Alphonse Van Worden - 1750 AD
Jorge Luis Borges, em seu ensaio El sueño de Coleridge (1952), cujo tema central é o caráter fantástico e misterioso do célebre poema Kubla Khan: or a vision in a dream. A fragment (1797), do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), um magnífico, ainda que fragmentário devaneio lírico, que lhe teria sido ofertado em sonho, registrou a seguinte observação: "Swimburne sentiu que o resgatado era o mais alto exemplo da música do inglês, e que o homem capaz de analisá-lo poderia (a metáfora é de John Keats) destecer um arco-íris".
A imagem evocada pelo escritor argentino nos mostra, de maneira lapidar, a miríade de dificuldades que nos desafiam ao percorrermos os evanescentes meandros de uma fantasmagoria onírica, onde forma e sentido se entremeiam numa geometria hipnótica de cintilantes epifanias. O mister a que nos propomos neste artigo é, pois, uma tarefa sobremaneira árdua: destecer ou, ao menos contemplar, o iridescente arco-íris sonoro projetado pelas miríficas polifonias de Coleridge.
Antes de, todavia, iniciarmos nossas considerações sobre o poema em tela, é mister, a meu juízo, brevemente examinarmos o contexto histórico-simbólico que norteia as insólitas condições em que Coleridge lavrou sua obra-prima.
Segundo nos informa no prólogo que antecede o poema, o autor, valetudinário, passava o verão de 1797 recolhido a uma quinta nos confins de Exmoor; no silente crepúsculo de uma tarde, em decorrência de uma ligeira indisposição, havia-lhe sido prescrito o uso de láudano; e enquanto lia determinada passagem do Purcha's Pilgrimage, que relata a construção do célebre palácio do Imperador chinês Kubla Khan (1215-1294) em Shang-tu (Xanadu), os efeitos do hipnótico fizeram-lhe adormecer; durante o sono, a passagem lida ao acaso multiplicou-se numa cornucópia de imagens iridescentes, e Coleridge teria concebido - ou recebido - um poema de pelo menos 200 a 300 versos. Ao cabo de algumas horas despertou, e no momento em que, célere, punha-se a transcrever o poema sonhado, foi interrompido por uma visita inesperada que o deteve por cerca de uma hora. Verifiquemos, por meio das palavras do próprio Coleridge, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, o que lhe aconteceu: "ao retornar ao quarto, constatou, com grande surpresa e mortificação, que embora houvesse conservado de modo vago e brumoso a forma geral da visão, todo o restante, salvo umas oito ou dez linhas dispersas, se dissipara como as imagens na superfície de um rio no qual se atira uma pedra, mas, ai!, sem a restauração ulterior destas últimas. (...) Todavia, das lembranças ainda retidas em sua mente, o Autor tem constantemente se proposto a terminar por si mesmo o que lhe havia sido, por assim dizer, originalmente ofertado".
De qualquer modo, o que nos foi legado por Coleridge é o conjunto de cinqüenta e poucos estupefacientes versos que formam o poema. A supracitada história tornou-se notória, e Borges - devoto fiel do poeta inglês - escreveu em seu ensaio sobre este curiosíssimo emaranhado entre sonho, mito e realidade. A incomparável magnificência deste poema - e de mais sete ou oito -, formam o núcleo precípuo de sua poesia, e garantiram-lhe a fama e o respeito de seus pares. Como bem assinala o expressionista alemão Gottfried Benn (1886-1956), o que permanece de um verdadeiro poeta não ultrapassa um punhado de poemas: o resto contribui somente para fundamentar o caminho cingido; o que conta, pois, não é a quantidade, mas a qualidade imperativa dos escritos efetivamente importantes de um autor; e Coleridge, com inteira justiça, pertence a essa restrita plêiade, sustentando, ao lado de seu conterrâneo William Blake, o inefável e vertiginoso delírio poético, a vertente alucinatória do romantismo inglês, que se converteria em influência precípua na poética do norte-americano Edgar Allan Poe e, conseqüentemente, numa referência para os labirintos estéticos do simbolismo francês, sobretudo nas obras e reflexões poéticas de Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Paul Valéry.
