Alphonse van Worden - 1750 AD
Elaborado a partir de uma série de conferências, proferidas pelo físico alemão Werner Heisenberg entre 1956 e 1957 na Universidade de St. Andrews, na Escócia, o livro FÍSICA E FILOSOFIA trata das complexas relações entre as duas disciplinas, analisando o profundo impacto que o advento da física moderna exerceu, sobretudo a mecânica quântica, nas primeiras décadas deste século, sobre idéias filosóficas fundamentais, como Espaço, Tempo, relações de causa e efeito e o grau de objetividade alcançável nas observações humanas sobre a natureza. Neste último aspecto, por exemplo, a maior contribuição veio do próprio Heisenberg, através do princípio da indeterminação, formulado em 1927. A física clássica garantia ser possível medir, precisamente, as várias grandezas em jogo; nada poderia perturbar a exatidão do fenômeno observado. Estabelecendo ser impossível especificar e determinar, simultaneamente, com precisão absoluta, a posição e a velocidade de uma partícula, Heisenberg mostra como, no processo de medida de grandezas no campo da microfísica, se atinge um limite onde a precisão se torna impossível, mesmo teoricamente, pois o próprio ato de medida perturba, até certo ponto, o fenômeno, que não se pode avaliar com precisão. Este enunciado, por conseguinte, representa um rude golpe ao determinismo clássico, colocando em questão a própria noção de causalidade. O status de Heisenberg como um dos agentes principais nas transformações desencadeadas pela física moderna o coloca, portanto, numa posição privilegiada para pensar este processo.
Na análise destas significativas transformações, Física e Filosofia levanta duas questões fundamentais: A física é de todo independente da filosofia? A física tornou-se mais eficaz após desligar-se da filosofia? No decorrer de seu livro, o autor nos dirá que a respostas para ambas as perguntas é NÃO.
Para Heisenberg, o Isaac Newton legou-nos a impressão de que em seu labor científico não tinham sido feitas suposições além daquelas exigidas pelos dados experimentais. Depreende-se isso da sugestão que o célebre físico inglês fez de que não lançara mão de hipóteses, e de que deduzira seus conceitos básicos e leis tão somente dos fatos da experiência. Fosse correta a concepção de Newton sobre a relação existente entre resultados experimentais e teoria, jamais a física newtoniana, nos diz o autor, teria exigido qualquer modificação, pois nunca teria levado a resultados em desacordo com a experiência. E sendo ela conseqüência dos fatos experimentais, estaria acima de qualquer dúvida, e seria tão definitiva como aqueles fatos.
Em 1885, todavia, uma experiência realizada por Michelson e Morley veio revelar um facto que não poderia ocorrer se as teorias newtonianas encerrassem toda a verdade. Heisenberg afirma ter ficado, desse modo, evidente que a relação entre fatos experimentais e suposições teóricas é bem diversa daquela que Newton levara muitos físicos modernos a supor. Essa conclusão tornou-se irrecusável quando, cerca de dez anos mais tarde, as experiências sobre a radiação do corpo negro vieram a exigir a adição de novos pontos de vista ao pensamento newtoniano sobre o assunto. Expresso de maneira afirmativa, isso significa que as teorias da física não são uma mera descrição de fatos experimentais e nem, tampouco, algo dedutível de tal descrição; ao invés disso, como enfatizam Heisenberg e Einstein, o físico só chega à formulação de sua teoria por via especulativa. No método que o físico utiliza, as inferências que faz não caminham dos fatos à teoria, mas, sim, da teoria que assumiu aos fatos experimentais. Assim ,portanto, as teorias são propostas especulativamente e delas são deduzidas diretamente as muitas conseqüências a que dão lugar, a fim de que essas possam, indiretamente, ser confrontadas com os fatos experimentais. Qualquer teoria física, escreve Heisenberg, faz mais suposições do que os fatos experimentais, por si mesmos, fornecem ou implicam. Por esta razão, qualquer teoria está sujeita a ser modificada e reconstruída, quando do advento de novas evidências que sejam incompatíveis com suas suposições básicas, conforme ocorreu com a física newtoniana após a experiência de Michelson e Morley.
Essas suposições, além do mais, como afirma Heisenberg, são de caráter filosófico. Elas podem ser ontológicas, quando se referem ao objeto do conhecimento científico, o qual é independente do observador; ou, então, epistemológicas, quando se referem à relação entre o cientista, como experimentador e conhecedor, e o objeto que conhece. As teorias da relatividade, restrita e geral, modificam a filosofia da física moderna no aspecto ontológico acima referido, alterando radicalmente a teoria filosófica de espaço e tempo, e a relação desses com a matéria. A mecânica quântica, por seu turno, mormente com o ‘Princípio de Indeterminação’, notabiliza-se pela mudança que trouxe à epistemologia do físico, à relação entre o experimentador e o objeto de seu conhecimento científico, destacando-se também, ao retomar o conceito aristotélico de potencialidade na física moderna, por operar uma profunda revolução no campo ontológico.
