edificadora de outros paradigmas e horizontes, de todo um legado conceitual, cultural e existencial. Assim sendo, trata-se dum cinema que projeta uma estratégia das mais sedutoras e instigantes: é maravilhosamente 'acessível' ao espectador desprovido de informação estética prévia, e diabolicamente 'impenetrável' para o que se pretende portador de sofisticação cultural.


Filmes tais como as supracitadas, ou ainda A Mulher de Todos (1969 - Rogério Sganzerla), ZéZero (1974 - Ozualdo Candeias), O Monstro Caraíba (1975 - Júlio Bressane), A Ilha Dos Prazeres Proibidos (1978 - Carlos Reichenbach) e tantos outros, indubitavelmente destacam-se pela desorientação de uma linguagem fraturada e seu absoluto descomprometimento com o 'bom' cinema, verdadeiras orgias antropofágicas plenas de delírio, sátira, cultura pop, rádio, revistas sensacionalistas, alusões, subtextos, contextos e significados inauditos. O 'cinema marginal' é, desta forma, a consagração escrachada de uma antropofagia paródica e caleidoscópica, em obras que podem a um só tempo projetar-se como típicas pornochanchadas da Boca, com sucesso de público nos cinemas populares da época, e também como vertiginosas cornucópias de citações, referências e alusões políticas, históricas e literárias.



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

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