A maior parte dos estudos sobre o Kubla Khan trata de duas questões centrais, ou da interconexão entre ambas: a) qual o significado do poema? / b) quais as fontes temáticas do poema? O eixo de convergência entre as supracitadas indagações é a tentativa de investigar a relação entre o texto poético e o que está fora dele. A princípio, tais indagações se revelam amplamente pertinentes; entretanto, podemos observar que boa parte das investigações se detém com muito mais freqüência no lado externo dessa relação (o significado ou a fonte putativa), do que no lado interno (o texto), ou na própria relação de entrelaçamento. Uma das razões para este facto é, a nosso juízo, a maior facilidade em se lidar com o espectro de temas externos ao poema, ao passo que uma análise de sua complexa estrutura interna, ou da relação entre as duas instâncias, revela-se sobremaneira mais intrincada. Assim sendo, percorrendo sendas menos frequentadas mas se calhar mais promissoras, procuraremos nos concentrar no texto em si mesmo, sublinhando a importância de vários de seus aspectos, de modo a integrá-los numa leitura coerente do poema e trazer para o primeiro plano, como comprovação de nossas considerações, sua tessitura excepcional.
Kubla Khan pode ser encarado, sob as diversas linhas de fuga que se desvelam no decorrer de seus versos, como a quintessência do romantismo na poesia. Vejamos agora, pois, como tais elementos emergem na estrutura do texto coleridgiano.
A primeira parte do poema se caracteriza como um exemplo emblemático do estilo romântico nas descrições da natureza. O local escolhido para a construção do imponente palácio do Khan apresenta um cenário de luxuriante esplendor, mas sem dúvida de proporções humanas, reais, o que podemos constatar em algumas passagens, tais como "Five miles meandering in a mazy motion,/ Through wood and dale the sacred river ran, ou ainda em And there were gardens bright with sinuous rills,/ Where blossomed many an incense-bearing tree"; no entanto, tais descrições logo se apresentam inextricavelmente entretecidas com a manifestação de forças poderosas do Infinito e do Sublime, que se encarnam nas "caverns measureless to man", no "deep romantic chasm", no "lifeless ocean" ou no "sunless sea".
Quando estimamos a magnitude através de números, isto é, conceitualmente, a imaginação seleciona uma unidade, que pode então se repetir indefinidamente; mas há um outro tipo de estimativa de grandezas, que o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) denomina como estimativa estética, na qual a imaginação tenta compreender ou circunscrever a representação total num único processo perceptivo. Podemos falar inicialmente de uma fronteira que limita essa capacidade, mas um objeto cujas dimensões aparentes ou imaginadas exorbitam essa capacidade até seu limite último, ameaçando exceder o poder da imaginação para tudo absorver de uma só vez, possui, subjetivamente falando, uma magnitude absoluta: alcança o limite percebido e nos aparece como se infinito fosse. No Kubla Khan encontramos ambos os tipos de magnitude, a unidade selecionada repetindo-se indefinidamente ("so twice five miles of fertile ground"), e o que se revela como "measureless to man", excedendo a capacidade da imaginação em compreender ou conter a totalidade num único momento perceptivo. A esse respeito, uma outra concepção kantiana deve ser examinada: a dialética entre o sublime matemático, que é exibida em objetos que nos impressionam por suas dimensões ciclópicas, e o sublime dinâmico, que é evocado por objetos que parecem ter um poder absoluto sobre nós; é interessante, pois, verificarmos que o poema de Coleridge caminha da primeira à segunda espécie de sublime acima descritas; e é notadamente esse aspecto que infunde à paisagem natural uma energia inaudita, começando com as monumentais "caverns measureless to man", atravessando a dinâmica sublime da paisagem sagrada, encantada e assombrada, até chegar ao delirante frenesi do orador no final do poema, que parece exercer um domínio absoluto sobre sua audiência. Sob um escrutínio mais detalhado, essa energia sublime passa por uma transformação gradativa: de uma contemplação de entidades naturais sólidas e estáveis para uma visão cada vez mais rarefeita, abstrata, brumosa, livre de enquadramentos materiais. As "caverns measureless to man" da primeira estrofe nos arrebatam por sua magnitude descomunal e, como tal, por serem tremendamente poderosas; esse poder, entretanto, é estático e ainda inseparável da nossa percepção da estabilidade das coisas físicas em si mesmas.