Foi com base na introdução da aleatoriedade na definição do objeto que a física pesquisa, conceito que não pertencia às categorias epistemológicas tradicionais da disciplina, que Einstein fez sua crítica à mecânica quântica, declarando que "Deus não joga dados". Com isso, ele queria dizer que o conceito de acaso encontra seu sentido na ciência tão somente pelas limitações epistemológicas que decorrem da finitude da mente humana, em sua relação com o objeto omnicompleto do conhecimento científico, sendo portanto erroneamente aplicado quando ontologicamente diz respeito ao próprio objeto. Sendo o objeto, per si, todo completo e, nesse sentido, omnisciente à maneira de Deus, o conceito de probabilidade não é adequado em qualquer descrição científica desse objeto.
Heisenberg procura responder às objeções de Einstein, pedindo ao leitor que tenha em mente duas coisas: (1) A relação acima mencionada entre os dados experimentais da física e os conceitos de sua teoria; (2) a diferença entre o papel que o conceito de probabilidade desempenha em (a) mecânica newtoniana e relatividade einsteniana, e em (b)mecânica quântica. No que diz respeito ao item (1), Einstein e Heisenberg estão de acordo. Sua divergência está no item (2).
O item (1) afirma que os dados experimentais da física não implicam sua conceituação teórica. Segue-se que o objeto do conhecimento jamais é conhecido diretamente da observação, isto é, da experimentação, mas sim pela construção teórica (ou postulação axiomática), especulativamente proposta, e testada indireta e experimentalmente por intermédio das conseqüências que são deduzidas daquela construção. Para se compreender o objeto do conhecimento científico, devemos, por conseguinte, partir de suposições teóricas a seu respeito. Quando assim procedermos, por um lado no caso (a) das mecânicas newtoniana e einsteiniana, e, por outro, no caso (b) da mecânica quântica, descobriremos, segundo Heisenberg, que o conceito de probabilidade, ou aleatoriedade, entra na definição do estado de um sistema físico e, nesse sentido, no seu próprio objeto de estudo, somente no caso da mecânica quântica, mas não no que diz que respeito à mecânica de Newton e à teoria da relatividade de Einstein. É isso que o autor do livro tem em mente quando diz que a teoria quântica reintroduz a potencialidade aristotélica na física.
Nas teorias de Newton e Einstein, o estado de qualquer sistema físico isolado, em um dado instante de tempo, fica precisa e completamente determinado pelo conhecimento, empiricamente adquirido, dos valores que correspondem à posição e ao momento linear de cada uma das partes, desse sistema, naquele instante de tempo. Não há lugar para valores probabilísticos. Na mecânica quântica, a interpretação de uma observação experimental de um sistema físico é algo mais complexo. Poderá consistir de uma única leitura, cuja precisão terá de ser avaliada, ou então poderá consistir de um conjunto intrincado de dados, como no caso de uma fotografia de gotículas d'água na câmara de Wilson, experimento citado por Heisenberg. Em ambos os casos, afirma o autor, o resultado só poderá ser expresso em termos de uma distribuição de probabilidades que diga respeito, por exemplo, à posição e ao momento linear das partículas do sistema. A teoria então poderá prever a distribuição de probabilidades para tempos futuros, mas não poderá ser experimentalmente verificada, em qualquer um desses instantes futuros, com base no resultado experimental segundo o qual os valores das posições, ou dos momentos lineares, estejam dentro dos limites preditos, em uma observação específica. A mesma experiência terá de ser realizada repetidas vezes, de maneira que os valores das posições e dos momentos lineares se distribuam de modo a configurar o esquema de probabilidades predito. A diferença essencial entre a mecânica quântica e as mecânicas de Newton e de Einstein reside, observa Heisenberg, na maneira de determinar o estado de um sistema físico em qualquer instante de tempo. A mecânica quântica introduz o conceito de probabilidade, e mesmo o de indeterminação, em sua definição de estado, o que não acontece nas mecânicas newtoniana e einsteiniana. Isso não significa, afirma o autor, que não haja espaço, em Newton e em Einstein, para o conceito de probabilidade. Todavia, nesses dois casos, o conceito se restringe à teoria dos erros, para determinar a precisão do Sim e do Não, isto é, a verificação ou não-confirmação da predição da teoria. Desta maneira, o conceito de probabilidade restringe-se à relação epistemológica do cientista na verificação do que ele conhece, estando, contudo, ausente na formulação teórica desse conhecimento. Para mecânica quântica, a indeterminação está presente na própria ontologia do objeto de conhecimento.
A divergência entre os pontos de vista de Einstein e os da mecânica quântica suscitou uma série de debates nos meios científicos e filosóficos. O próprio Heisenberg, envolvido diretamente na querela, enumera algumas das diferentes respostas que foram dadas para o problema.
Alguns físicos e filósofos, realçando o papel das definições operacionais, argumentaram que, como todas as teorias físicas, as clássicas inclusive, são acompanhadas de erros e incertezas humanas, não há o que decidir entre Einstein e os físicos quânticos. Para Heisenberg, todavia, essa posição não leva em consideração a presença, no método científico, de definições operacionais axiomaticamente construídas, definições teóricas constitutivas assim como a teoria dos erros, e também supõe que o conceito de probabilidade, e mesmo o conceito mais complexo de relação de incerteza, só compareça na mecânica quântica no sentido de uma definição operacional, ou seja, num contexto epistemológico, suposição que Heisenberg não admite.
