Alphonse van Worden - 1750 AD
Ó supinos confrades: a crítica social levada a efeito pelo inglês Gilbert Keith Chesterton (1874 - 1936) a meu juízo um caso verdadeiramente notável (quiçá igualado, no âmbito das letras anglo-saxônicas, tão somente pelo irlandês Jonathan Swift e pelo norte-americano Ambrose Bierce), pois à capacidade de percuciente analista dos processos socioculturais de sua época, logra aliar o corrosivo expediente da sátira, mister em que alcançou elevado nível de realização; tal aspecto, aliás, é patente na maior parte de sua obra ficcional, em obras tais como, por exemplo, o memorável romance The Man Who Was Thursday: A Nightmare (“O homem que era quinta-feira” - 1908), amiúde definido como um ‘thriller metafísico’, uma devastadora paródia contra o anarquismo em seu aspecto mais obscuro e sibilino de revolta niilista contra Deus, isto é, contra toda e qualquer desígnio de transcendência; ou ainda os contos policiais do padre Brown (quiçá a mais célebre das criações chestertonianas), com sua labiríntica geometria de referências teológicas e reflexões sobre a condição humana, consubstanciando-se a partir de um jogo de espelhos invertidos operado pelo autor, com desfechos que amiúde contemplam duas possibilidades: a) uma solução de índole racional, obtida por via indutiva através dos dados compilados pelo padre-detetive em suas investigações; b) uma solução de cunho fantástico, amiúde reverberando o substrato metafísico inerente à narrativa; e não é desarrazoado especular, com efeito, que a finalidade de tal estrutura bipartite seja refletir a própria dualidade da alma humana, peremptoriamente cindida entre o lastro da realidade material e a etérea rarefação do universo ideal. Trata-se, enfim, de toda uma série de notáveis peças de engenharia textual, cuja elegância formal e irretocável timing narrativo J.L.Borges certa feita comparou, com rara felicidade, “a uma jogada de xadrez”.
Não obstante, tomarei aqui em consideração o texto onde o estro satírico de Chesterton atinge, quero crer, o ápice em termos de corrosão sulfúrica e lucidez indignada: o relato How I Found The Superman (“Como encontrei o Super-Homem” - 1909). Sob o astucioso formato de uma reportagem fictícia, Chesterton assesta suas baterias contra a macabra aliança entre, de um lado, certo tipo de protofascismo / socialismo de caráter ambíguo, cujas matrizes conceituais deitam raízes tanto na filosofia nietzscheana quanto no neodarwinismo (Herbert Spencer, Gobineau, etc.), ideologia a um só tempo cruel, lunática, caótica e obtusa; e, de outro, a hipocrisia das 'boas intenções' do reformismo social advogado pelos setores 'iluminados' da elite de então. Assim sendo, vergasta tanto as perigosas ‘ilusões do progresso’, com seus estratosféricos delírios teleológicos, submetendo todas as necessidades e aspirações humanas à lógica cega e implacável de uma remota e quase inexeqüível finalidade, quanto a insensata perspectiva dos que, do alto de seu rarefeito Olimpo social, tentam reformar a vida dos de ‘baixo’ sem efetivamente conhecer-lhes os desejos e carências. Trata-se, pois, de uma genuína obra-prima, que agora vos apresento em tradução de minha autoria:
__________
Como encontrei o Super-Homem
Gilbert Keith Chesterton
Daily News, 1909
Os leitores do Sr. Bernard Shaw e outros autores contemporâneos talvez julguem interessante saber que o Super-Homem foi encontrado: eu o encontrei, ele vive em South-Croydon. Meu triunfo será um grande golpe para o Sr. Shaw, que no momento está procurando pela criatura em Blackpool; e no que tange à tentativa do sr. Wells em gerar o Super-Homem a partir de gases químicos num laboratório, sempre a considerei condenada ao fracasso. Posso assegurar ao Sr. Wells que o Super-Homem de Croydon nasceu de modo ordinário, malgrado em si mesmo não seja, claro está, nada menos que algo extraordinário.