As descrições ulteriores, do rio e da fonte, seguem do mesmo modo o entrelaçamento 'sublime matemático/sublime dinâmico', bem como abrem vastas perspectivas para a investigação de simbolismos. O rio, com seu enorme poder, tem a liberdade de multiplicar seu volume, mas apenas por um breve momento, para depois submergir no silêncio de um oceano inerte; não é, seguramente, o Rio da Vida, mas o rio da transfiguração poética de universos insondáveis para a razão humana, territórios que tão somente o transe místico pode percorrer. Depois de subir com dificuldade, vagueia sinuosamente através do jardim dos prazeres, e então mergulha, como verificamos, num oceano sem vida; parece primeiro procurar um desafio e, então, desfazer a artificialidade organizada do paraíso terreno, arrojando saraivadas de fragmentos rochosos ou espargindo miríades de grãos esfarelados.
A destruição da fonte é, da mesma maneira, um acontecimento colossal, que se exprime num fluxo de energia inesgotável, ora diminuindo, ora crescendo, mas persistindo através de sua própria e inefável pulsação. A passagem é plena de vitalidade, porque o verso, manejado de forma magistral por Coleridge, possui a energia e o controle necessários. É instrutivo observar que a combinação de energia e controle, tanto no ritmo quanto na melodia, é, vale dizer, tão intensa em trechos como "And ‘mid these dancing rocks at once and ever / it flung up momently the sacred river", que corremos o risco de não perceber a força imagética presente em "dancing rocks" e em "rebounding hail". Muitas vezes o leitor, por inapropriadamente permitir que a musicalidade de certas passagens o hipnotize, pode ficar surdo aos "huge fragments" e "dancing rocks", que proporcionam outro tipo de compasso ao ritmo e à formação do pensamento, conferindo unidade e continuidade ao todo orgânico do poema. A desintegração da fonte está, portanto, destinada a ampliar a revelação das copiosas energias do universo em seu mais sublime e aterrador aspecto, refletindo as forças obscuras da natureza em intensa atividade, numa violência que parece exceder o poder da imaginação para absorver tudo ao um só tempo, criando e destruindo a fonte num continuum que se eterniza nos reflexos crepusculares de um instante portentoso, e regressando a um estágio pré-humano, onde as energias do caos estão plenamente ativas, pulverizando fragmentos de rocha imensos e primordiais.
Voltaremos a discutir o caráter rítmico dessa passagem e sua interação com a descrição do processo de implosão da fonte, submetida a uma grande energia e vigor. Gostaria agora, todavia, de examinar com mais vagar a seguinte descrição do rio: "Five miles meandering with a mazy motion/ Trough wood and dale the sacred river ran, / Then reached the caverns measureless to man,/ And sank in tumult to a lifeless ocean". Seria possível identificar, de certa maneira, na ausência de intencionalidade do fluxo sinuoso do rio, uma referência a um propósito moral constante na obra de Coleridge: o rio surgiria afinal apenas para serpentear num movimento labiríntico, metáfora recorrente na poética do autor inglês para descrever estados de incerteza moral e espiritual, o que podemos constatar, vale dizer, em alguns de seus notáveis Conversation Poems, tais como Frost at Midnight, Fears in Solitude ou The Nightingale, obras compostas em 1798. Entretanto, a meu juízo, tal interpretação não parece esgotar o significado que Coleridge imprime à referida passagem na tessitura intrínseca do Kubla Khan. Creio ser razoável considerarmos a qualidade perceptível do rio que corre num movimento labiríntico, sem necessariamente transfigurá-la numa concepção moral. Na semântica estrutural do poema, o movimento aleatório do rio possui uma qualidade significativamente amena em si mesma, sobretudo após o caráter algo tenso e dramático percebido nos "huge fragments vaulting like rebounding hail" e nas "dancing rocks". Esse aspecto atenuado, sereno do verso em tela torna-se ainda mais evidente mais aparente se o compararmos àqueles similares presentes na primeira estrofe: "Where Alph, the sacred river, ran/ Through caverns measureless to man/ Down to a sunless sea". Em ambas as descrições temos fundamentalmente a mesma informação sobre o 'comportamento' do rio; não obstante, uma comparação mais acurada pode assinalar uma tensão maior na passagem da primeira estrofe, e uma qualidade notadamente branda na posterior. Como podemos observar, o conteúdo da descrição dá mais importância aos detalhes do ambiente: as "Five miles meandering with a mazy motion/ Through wood and dale" ocorrem apenas na estrofe posterior. Isto sugere, quiçá, certa serenidade na percepção descritiva. Quanto à estrutura sintática, a passagem anterior contém um único verbo flexionado, ao passo que a posterior contém três verbos finitos para indicar a mesma progressão do rio: correu... então alcançou...e mergulhou. Novamente, convém salientar, isso pode indicar alguma suavidade na consciência observadora. O que a longa descrição posterior nos oferece é, pois, pura e simplesmente a existência e a atividade tranqüilas dos elementos, de acordo com sua natureza, enquanto que a anterior, por assim dizer, subtrai-nos de nossa liberdade emocional.