Outros pensadores, que adotaram uma atitude diametralmente oposta, argumentaram que só o fato de haver incerteza na predição de certos fenômenos não é suficiente para se sustentar a tese de que esses fenômenos não sejam passíveis de uma determinação total. Esse argumento combina o problema estático de definir o estado de um sistema mecânico, em dado instante de tempo, com o problema dinâmico, ou causal, de predizer mudanças no estado do sistema, no correr do tempo. Heisenberg esclarece que o conceito de probabilidade só comparece, em mecânica quântica, no aspecto estático dessa teoria, ou seja, em sua definição do estado do sistema. O autor pede para tenhamos em mente a diferença entre a definição teórica, estática, de estado, e o aspecto dinâmico, ou causal, da mudança do estado, no passar do tempo. No que concerne ao primeiro desses aspectos, os conceitos de probabilidade e de incerteza comparecem teoricamente e em princípio, não se referindo meramente às incertezas e erros de natureza operacional e epistemológica, frutos da imprecisão do pensamento humano, que pertencem a qualquer teoria física e a suas experimentações. Poderíamos perguntar, ressalta Heisenberg, se o conceito de probabilidade deveria ser introduzido, em princípio, na definição teórica de estado, em qualquer instante estático T1. A justificação para esse procedimento, adotado pela mecânica quântica, é justamente a acima mencionada tese (1), aceita pelo próprio Einstein.
A tese (1) afirma que conhecemos o objeto do conhecimento científico somente por meios especulativos de construção axiomática teórica; é, portanto, falsa a sugestão feita por Newton de que o físico possa inferir os conceitos teóricos dos dados experimentais. Em conseqüência, não existe em nenhum sentido, a priori ou empírico, base para se afirmar que o objeto do conhecimento científico ou, mais especificamente, o estado de um sistema mecânico, em um dado instante T1 deva ser definido de certa maneira. O único critério a respeito, assevera o autor, decorre da seguinte pergunta: qual o conjunto de suposições teóricas, referentes ao objeto da mecânica, cujas conseqüências sejam confirmadas pelos dados experimentais?
Para Heisenberg, quando definimos, teoricamente e em princípio, o estado de um sistema físico, para fenômenos subatômicos, somente em termos de números associados à posição e momento linear, como Einstein gostaria que fizéssemos, e deduzimos as conseqüências teóricas no caso, por exemplo, da radiação do corpo negro, ocorre que essa suposição teórica - que diz respeito à definição do estado de um sistema físico e ao objeto da física atômica - se revela em desacordo com a evidência experimental. Os fatos experimentais simplesmente não respondem ao que a teoria prevê. Todavia, responde Heisenberg, quando se modifica a teoria tradicional pela introdução da constante de Planck e a inclusão, em princípio, de um segundo conjunto de valores associados às probabilidades de se encontrar certos números para as posições e momentos lineares, do qual se segue o princípio da indeterminação, então os dados experimentais confirmam os novos conceitos e princípios. A situação em mecânica quântica, no que diz respeito às experiências sobre a radiação do corpo negro, é análoga àquela com que Einstein se defrontou, face à experiência de Michelson-Morley. Em ambos os casos, foi a introdução de uma nova suposição teórica que logrou em reconciliar a teoria física com os fatos experimentais. Portanto, conclui o autor, afirmar que, a despeito da mecânica quântica, posições e momentos lineares (de partículas subatômicas) estejam, na "realidade", precisamente localizados no tempo e no espaço, e, assim, determinados por um par de valores somente, o que corresponde a uma descrição completa e causalmente determinista, como queria Einstein, significa professar uma teoria, sobre o objeto do conhecimento físico, cujas experiências sobre a radiação do corpo negro revelaram ser falsa, no sentido de que resultados deduzidos dessa teoria não se confirmam experimentalmente.
Heisenberg afirma que não devemos concluir, do que acima foi exposto, ser impossível a descoberta de uma nova teoria, compatível com os fatos experimentais, na qual o conceito de probabilidade não apareça, em princípio, em sua definição de estado. Essa teoria, todavia, teria que rejeitar a definição de estado no espaço-tempo quadridimensional da relatividade restrita einsteiniana, e seria, portanto, incompatível com a tese de Einstein por uma série de razões. Mesmo assim, estabelece o autor, até que uma nova teoria alternativa seja apresentada, qualquer um que não possua fonte alguma de informação, a priori ou pessoal, sobre qual deva ser o objeto do conhecimento científico, não terá outra possibilidade a não ser aceitar a definição de estado proposta pela teoria quântica, aceitando que a referida definição restaura o conceito aristotélico de potencialidade no objeto do conhecimento científico moderno. As experiências sobre a radiação do corpo negro exigem que se conclua, ao menos por enquanto, que Deus está jogando seus dados, e que, como dizia Mallarmé, "un coup de dés jamais n'abolira le hasard"...
