Alphonse Van Worden - 1750 AD
Um escriba disse certa vez que o Cinema é um ótimo veículo para expressar sentimentos, embora seja pouco apropriado para exprimir conceitos (o nome do referido escriba no momento me escapa; o que no entanto pouco importa, pois como escreveu Jorge Luís Borges, "nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos"). Essa assertiva, de certo modo razoável na maior parte dos casos, é desmentida cabalmente quando a figura em questão é Jean-Luc Godard. Parafraseando E.A. Poe a respeito de seu personagem Roderick Usher, eu diria que se algum cineasta alguma vez filmou uma ideia, este sem dúvida foi Godard. Em toda a sua carreira, o que ele sempre nos propôs foi a perspectiva de um radical cinema de ideias, de construção rigorosamente intelectual. Trata-se de uma sintaxe, ou talvez de uma desconcertante antissintaxe, que se estrutura em torno de reflexões assimétricas, ricocheteando em vetores multidirecionais, compondo um painel aparentemente caótico, mas que sempre apresenta uma rigorosíssima, ainda que de difícil apreensão, coerência interna; uma coerência que, entretanto, não se constitui como circuito fechado, mas como abertura de possibilidades, como força de movimento em desdobramento . É um cinema que se formula como entrechoque dialético de ideias em incessante evolução, numa síntese dinâmica do mundo, onde as personagens não apresentam um descortino psicológico individual, mas funcionam como veículos para conceitos, que implodem desconstruídos numa fragmentação narrativa crescente, recusando, portanto, a doutrinação inerente à linguagem linear e arrastando o espectador para o confronto conceitual, "desarrumando o arrumado", como diria Antônio das Mortes...
Um escriba disse certa vez que o Cinema é um ótimo veículo para expressar sentimentos, embora seja pouco apropriado para exprimir conceitos (o nome do referido escriba no momento me escapa; o que no entanto pouco importa, pois como escreveu Jorge Luís Borges, "nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos"). Essa assertiva, de certo modo razoável na maior parte dos casos, é desmentida cabalmente quando a figura em questão é Jean-Luc Godard. Parafraseando E.A. Poe a respeito de seu personagem Roderick Usher, eu diria que se algum cineasta alguma vez filmou uma ideia, este sem dúvida foi Godard. Em toda a sua carreira, o que ele sempre nos propôs foi a perspectiva de um radical cinema de ideias, de construção rigorosamente intelectual. Trata-se de uma sintaxe, ou talvez de uma desconcertante antissintaxe, que se estrutura em torno de reflexões assimétricas, ricocheteando em vetores multidirecionais, compondo um painel aparentemente caótico, mas que sempre apresenta uma rigorosíssima, ainda que de difícil apreensão, coerência interna; uma coerência que, entretanto, não se constitui como circuito fechado, mas como abertura de possibilidades, como força de movimento em desdobramento . É um cinema que se formula como entrechoque dialético de ideias em incessante evolução, numa síntese dinâmica do mundo, onde as personagens não apresentam um descortino psicológico individual, mas funcionam como veículos para conceitos, que implodem desconstruídos numa fragmentação narrativa crescente, recusando, portanto, a doutrinação inerente à linguagem linear e arrastando o espectador para o confronto conceitual, "desarrumando o arrumado", como diria Antônio das Mortes...
Em seu Manifesto Técnico da Literatura Futurista, de 11 de maio de 1912, Filippo Tommaso Marinetti proclama, desafiador: "Por que razão nos devemos servir de quatro rodas exasperadas que se enfadam, a partir do momento em que nos podemos libertar do solo? Libertação das palavras, asas estendidas da imaginação, síntese analógica da terra abraçada num relance e inteiramente recolhida nas palavras essenciais", definindo sua obra como a "síntese de um 100 HP lançado nas mais loucas velocidades terrestres". No manifesto subseqüente, Destruição da Sintaxe Imaginação Sem Fios Palavras em Liberdade, de 11 de maio de 1913, o escritor e terrorista cultural italiano, prosseguindo na exposição de seu programa literário, acrescenta que "A irrupção do vapor-emoção fará saltar o tubo do período, a válvula da pontuação e os parafusos regulares da adjetivação. Mãos cheias de palavras essenciais sem nenhuma ordem convencional", afirmando também que "a imaginação do poeta deve enlaçar só as coisas distantes sem fios condutores, por meio de palavras essenciais em liberdade". Se Marinetti é o escritor das palavras em liberdade, Godard é justamente o grande cineasta das ideias em liberdade. Seus filmes são discursos onde as ideias estão livres das amarras da linearidade da argumentação convencional, privilegiando, ao contrário, o impacto da contradição como força que desencadeia o pensamento dialético, instaurando um cenário de tensão intelectual permanente que emite sinais nervosos para o espectador. O que Godard pretende é arrancar o conceito de seu contexto linear no discurso tradicional, desembaraçar a ideia de sua teia de conexões arbitrárias com as demais ideias, com o objetivo de, tornando-a única, atingir sua essência, que independe do estabelecimento de quaisquer relações transitórias. O cinema godardiano é um bombardeio implacável de conceitos, princípios e reflexões, que são exaustivamente discutidos num ritmo alucinante e pluridimensional, exigindo do público um estado de concentração constante. Não simplesmente assistimos a um filme de Godard, mas dialogamos com uma esfuziante usina de ideias a todo vapor.
Em seu excelente ensaio sobre o cineasta, intitulado simplesmente Godard (1968), a escritora norte-americana Susan Sontag distingue duas atitudes diferentes frente à tradição cultural, no quadro dos grandes artistas e intelectuais contemporâneos: "Alguns – como Duchamp, Wittgenstein e Cage – equipararam sua arte e seu pensamento a uma atitude desdenhosa em relação à alta cultura e ao passado, ou pelo menos mantém uma postura irônica de ignorância e incompreensão. Outros – como Joyce, Picasso, Stravinsky e Godard – exibem uma hipertrofia do apetite pela cultura (ainda que, com frequência, mais ávidos de escombros culturais que de realizações consagradas pelos museus); eles operam através de uma varredura voraz da cultura, proclamando que nada é alheio à sua arte". O que se pode verificar, no conjunto de sua filmografia, é que Godard, libertando a tradição cultural de sua camisa-de-força acadêmica, a transforma em matéria viva, pulsante, capaz de intervir de modo fecundante na realidade presente. A cultura em suas mãos é sempre arma de transformação, e nunca peça estéril de coleção. A citação nunca é usada por Godard como mero adorno erudito, mas sim como ideia em vigência plena, como elemento de diálogo com a urgência dos acontecimentos mais flamejantes. A herança cultural, para Godard, é um eterno presente sempre vigoroso em seu poder de intervenção e transformação do mundo.
Concluindo este breve artigo, gostaria de dizer que Godard, sendo, a meu juízo, um dos 5 diretores mais brilhantes da história do cinema (a título de frívola curiosidade, menciono os outros 4: Welles, Glauber, Dreyer e Antonioni), talvez seja o menos influente de todos os cineastas. E digo menos influente no sentido mais elogioso que se poderia imaginar. Sendo autor, como todo grande artista, de uma obra absolutamente única, seu cinema jamais poderia servir como influência para qualquer outro cineasta, pois a essência primordial dos resplandecentes filmes de Godard é algo que não pode ser incorporado como linguagem constitutiva, como elemento para reprocessamento, mas sim algo que deve ser incorporado como um processo de expansão de consciências, com o qual temos o privilégio de poder travar um colóquio sempre novo e revigorante.