Tampouco seus pais são indignos do maravilhoso ente que trouxeram ao mundo. O nome de Lady Hypatia Smythe-Brown (atualmente Lady Hypatia Hagg) jamais será esquecido no East End, onde realizou um esplêndido trabalho social; seu renitente brado de "salvem as crianças!" referia-se à cruel negligência para com a visão dos pequenos em permitir que se divertissem com brinquedos toscamente pintados. Costumava citar estatísticas irreprocháveis, no intuito de provar que crianças com permissão para lidar com objetos em tom escarlate ou violeta frequentemente sofriam de vista cansada na velhice; e foi devido à sua incessante cruzada que a praga do 'macaco-na-vareta' * foi quase eliminada de Hoxton.
A devotada ativista percorria as ruas incansavelmente, confiscando brinquedos às crianças pobres, que não raro debulhavam-se em lágrimas graças à sua bondade. O bom trabalho que desenvolvia fora, contudo, interrompido, em parte por seu recente interesse pelo credo de Zaratustra, em parte pela violenta pancada de um guarda-chuva; o golpe foi-lhe infligido por uma irlandesa depravada, vendedora de maçãs, que retornando de alguma orgia para seu descuidado apartamento, encontrou Lady Hypatia no quarto retirando um oleógrafo da parede, o qual, para dizermos o mínimo, decerto não contribuía para a elevação do espírito.
A ignara e semi-embriagada celta então desfechou um rude golpe à reformadora social, ao que ainda acrescentou uma absurda acusação de roubo. A mente perfeitamente equilibrada de Lady Hypatia ficou em estado de choque; e foi durante esta breve alienação mental que ela se casou com o Dr. Hagg.
Creio que a figura do Dr. Hagg dispensa maiores comentários: qualquer um remotamente familiarizado com os ousados experimentos em eugenia neoindividualista, que hoje constituem um dos maiores interesses da democracia inglesa, deve conhecer seu nome e recomendá-lo à proteção pessoal de um poder impessoal. Muito cedo na vida desenvolveu uma visão brutal da história das religiões, que adquiriu na mocidade como engenheiro-eletricista. Tornou-se mais tarde um de nossos maiores geólogos, adquirindo aquela profunda e luminosa visão a respeito do futuro do socialismo que tão somente a geologia pode proporcionar.
A princípio parecia haver algo como um descompasso, uma sutil mas perceptível fissura, entre suas concepções e as de sua aristocrática esposa: ela era favorável (para lançarmos mão aqui de seu marcante epigrama) a proteger os pobres contra si mesmos, ao passo que ele, numa nova e poderosa metáfora, advogava o fuzilamento dos mais fracos. Todavia, ao fim e ao cabo o casal percebeu a existência de uma conjunção essencial no caráter insofismavelmente moderno de ambas as visões de mundo; e nesta instrutiva e abrangente conclusão suas almas encontraram a paz de espírito. O facto é que esta união entre os dois tipos mais evoluídos de nossa civilização - a sofisticada aristocrata e o invulgar homem de ciência - foi abençoada pelo nascimento do Super-Homen, aquele ser por quem todos os trabalhadores de Battersea aguardavam ansiosamente, noite e dia.
Encontrei a residência dos Hagg sem maiores dificuldades; está situada numa das ruas mais afastadas de Croydon, e encoberta por uma fieira de álamos. Cheguei à porta lá pelo entardecer, e é compreensível que fantasiosamente divisasse algo de lúgubre e monstruoso na indistinta mole da casa que abrigava um ser mais extraordinário que os filhos dos homens. Ao entrar fui recebido com admirável cortesia por Lady Hypatia e seu marido. Tive, no entanto, enorme dificuldade para propriamente ver o Super-Homem, que hoje tem por volta de 15 anos, e é mantido solitário num aposento tranqüilo; mesmo a conversa que entretive com seus pais não logrou esclarecer a natureza da misteriosa criatura. Lady Hypatia, com suas feições lívidas e pungentes, envolta por aqueles inefáveis e patéticos tons de verde e cinza com os quais alegrara tantos lares em Hoxton, parecia falar sobre seu rebento sem o mais mínimo laivo da reles vaidade que sói caracterizar uma mãe comum. Arrisquei-me então a perguntar se o Super-Homem tinha uma aparência agradável.
"Veja, ele estabelece seus próprios parâmetros", ela respondeu, com um leve suspiro. "Em seu plano existencial é superior a Apolo; visto a partir de nosso plano inferior, obviamente...". E novamente suspirou.