O impacto exercido por esta significativa revolução científica sobre o pensamento moderno foi devastador. O advento da incerteza na determinação dos fenômenos físicos subatômicos abalou fortemente as antes monolíticas estruturas da racionalidade científica clássica. A existência de fenômenos que o homem é incapaz de prever representa um rude golpe para a crença na razão humana omnipotente e determinista. O homem, que antes podia determinar, esquadrinhar, mensurar e prever todas as instâncias do Real, descobriu que este não lhe permite o acesso a algumas de suas dimensões. Ciente da magnitude das transformações envolvidas pelo advento da física moderna, Heisenberg, como um dos importantes participantes deste processo, se faz a seguinte pergunta: de que maneira essa nova forma de pensar, criação do mundo ocidental, irá afetar outras partes do mundo?
A ciência moderna, conclui o autor, é, na atualidade, uma realidade cada vez mais tangível em regiões do planeta onde as tradições culturais são completamente distintas daquelas da civilização européia-ocidental. Heisenberg acredita que o impacto desta revolução tecno-científica será, para os denominados 'países em desenvolvimento', ainda mais forte do que o sentido pela Europa e América do Norte, pois mudanças nas condições de vida que exigiram dois ou três séculos, entre os europeus e norte-americanos, neles ocorrerão dentro de umas poucas décadas. Os novos caminhos irão, quer queiramos ou não, alterar e parcialmente destruir costumes e valores tradicionais. Para Heisenberg, a tarefa mais importante do pensamento moderno é a tentativa de se estabelecer uma ponte entre o progresso científico e as concepções culturais e religiosas da tradição. A construção desta ponte é, todavia, uma tarefa extremamente complexa, prenhe de desafios. Como observa Heisenberg, é muito freqüente, entre dirigentes de países do Terceiro Mundo, bem como entre seus assessores ocidentais, a crença de que a aceitação por esses países das técnicas e procedimentos modernos seja meramente a de lhes propiciar uma abertura para sua independência econômica e, depois, meios e instrumentos práticos de ação que a tecnologia proporciona. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que os equipamentos da física moderna derivam de sua teoria e requerem uma compreensão dessa teoria, a fim de que possam ser corretamente fabricados e eficientemente utilizados. Em segundo, que essa teoria, por seu lado, baseia-se em pressupostos físicos e filosóficos. Quando compreendidos, esses pressupostos filosóficos geram mentalidade e comportamento, individual e social, bem diversos e, em alguns casos, incompatíveis com as tradições de família e casta, com a mentalidade tribal vigente. Em resumo, é impossível se introduzir os instrumentos da física moderna sem, cedo ou tarde, introduzir a atitude filosófica correspondente e, à medida que essa atitude cative os jovens que receberam treinamento científico, ela virá a afetar a tessitura moral da família e da comunidade. A fim de se evitar conflitos emocionais desnecessários e desmoralização social, é importante que os jovens entendam o que está acontecendo. Isso significa que eles devem ver a transição por que passam como a convergência de duas mentalidades filosóficas diversas: a de sua cultura tradicional e aquela da física, reconciliando tradições passadas e novas linhas de pensamento. Daí a importância de se entender a filosofia da física moderna. A grande contribuição que o Japão trouxe no campo da física teórica, desde a última guerra, é vista pelo físico alemão como uma indicação de certo relacionamento entre as idéias filosóficas da tradição oriental e o conteúdo filosófico da física quântica.
Heisenberg conclui que a física moderna é tão-somente uma parte, embora fundamental, de um processo histórico geral que tende a uma unificação, a um alargamento do nosso mundo. Este processo, que, no dias de hoje é cada vez mais intenso, tenderia, em tese, a diminuir as tensões culturais que põem em perigo a nossa época. Ele, todavia, conforme previu Heisenberg, é acompanhado por um outro processo que age em sentido oposto. O fato de que as grandes massas tornaram-se conscientes desse processo de unificação conduz a uma instigação de todas as forças, nas comunidades culturais existentes, no sentido de assegurar a seus valores tradicionais o papel mais destacado nesse estágio final unitário. A recente explosão, em escala mundial, dos diversos tipos de nacionalismos e fundamentalismos políticos e culturais, é uma inquestionável confirmação das piores preocupações de Heisenberg. Consequentemente, crescem as tensões, e os dois processos, em competição, são de tal forma interligados, que qualquer intensificação nessa busca de unidade - por exemplo, através de novas conquistas técnicas - tornará ainda mais acirrada a luta para influenciar o estado final. E, assim, aumenta a instabilidade dessa situação transitória. A física moderna, possivelmente, tem um papel secundário nesse difícil processo de unificação. Ela porém, estabelece Heisenberg, poderá ajudar, em dois pontos decisivos, a guiar essa evolução por caminhos menos tormentosos. Em primeiro lugar, ela mostra que o recurso às armas, nesse processo, seria fatalmente catastrófico, e em segundo, por sua atitude aberta, face a todos os tipos de conceitos, faz renascer a esperança de que, nos estágio final de unificação, tradições culturais distintas possam viver lado a lado, podendo mesmo combinar diferentes iniciativas humanas em um novo equilíbrio entre pensamento e ação, atividade e meditação.
Elaborado a partir de uma série de conferências, proferidas pelo físico alemão Werner Heisenberg entre 1956 e 1957 na Universidade de St. Andrews, na Escócia, o livro FÍSICA E FILOSOFIA trata das complexas relações entre as duas disciplinas, analisando o profundo impacto que o advento da física moderna exerceu, sobretudo a mecânica quântica, nas primeiras décadas deste século, sobre idéias filosóficas fundamentais, como Espaço, Tempo, relações de causa e efeito e o grau de objetividade alcançável nas observações humanas sobre a natureza. Neste último aspecto, por exemplo, a maior contribuição veio do próprio Heisenberg, através do princípio da indeterminação, formulado em 1927. A física clássica garantia ser possível medir, precisamente, as várias grandezas em jogo; nada poderia perturbar a exatidão do fenômeno observado. Estabelecendo ser impossível especificar e determinar, simultaneamente, com precisão absoluta, a posição e a velocidade de uma partícula, Heisenberg mostra como, no processo de medida de grandezas no campo da microfísica, se atinge um limite onde a precisão se torna impossível, mesmo teoricamente, pois o próprio ato de medida perturba, até certo ponto, o fenômeno, que não se pode avaliar com precisão. Este enunciado, por conseguinte, representa um rude golpe ao determinismo clássico, colocando em questão a própria noção de causalidade. O status de Heisenberg como um dos agentes principais nas transformações desencadeadas pela física moderna o coloca, portanto, numa posição privilegiada para pensar este processo.
Na análise destas significativas transformações, Física e Filosofia levanta duas questões fundamentais: A física é de todo independente da filosofia? A física tornou-se mais eficaz após desligar-se da filosofia? No decorrer de seu livro, o autor nos dirá que a respostas para ambas as perguntas é NÃO.
Para Heisenberg, o Isaac Newton legou-nos a impressão de que em seu labor científico não tinham sido feitas suposições além daquelas exigidas pelos dados experimentais. Depreende-se isso da sugestão que o célebre físico inglês fez de que não lançara mão de hipóteses, e de que deduzira seus conceitos básicos e leis tão somente dos fatos da experiência. Fosse correta a concepção de Newton sobre a relação existente entre resultados experimentais e teoria, jamais a física newtoniana, nos diz o autor, teria exigido qualquer modificação, pois nunca teria levado a resultados em desacordo com a experiência. E sendo ela conseqüência dos fatos experimentais, estaria acima de qualquer dúvida, e seria tão definitiva como aqueles fatos.
Em 1885, todavia, uma experiência realizada por Michelson e Morley veio revelar um facto que não poderia ocorrer se as teorias newtonianas encerrassem toda a verdade. Heisenberg afirma ter ficado, desse modo, evidente que a relação entre fatos experimentais e suposições teóricas é bem diversa daquela que Newton levara muitos físicos modernos a supor. Essa conclusão tornou-se irrecusável quando, cerca de dez anos mais tarde, as experiências sobre a radiação do corpo negro vieram a exigir a adição de novos pontos de vista ao pensamento newtoniano sobre o assunto. Expresso de maneira afirmativa, isso significa que as teorias da física não são uma mera descrição de fatos experimentais e nem, tampouco, algo dedutível de tal descrição; ao invés disso, como enfatizam Heisenberg e Einstein, o físico só chega à formulação de sua teoria por via especulativa. No método que o físico utiliza, as inferências que faz não caminham dos fatos à teoria, mas, sim, da teoria que assumiu aos fatos experimentais. Assim ,portanto, as teorias são propostas especulativamente e delas são deduzidas diretamente as muitas conseqüências a que dão lugar, a fim de que essas possam, indiretamente, ser confrontadas com os fatos experimentais. Qualquer teoria física, escreve Heisenberg, faz mais suposições do que os fatos experimentais, por si mesmos, fornecem ou implicam. Por esta razão, qualquer teoria está sujeita a ser modificada e reconstruída, quando do advento de novas evidências que sejam incompatíveis com suas suposições básicas, conforme ocorreu com a física newtoniana após a experiência de Michelson e Morley.
Essas suposições, além do mais, como afirma Heisenberg, são de caráter filosófico. Elas podem ser ontológicas, quando se referem ao objeto do conhecimento científico, o qual é independente do observador; ou, então, epistemológicas, quando se referem à relação entre o cientista, como experimentador e conhecedor, e o objeto que conhece. As teorias da relatividade, restrita e geral, modificam a filosofia da física moderna no aspecto ontológico acima referido, alterando radicalmente a teoria filosófica de espaço e tempo, e a relação desses com a matéria. A mecânica quântica, por seu turno, mormente com o ‘Princípio de Indeterminação’, notabiliza-se pela mudança que trouxe à epistemologia do físico, à relação entre o experimentador e o objeto de seu conhecimento científico, destacando-se também, ao retomar o conceito aristotélico de potencialidade na física moderna, por operar uma profunda revolução no campo ontológico.