Movido por um terrível impulso, de súbito perguntei: "ele tem algum tipo de cabelo?"
Houve um silêncio longo e doloroso, e então o Dr. Hagg disse suavemente: "tudo em seu plano existencial é diferente; o que ele tem não é... bem, não é o que denominamos 'cabelo', claro está, mas...".
"Não te parece", atalhou sua mulher, muito delicadamente, "não te parece que deveríamos, à guisa de uma justificativa, denominar aquilo como 'cabelo' quando estivermos palestrando com terceiros?"
"Talvez estejas correta", replicou o doutor após refletir por alguns momentos, "tendo em vista um cabelo como aquele, deve-se falar através de parábolas".
"Bem, que diabos é então", perguntei com alguma irritação, "se não for cabelo? Seriam penas?"
"Não, penas não, não do modo que as concebemos", respondeu Hagg num tom de voz medonho.
Levantei-me agastado. "Afinal, será que posso vê-lo?", perguntei. "Sou um jornalista, e não tenho motivos mundanos, exceto curiosidade e vaidade pessoal. Gostaria de poder dizer que apertei a mão do Super-Homem".
Marido e mulher ergueram-se pesadamente, muito constrangidos.
"Bem, como o senhor decerto sabe", disse Lady Hypatia, com seu de facto encantador sorriso de anfitriã aristocrática, "não se pode exatamente apertar-lhe as mãos... não as mãos, o senhor compreende... a estrutura, é óbvio..."
Rompi então com todas as convenções sociais, e corri para a porta do cômodo que me parecia abrigar a inaudita criatura; a abri de supetão. O quarto estava imerso em total escuridão; mas à minha frente escutei um breve guincho lamentoso, e por detrás um duplo gemido.
"O senhor conseguiu, enfim!", gritou o Dr. Hagg, enterrando a fronte calva entre as mãos. "Deixou entrar uma corrente de ar, e agora ele está morto".
Enquanto me afastava de Croydon naquela noite, vi homens de preto carregando um ataúde de formato inumano. O vento uivava sobre minha cabeça, fazendo turbilhonar os álamos, que se inclinavam e acenavam como penachos num funeral cósmico.
"De facto", disse o Dr. Hagg, "é o universo inteiro pranteando a morte de sua mais magnífica criatura". Não obstante, julguei perceber a presença de um assovio gargalhante no agudo bramir do vento.
* brinquedo popular entre as crianças inglesas na época.
__________
Como não resulta difícil constatar, há no supracitado relato um generoso acervo de temas, alusões (mais ou menos veladas) e ferinos reproches, a começar pelo contexto sobremaneira sarcástico em que o autor menciona dois de seus notórios antagonistas à época: George Bernard Shaw (de quem era, convém sublinhar, um amigo fraterno) e Herbert George Wells. Impossível, claro está, esgotar aqui a riqueza da cornucópia crítica de nosso autor, de maneira que nos concentraremos no alvo que, a meu juízo, parece ser o mais cabal; destarte, a advertência mais impiedosa é indubitavelmente dirigida contra o otimismo cientificista de Wells, entusiástico defensor de princípios de ‘engenharia social’ e de transformação radical da vida humana em todas as suas esferas. Para o pensador católico, contudo, tais idéias constituíam uma teratologia de inauditas pretensão e brutalidade, pois violentavam o curso natural da existência humana, seus hábitos e tradições culturais, tencionando submetê-los à camisa-de-força de projetos abstratos de reforma social, quase sempre ominosamente simplistas, via de regra desprovidos de quaisquer laços substantivos com a ‘vida real’ e sua complexa teia de injunções; ademais, Chesterton rejeitava ad limine qualquer tipo de fé ilimitada nas possibilidades materiais do Homem, mormente no que tange à inabalável convicção, tão usual no período, de que a evolução tecnocientífica seria capaz de solucionar todos os problemas do humanidade.
Há que frisar, contudo, que as perspectivas de Wells não desfrutavam de unanimidade no seio do pensamento de esquerda; muito pelo contrário, aliás, como bem o demonstra, por exemplo, um incisivo ensaio de George Orwell, Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), onde verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava fortemente dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira autoritário e irrealista, uma vez que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é, ao fim e ao cabo, inverificável no presente.
Ó supinos confrades: a crítica social levada a efeito pelo inglês Gilbert Keith Chesterton (1874 - 1936) a meu juízo um caso verdadeiramente notável (quiçá igualado, no âmbito das letras anglo-saxônicas, tão somente pelo irlandês Jonathan Swift e pelo norte-americano Ambrose Bierce), pois à capacidade de percuciente analista dos processos socioculturais de sua época, logra aliar o corrosivo expediente da sátira, mister em que alcançou elevado nível de realização; tal aspecto, aliás, é patente na maior parte de sua obra ficcional, em obras tais como, por exemplo, o memorável romance The Man Who Was Thursday: A Nightmare (“O homem que era quinta-feira” - 1908), amiúde definido como um ‘thriller metafísico’, uma devastadora paródia contra o anarquismo em seu aspecto mais obscuro e sibilino de revolta niilista contra Deus, isto é, contra toda e qualquer desígnio de transcendência; ou ainda os contos policiais do padre Brown (quiçá a mais célebre das criações chestertonianas), com sua labiríntica geometria de referências teológicas e reflexões sobre a condição humana, consubstanciando-se a partir de um jogo de espelhos invertidos operado pelo autor, com desfechos que amiúde contemplam duas possibilidades: a) uma solução de índole racional, obtida por via indutiva através dos dados compilados pelo padre-detetive em suas investigações; b) uma solução de cunho fantástico, amiúde reverberando o substrato metafísico inerente à narrativa; e não é desarrazoado especular, com efeito, que a finalidade de tal estrutura bipartite seja refletir a própria dualidade da alma humana, peremptoriamente cindida entre o lastro da realidade material e a etérea rarefação do universo ideal. Trata-se, enfim, de toda uma série de notáveis peças de engenharia textual, cuja elegância formal e irretocável timing narrativo J.L.Borges certa feita comparou, com rara felicidade, “a uma jogada de xadrez”.
Não obstante, tomarei aqui em consideração o texto onde o estro satírico de Chesterton atinge, quero crer, o ápice em termos de corrosão sulfúrica e lucidez indignada: o relato How I Found The Superman (“Como encontrei o Super-Homem” - 1909). Sob o astucioso formato de uma reportagem fictícia, Chesterton assesta suas baterias contra a macabra aliança entre, de um lado, certo tipo de protofascismo / socialismo de caráter ambíguo, cujas matrizes conceituais deitam raízes tanto na filosofia nietzscheana quanto no neodarwinismo (Herbert Spencer, Gobineau, etc.), ideologia a um só tempo cruel, lunática, caótica e obtusa; e, de outro, a hipocrisia das 'boas intenções' do reformismo social advogado pelos setores 'iluminados' da elite de então. Assim sendo, vergasta tanto as perigosas ‘ilusões do progresso’, com seus estratosféricos delírios teleológicos, submetendo todas as necessidades e aspirações humanas à lógica cega e implacável de uma remota e quase inexeqüível finalidade, quanto a insensata perspectiva dos que, do alto de seu rarefeito Olimpo social, tentam reformar a vida dos de ‘baixo’ sem efetivamente conhecer-lhes os desejos e carências. Trata-se, pois, de uma genuína obra-prima, que agora vos apresento em tradução de minha autoria:
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Como encontrei o Super-Homem
Gilbert Keith Chesterton
Daily News, 1909
Os leitores do Sr. Bernard Shaw e outros autores contemporâneos talvez julguem interessante saber que o Super-Homem foi encontrado: eu o encontrei, ele vive em South-Croydon. Meu triunfo será um grande golpe para o Sr. Shaw, que no momento está procurando pela criatura em Blackpool; e no que tange à tentativa do sr. Wells em gerar o Super-Homem a partir de gases químicos num laboratório, sempre a considerei condenada ao fracasso. Posso assegurar ao Sr. Wells que o Super-Homem de Croydon nasceu de modo ordinário, malgrado em si mesmo não seja, claro está, nada menos que algo extraordinário.
Tampouco seus pais são indignos do maravilhoso ente que trouxeram ao mundo. O nome de Lady Hypatia Smythe-Brown (atualmente Lady Hypatia Hagg) jamais será esquecido no East End, onde realizou um esplêndido trabalho social; seu renitente brado de "salvem as crianças!" referia-se à cruel negligência para com a visão dos pequenos em permitir que se divertissem com brinquedos toscamente pintados. Costumava citar estatísticas irreprocháveis, no intuito de provar que crianças com permissão para lidar com objetos em tom escarlate ou violeta frequentemente sofriam de vista cansada na velhice; e foi devido à sua incessante cruzada que a praga do 'macaco-na-vareta' * foi quase eliminada de Hoxton.