Foi com base na introdução da aleatoriedade na definição do objeto que a física pesquisa, conceito que não pertencia às categorias epistemológicas tradicionais da disciplina, que Einstein fez sua crítica à mecânica quântica, declarando que "Deus não joga dados". Com isso, ele queria dizer que o conceito de acaso encontra seu sentido na ciência tão somente pelas limitações epistemológicas que decorrem da finitude da mente humana, em sua relação com o objeto omnicompleto do conhecimento científico, sendo portanto erroneamente aplicado quando ontologicamente diz respeito ao próprio objeto. Sendo o objeto, per si, todo completo e, nesse sentido, omnisciente à maneira de Deus, o conceito de probabilidade não é adequado em qualquer descrição científica desse objeto.
Heisenberg procura responder às objeções de Einstein, pedindo ao leitor que tenha em mente duas coisas: (1) A relação acima mencionada entre os dados experimentais da física e os conceitos de sua teoria; (2) a diferença entre o papel que o conceito de probabilidade desempenha em (a) mecânica newtoniana e relatividade einsteniana, e em (b)mecânica quântica. No que diz respeito ao item (1), Einstein e Heisenberg estão de acordo. Sua divergência está no item (2).
O item (1) afirma que os dados experimentais da física não implicam sua conceituação teórica. Segue-se que o objeto do conhecimento jamais é conhecido diretamente da observação, isto é, da experimentação, mas sim pela construção teórica (ou postulação axiomática), especulativamente proposta, e testada indireta e experimentalmente por intermédio das conseqüências que são deduzidas daquela construção. Para se compreender o objeto do conhecimento científico, devemos, por conseguinte, partir de suposições teóricas a seu respeito. Quando assim procedermos, por um lado no caso (a) das mecânicas newtoniana e einsteiniana, e, por outro, no caso (b) da mecânica quântica, descobriremos, segundo Heisenberg, que o conceito de probabilidade, ou aleatoriedade, entra na definição do estado de um sistema físico e, nesse sentido, no seu próprio objeto de estudo, somente no caso da mecânica quântica, mas não no que diz que respeito à mecânica de Newton e à teoria da relatividade de Einstein. É isso que o autor do livro tem em mente quando diz que a teoria quântica reintroduz a potencialidade aristotélica na física.
Nas teorias de Newton e Einstein, o estado de qualquer sistema físico isolado, em um dado instante de tempo, fica precisa e completamente determinado pelo conhecimento, empiricamente adquirido, dos valores que correspondem à posição e ao momento linear de cada uma das partes, desse sistema, naquele instante de tempo. Não há lugar para valores probabilísticos. Na mecânica quântica, a interpretação de uma observação experimental de um sistema físico é algo mais complexo. Poderá consistir de uma única leitura, cuja precisão terá de ser avaliada, ou então poderá consistir de um conjunto intrincado de dados, como no caso de uma fotografia de gotículas d'água na câmara de Wilson, experimento citado por Heisenberg. Em ambos os casos, afirma o autor, o resultado só poderá ser expresso em termos de uma distribuição de probabilidades que diga respeito, por exemplo, à posição e ao momento linear das partículas do sistema. A teoria então poderá prever a distribuição de probabilidades para tempos futuros, mas não poderá ser experimentalmente verificada, em qualquer um desses instantes futuros, com base no resultado experimental segundo o qual os valores das posições, ou dos momentos lineares, estejam dentro dos limites preditos, em uma observação específica. A mesma experiência terá de ser realizada repetidas vezes, de maneira que os valores das posições e dos momentos lineares se distribuam de modo a configurar o esquema de probabilidades predito. A diferença essencial entre a mecânica quântica e as mecânicas de Newton e de Einstein reside, observa Heisenberg, na maneira de determinar o estado de um sistema físico em qualquer instante de tempo. A mecânica quântica introduz o conceito de probabilidade, e mesmo o de indeterminação, em sua definição de estado, o que não acontece nas mecânicas newtoniana e einsteiniana. Isso não significa, afirma o autor, que não haja espaço, em Newton e em Einstein, para o conceito de probabilidade. Todavia, nesses dois casos, o conceito se restringe à teoria dos erros, para determinar a precisão do Sim e do Não, isto é, a verificação ou não-confirmação da predição da teoria. Desta maneira, o conceito de probabilidade restringe-se à relação epistemológica do cientista na verificação do que ele conhece, estando, contudo, ausente na formulação teórica desse conhecimento. Para mecânica quântica, a indeterminação está presente na própria ontologia do objeto de conhecimento.
A divergência entre os pontos de vista de Einstein e os da mecânica quântica suscitou uma série de debates nos meios científicos e filosóficos. O próprio Heisenberg, envolvido diretamente na querela, enumera algumas das diferentes respostas que foram dadas para o problema.
Alguns físicos e filósofos, realçando o papel das definições operacionais, argumentaram que, como todas as teorias físicas, as clássicas inclusive, são acompanhadas de erros e incertezas humanas, não há o que decidir entre Einstein e os físicos quânticos. Para Heisenberg, todavia, essa posição não leva em consideração a presença, no método científico, de definições operacionais axiomaticamente construídas, definições teóricas constitutivas assim como a teoria dos erros, e também supõe que o conceito de probabilidade, e mesmo o conceito mais complexo de relação de incerteza, só compareça na mecânica quântica no sentido de uma definição operacional, ou seja, num contexto epistemológico, suposição que Heisenberg não admite.