A devotada ativista percorria as ruas incansavelmente, confiscando brinquedos às crianças pobres, que não raro debulhavam-se em lágrimas graças à sua bondade. O bom trabalho que desenvolvia fora, contudo, interrompido, em parte por seu recente interesse pelo credo de Zaratustra, em parte pela violenta pancada de um guarda-chuva; o golpe foi-lhe infligido por uma irlandesa depravada, vendedora de maçãs, que retornando de alguma orgia para seu descuidado apartamento, encontrou Lady Hypatia no quarto retirando um oleógrafo da parede, o qual, para dizermos o mínimo, decerto não contribuía para a elevação do espírito.
A ignara e semi-embriagada celta então desfechou um rude golpe à reformadora social, ao que ainda acrescentou uma absurda acusação de roubo. A mente perfeitamente equilibrada de Lady Hypatia ficou em estado de choque; e foi durante esta breve alienação mental que ela se casou com o Dr. Hagg.
Creio que a figura do Dr. Hagg dispensa maiores comentários: qualquer um remotamente familiarizado com os ousados experimentos em eugenia neoindividualista, que hoje constituem um dos maiores interesses da democracia inglesa, deve conhecer seu nome e recomendá-lo à proteção pessoal de um poder impessoal. Muito cedo na vida desenvolveu uma visão brutal da história das religiões, que adquiriu na mocidade como engenheiro-eletricista. Tornou-se mais tarde um de nossos maiores geólogos, adquirindo aquela profunda e luminosa visão a respeito do futuro do socialismo que tão somente a geologia pode proporcionar.
A princípio parecia haver algo como um descompasso, uma sutil mas perceptível fissura, entre suas concepções e as de sua aristocrática esposa: ela era favorável (para lançarmos mão aqui de seu marcante epigrama) a proteger os pobres contra si mesmos, ao passo que ele, numa nova e poderosa metáfora, advogava o fuzilamento dos mais fracos. Todavia, ao fim e ao cabo o casal percebeu a existência de uma conjunção essencial no caráter insofismavelmente moderno de ambas as visões de mundo; e nesta instrutiva e abrangente conclusão suas almas encontraram a paz de espírito. O facto é que esta união entre os dois tipos mais evoluídos de nossa civilização - a sofisticada aristocrata e o invulgar homem de ciência - foi abençoada pelo nascimento do Super-Homen, aquele ser por quem todos os trabalhadores de Battersea aguardavam ansiosamente, noite e dia.
Encontrei a residência dos Hagg sem maiores dificuldades; está situada numa das ruas mais afastadas de Croydon, e encoberta por uma fieira de álamos. Cheguei à porta lá pelo entardecer, e é compreensível que fantasiosamente divisasse algo de lúgubre e monstruoso na indistinta mole da casa que abrigava um ser mais extraordinário que os filhos dos homens. Ao entrar fui recebido com admirável cortesia por Lady Hypatia e seu marido. Tive, no entanto, enorme dificuldade para propriamente ver o Super-Homem, que hoje tem por volta de 15 anos, e é mantido solitário num aposento tranqüilo; mesmo a conversa que entretive com seus pais não logrou esclarecer a natureza da misteriosa criatura. Lady Hypatia, com suas feições lívidas e pungentes, envolta por aqueles inefáveis e patéticos tons de verde e cinza com os quais alegrara tantos lares em Hoxton, parecia falar sobre seu rebento sem o mais mínimo laivo da reles vaidade que sói caracterizar uma mãe comum. Arrisquei-me então a perguntar se o Super-Homem tinha uma aparência agradável.
"Veja, ele estabelece seus próprios parâmetros", ela respondeu, com um leve suspiro. "Em seu plano existencial é superior a Apolo; visto a partir de nosso plano inferior, obviamente...". E novamente suspirou.
Movido por um terrível impulso, de súbito perguntei: "ele tem algum tipo de cabelo?"