Outros pensadores, que adotaram uma atitude diametralmente oposta, argumentaram que só o fato de haver incerteza na predição de certos fenômenos não é suficiente para se sustentar a tese de que esses fenômenos não sejam passíveis de uma determinação total. Esse argumento combina o problema estático de definir o estado de um sistema mecânico, em dado instante de tempo, com o problema dinâmico, ou causal, de predizer mudanças no estado do sistema, no correr do tempo. Heisenberg esclarece que o conceito de probabilidade só comparece, em mecânica quântica, no aspecto estático dessa teoria, ou seja, em sua definição do estado do sistema. O autor pede para tenhamos em mente a diferença entre a definição teórica, estática, de estado, e o aspecto dinâmico, ou causal, da mudança do estado, no passar do tempo. No que concerne ao primeiro desses aspectos, os conceitos de probabilidade e de incerteza comparecem teoricamente e em princípio, não se referindo meramente às incertezas e erros de natureza operacional e epistemológica, frutos da imprecisão do pensamento humano, que pertencem a qualquer teoria física e a suas experimentações. Poderíamos perguntar, ressalta Heisenberg, se o conceito de probabilidade deveria ser introduzido, em princípio, na definição teórica de estado, em qualquer instante estático T1. A justificação para esse procedimento, adotado pela mecânica quântica, é justamente a acima mencionada tese (1), aceita pelo próprio Einstein.
A tese (1) afirma que conhecemos o objeto do conhecimento científico somente por meios especulativos de construção axiomática teórica; é, portanto, falsa a sugestão feita por Newton de que o físico possa inferir os conceitos teóricos dos dados experimentais. Em conseqüência, não existe em nenhum sentido, a priori ou empírico, base para se afirmar que o objeto do conhecimento científico ou, mais especificamente, o estado de um sistema mecânico, em um dado instante T1 deva ser definido de certa maneira. O único critério a respeito, assevera o autor, decorre da seguinte pergunta: qual o conjunto de suposições teóricas, referentes ao objeto da mecânica, cujas conseqüências sejam confirmadas pelos dados experimentais?
Para Heisenberg, quando definimos, teoricamente e em princípio, o estado de um sistema físico, para fenômenos subatômicos, somente em termos de números associados à posição e momento linear, como Einstein gostaria que fizéssemos, e deduzimos as conseqüências teóricas no caso, por exemplo, da radiação do corpo negro, ocorre que essa suposição teórica - que diz respeito à definição do estado de um sistema físico e ao objeto da física atômica - se revela em desacordo com a evidência experimental. Os fatos experimentais simplesmente não respondem ao que a teoria prevê. Todavia, responde Heisenberg, quando se modifica a teoria tradicional pela introdução da constante de Planck e a inclusão, em princípio, de um segundo conjunto de valores associados às probabilidades de se encontrar certos números para as posições e momentos lineares, do qual se segue o princípio da indeterminação, então os dados experimentais confirmam os novos conceitos e princípios. A situação em mecânica quântica, no que diz respeito às experiências sobre a radiação do corpo negro, é análoga àquela com que Einstein se defrontou, face à experiência de Michelson-Morley. Em ambos os casos, foi a introdução de uma nova suposição teórica que logrou em reconciliar a teoria física com os fatos experimentais. Portanto, conclui o autor, afirmar que, a despeito da mecânica quântica, posições e momentos lineares (de partículas subatômicas) estejam, na "realidade", precisamente localizados no tempo e no espaço, e, assim, determinados por um par de valores somente, o que corresponde a uma descrição completa e causalmente determinista, como queria Einstein, significa professar uma teoria, sobre o objeto do conhecimento físico, cujas experiências sobre a radiação do corpo negro revelaram ser falsa, no sentido de que resultados deduzidos dessa teoria não se confirmam experimentalmente.
Heisenberg afirma que não devemos concluir, do que acima foi exposto, ser impossível a descoberta de uma nova teoria, compatível com os fatos experimentais, na qual o conceito de probabilidade não apareça, em princípio, em sua definição de estado. Essa teoria, todavia, teria que rejeitar a definição de estado no espaço-tempo quadridimensional da relatividade restrita einsteiniana, e seria, portanto, incompatível com a tese de Einstein por uma série de razões. Mesmo assim, estabelece o autor, até que uma nova teoria alternativa seja apresentada, qualquer um que não possua fonte alguma de informação, a priori ou pessoal, sobre qual deva ser o objeto do conhecimento científico, não terá outra possibilidade a não ser aceitar a definição de estado proposta pela teoria quântica, aceitando que a referida definição restaura o conceito aristotélico de potencialidade no objeto do conhecimento científico moderno. As experiências sobre a radiação do corpo negro exigem que se conclua, ao menos por enquanto, que Deus está jogando seus dados, e que, como dizia Mallarmé, "un coup de dés jamais n'abolira le hasard"...