Houve um silêncio longo e doloroso, e então o Dr. Hagg disse suavemente: "tudo em seu plano existencial é diferente; o que ele tem não é... bem, não é o que denominamos 'cabelo', claro está, mas...".
"Não te parece", atalhou sua mulher, muito delicadamente, "não te parece que deveríamos, à guisa de uma justificativa, denominar aquilo como 'cabelo' quando estivermos palestrando com terceiros?"
"Talvez estejas correta", replicou o doutor após refletir por alguns momentos, "tendo em vista um cabelo como aquele, deve-se falar através de parábolas".
"Bem, que diabos é então", perguntei com alguma irritação, "se não for cabelo? Seriam penas?"
"Não, penas não, não do modo que as concebemos", respondeu Hagg num tom de voz medonho.
Levantei-me agastado. "Afinal, será que posso vê-lo?", perguntei. "Sou um jornalista, e não tenho motivos mundanos, exceto curiosidade e vaidade pessoal. Gostaria de poder dizer que apertei a mão do Super-Homem".
Marido e mulher ergueram-se pesadamente, muito constrangidos.
"Bem, como o senhor decerto sabe", disse Lady Hypatia, com seu de facto encantador sorriso de anfitriã aristocrática, "não se pode exatamente apertar-lhe as mãos... não as mãos, o senhor compreende... a estrutura, é óbvio..."
Rompi então com todas as convenções sociais, e corri para a porta do cômodo que me parecia abrigar a inaudita criatura; a abri de supetão. O quarto estava imerso em total escuridão; mas à minha frente escutei um breve guincho lamentoso, e por detrás um duplo gemido.
"O senhor conseguiu, enfim!", gritou o Dr. Hagg, enterrando a fronte calva entre as mãos. "Deixou entrar uma corrente de ar, e agora ele está morto".
Enquanto me afastava de Croydon naquela noite, vi homens de preto carregando um ataúde de formato inumano. O vento uivava sobre minha cabeça, fazendo turbilhonar os álamos, que se inclinavam e acenavam como penachos num funeral cósmico.
"De facto", disse o Dr. Hagg, "é o universo inteiro pranteando a morte de sua mais magnífica criatura". Não obstante, julguei perceber a presença de um assovio gargalhante no agudo bramir do vento.
* brinquedo popular entre as crianças inglesas na época.
__________
Como não resulta difícil constatar, há no supracitado relato um generoso acervo de temas, alusões (mais ou menos veladas) e ferinos reproches, a começar pelo contexto sobremaneira sarcástico em que o autor menciona dois de seus notórios antagonistas à época: George Bernard Shaw (de quem era, convém sublinhar, um amigo fraterno) e Herbert George Wells. Impossível, claro está, esgotar aqui a riqueza da cornucópia crítica de nosso autor, de maneira que nos concentraremos no alvo que, a meu juízo, parece ser o mais cabal; destarte, a advertência mais impiedosa é indubitavelmente dirigida contra o otimismo cientificista de Wells, entusiástico defensor de princípios de ‘engenharia social’ e de transformação radical da vida humana em todas as suas esferas. Para o pensador católico, contudo, tais idéias constituíam uma teratologia de inauditas pretensão e brutalidade, pois violentavam o curso natural da existência humana, seus hábitos e tradições culturais, tencionando submetê-los à camisa-de-força de projetos abstratos de reforma social, quase sempre ominosamente simplistas, via de regra desprovidos de quaisquer laços substantivos com a ‘vida real’ e sua complexa teia de injunções; ademais, Chesterton rejeitava ad limine qualquer tipo de fé ilimitada nas possibilidades materiais do Homem, mormente no que tange à inabalável convicção, tão usual no período, de que a evolução tecnocientífica seria capaz de solucionar todos os problemas do humanidade.
Há que frisar, contudo, que as perspectivas de Wells não desfrutavam de unanimidade no seio do pensamento de esquerda; muito pelo contrário, aliás, como bem o demonstra, por exemplo, um incisivo ensaio de George Orwell, Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), onde verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava fortemente dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira autoritário e irrealista, uma vez que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é, ao fim e ao cabo, inverificável no presente.
5 comentários:
Soberbo, como sempre, confrade, soberbo!