O impacto exercido por esta significativa revolução científica sobre o pensamento moderno foi devastador. O advento da incerteza na determinação dos fenômenos físicos subatômicos abalou fortemente as antes monolíticas estruturas da racionalidade científica clássica. A existência de fenômenos que o homem é incapaz de prever representa um rude golpe para a crença na razão humana omnipotente e determinista. O homem, que antes podia determinar, esquadrinhar, mensurar e prever todas as instâncias do Real, descobriu que este não lhe permite o acesso a algumas de suas dimensões. Ciente da magnitude das transformações envolvidas pelo advento da física moderna, Heisenberg, como um dos importantes participantes deste processo, se faz a seguinte pergunta: de que maneira essa nova forma de pensar, criação do mundo ocidental, irá afetar outras partes do mundo?
A ciência moderna, conclui o autor, é, na atualidade, uma realidade cada vez mais tangível em regiões do planeta onde as tradições culturais são completamente distintas daquelas da civilização européia-ocidental. Heisenberg acredita que o impacto desta revolução tecno-científica será, para os denominados 'países em desenvolvimento', ainda mais forte do que o sentido pela Europa e América do Norte, pois mudanças nas condições de vida que exigiram dois ou três séculos, entre os europeus e norte-americanos, neles ocorrerão dentro de umas poucas décadas. Os novos caminhos irão, quer queiramos ou não, alterar e parcialmente destruir costumes e valores tradicionais. Para Heisenberg, a tarefa mais importante do pensamento moderno é a tentativa de se estabelecer uma ponte entre o progresso científico e as concepções culturais e religiosas da tradição. A construção desta ponte é, todavia, uma tarefa extremamente complexa, prenhe de desafios. Como observa Heisenberg, é muito freqüente, entre dirigentes de países do Terceiro Mundo, bem como entre seus assessores ocidentais, a crença de que a aceitação por esses países das técnicas e procedimentos modernos seja meramente a de lhes propiciar uma abertura para sua independência econômica e, depois, meios e instrumentos práticos de ação que a tecnologia proporciona. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que os equipamentos da física moderna derivam de sua teoria e requerem uma compreensão dessa teoria, a fim de que possam ser corretamente fabricados e eficientemente utilizados. Em segundo, que essa teoria, por seu lado, baseia-se em pressupostos físicos e filosóficos. Quando compreendidos, esses pressupostos filosóficos geram mentalidade e comportamento, individual e social, bem diversos e, em alguns casos, incompatíveis com as tradições de família e casta, com a mentalidade tribal vigente. Em resumo, é impossível se introduzir os instrumentos da física moderna sem, cedo ou tarde, introduzir a atitude filosófica correspondente e, à medida que essa atitude cative os jovens que receberam treinamento científico, ela virá a afetar a tessitura moral da família e da comunidade. A fim de se evitar conflitos emocionais desnecessários e desmoralização social, é importante que os jovens entendam o que está acontecendo. Isso significa que eles devem ver a transição por que passam como a convergência de duas mentalidades filosóficas diversas: a de sua cultura tradicional e aquela da física, reconciliando tradições passadas e novas linhas de pensamento. Daí a importância de se entender a filosofia da física moderna. A grande contribuição que o Japão trouxe no campo da física teórica, desde a última guerra, é vista pelo físico alemão como uma indicação de certo relacionamento entre as idéias filosóficas da tradição oriental e o conteúdo filosófico da física quântica.
Heisenberg conclui que a física moderna é tão-somente uma parte, embora fundamental, de um processo histórico geral que tende a uma unificação, a um alargamento do nosso mundo. Este processo, que, no dias de hoje é cada vez mais intenso, tenderia, em tese, a diminuir as tensões culturais que põem em perigo a nossa época. Ele, todavia, conforme previu Heisenberg, é acompanhado por um outro processo que age em sentido oposto. O fato de que as grandes massas tornaram-se conscientes desse processo de unificação conduz a uma instigação de todas as forças, nas comunidades culturais existentes, no sentido de assegurar a seus valores tradicionais o papel mais destacado nesse estágio final unitário. A recente explosão, em escala mundial, dos diversos tipos de nacionalismos e fundamentalismos políticos e culturais, é uma inquestionável confirmação das piores preocupações de Heisenberg. Consequentemente, crescem as tensões, e os dois processos, em competição, são de tal forma interligados, que qualquer intensificação nessa busca de unidade - por exemplo, através de novas conquistas técnicas - tornará ainda mais acirrada a luta para influenciar o estado final. E, assim, aumenta a instabilidade dessa situação transitória. A física moderna, possivelmente, tem um papel secundário nesse difícil processo de unificação. Ela porém, estabelece Heisenberg, poderá ajudar, em dois pontos decisivos, a guiar essa evolução por caminhos menos tormentosos. Em primeiro lugar, ela mostra que o recurso às armas, nesse processo, seria fatalmente catastrófico, e em segundo, por sua atitude aberta, face a todos os tipos de conceitos, faz renascer a esperança de que, nos estágio final de unificação, tradições culturais distintas possam viver lado a lado, podendo mesmo combinar diferentes iniciativas humanas em um novo equilíbrio entre pensamento e ação, atividade e meditação.