Do Chesterton, miseravelmente, eu só conheço os primeiros capítulos de O Homem Imortal, que li faz muito, mas muito tempo mesmo; tanto é que nem me lembro exatamente se foi ele, o Chesterton, quem diz neste livro que os romanos horrorizavam-se com os sacrifícios humanos praticados pelos fenícios, isso quando da guerra entre estes e aqueles...
E, de fato, apesar de nada conhecer a respeito de Chesterton, como disse, parece-me que ele, sim, pode ser a matriz de um pensamento autenticamente conservador.
Nada desse conservadorismo tipicamente norte-americano, que uns e outro nos querem impingir; isso aí é coisa que não me desce, sinceramente, confrade; não me desce nem que a vaca tussa!
Sei lá, não sei se é porque sou muito latino, extremamente brasileiro, demasiadamente não sei o quê, coisas das quais, para o bem ou para o mal, aliás, muito me orgulho; mas o fato é que o distributivismo advogado por Chesterton se me afigura a coisas muito mais razoáveis e saudáveis, porque mais conformes com os valores e virtudes sempiternos da Igreja.
Aliás, permita-me, para isso, cito um outro texto seu, de dezembro de 2006: “Numa sociedade distributivista, por conseguinte, as pessoas seriam capazes de organizar-se em regime de mutualismo, reunindo-se em cooperativas de produção, comércio e serviço, num sistema onde predominaria a solidariedade como princípio não apenas justo, mas racional e eficaz, de interação humana”.
Eis o ponto, confrade! A solidariedade! E, pergunto eu, haverá solidariedade de fato em formas de organização social cujo primado consiste em muitos nada ou pouco terem, ao passo que poucos, tudo?! Em minha opinião, não, não pode haver solidariedade real em casos como esses. Poderá haver tudo, exceto solidariedade...
Ou seja, eu não me deslumbro com as benesses do capitalismo e não encontro quaisquer motivos que me animem a levantar minha voz em sua defesa; entretanto, óbvio, isso não me torna nem um pouco comunista ou um socialista...
Da mesma forma, não poderá haver, acho, solidariedade em formas de organização social onde o primado seja o Super-Homem, a Raça e a Classe.
Enfim, é isso, meu caro. Parabéns pelo seu excelente texto. Só uma coisa eu repararia nele: há um trecho em que Spencer virou Spenser, coisinha boba, que não desmerece uma vírgula sequer do que você escrevera...
Ah, e junto às minhas as palavras que lhe disse o nosso Renan: por que você não reúne as tuas Notas de Reflexão Crítica em livro? Acho que não faria feia figura, muito pelo contrário...
Prezado Fernando:
Agradeço imenso pelo comentário, confrade, sempre acurado e minucioso; com efeito, vejo Chesterton como a possível matriz de um conservadorismo sério, verdadeiramente caudatário dos princípios cristãos, tendo, pois, a dignidade humana como centralidade e horizonte de realização.
De resto, bem gostaria de um ver essas notas editadas em papel, vamos ver o que acontece!
Abs,
Alfredo
PS: obrigado pela retificação relativa a Spencer.
Olá caríssimo,
Estou lendo Ambrose Bierce, mas fiquei um pouco decepcionada. Esperava encontrar algo mais semelhante a Poe ou Lovecraft no que diz respeito ao estilo. Ele, no entanto, soa quase como um repórter, um redator, alguém que estivesse escrevendo um relatório. Não há atmosfera, o envolvimento do leitor é fraco, o vocabulário nada instigante, ao contrário dos outros que eu citei. Imagino que vc goste dele pelas histórias, mas o texto é fraquíssimo. Tem outras sugestões de autores?
Um abraço,
JP
Querida Júlia:
Em primeiro lugar, agradeço imenso pelo comentário, muito obrigado!
No que tange a Bierce, admiro-lhe muito a inteligência ácida, cortante, extremamente sarcástica e crítica; agora, caso tenhas lido contos dele em tradução, é bastante provável que o tradutor não tenha feito justiça a Bierce. De todo modo, seu estilo é realmente muito mais seco, enxuto e minimalista que o de Poe e Lovecraft.
Como recomendações, sugeriria o próprio Chesterton, E.T.A. Hoffmann, Bioy-Casares e Villiers de L'Isle-Adam.
Villiers de L'Isle-Adam é mesmo ótimo, mais próximo do que procuro, embora eu só conheça os seus "Contos Cruéis". Obrigada pelas sugestões ;)
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