Essas qualidades contrastantes são reforçadas por suas respectivas estruturas prosódicas. Os últimos versos da passagem posterior são organizados numa estrutura simétrica, estável, num esquema de rima a-b-b-a, ao passo que os três versos da passagem anterior são parte de uma estrutura muito mais complexa, cujo típico efeito é desequilibrar qualquer espécie de estabilidade focal. Um outro elemento de desassossego pode ser encontrado na correspondência específica, ou porventura na carência de correspondência, entre a estrutura sintática e a unidade prosódica em "Where Alph, the sacred river, ran/ Through caverns(...)". Quanto mais próxima a quebra sintática está da parte final de um verso, maior é o nosso relaxamento quando o trecho restante nos é oferecido; por outro lado, quanto mais próximo o início do prosseguimento da unidade sintática estiver da parte final do verso, maior será a tensão experimentada. Portanto, nesse trecho do poema, o uso do verbo no passado faz-se imperioso, assim como o momentum gerado pela frase de encadeamento, que acentua o aspecto da velocidade de "ran". Em oposição, na passagem posterior, a frase "with a mazy motion" começa exatamente no centro do verso, e portanto não é percebida como um verso encadeado, mas quase como um verso de encerramento. Mesmo sua seqüência, "the sacred river ran", a princípio idêntica letra por letra à frase correspondente na outra passagem, difere dela em dois pontos importantes: Primeiro, o verbo "ran" na passagem anterior inicia um enjambement, enquanto que na passagem posterior serve como encerramento de um verso concluído; segundo, a pontuação realça a quebra antes do fim do verso na passagem anterior, e com a mesma simbologia acentua o ímpeto da frase de encadeamento, enquanto que na passagem posterior as vírgulas de articulação são omitidas, e a exigência de empregar "ran" é um tanto ou quanto atenuada. Quanto à métrica dos versos, observemos que o pentâmetro iâmbico tem uma propriedade flexível peculiar, devido ao fato de não poder ser dividido em duas metades simétricas; isso o torna mais apropriado do que qualquer outro às cadências do discurso natural, enquanto que tetrarritmo tem uma rigidez peculiar, devido ao fato de poder ser dividido em duas partes absolutamente iguais. Ora, os trechos em pauta podem ser contrastados nesse aspecto também: a passagem posterior contem quatro pentâmetros iâmbicos, a anterior dois tetrarritmos iâmbicos e um trímetro. A tensão nesses dois tetrarritmos é exacerbada pelo fato de que em ambos a cesura, após a quarta sílaba, é 'atropelada'; logo, mais uma vez, a relativa placidez da passagem posterior é corroborada. Ressalte-se, contudo, que a serenidade que emerge dessa comparação, compreendida de modo intuitivo pelo leitor, é meticulosamente introduzida apenas para ser devastada no quarto verso dessa passagem. Já vimos que como parte do padrão sintático de três verbos finitos, "sank" aprofunda ainda mais essa condição de tranqüilidade; por intermédio da mesma analogia, todavia, a locução verbal "sank in tumult" introduz uma comoção nessa descrição idílica. Indica a eclosão de um estrondo de tonitruante energia, bem como a súbita desintegração da forma linear do rio, apesar de sinuosa. Nesse contexto, "lifeless ocean" deve ser encarado como uma amplificação de "sunless sea"; conseqüentemente, o atributo dialético da serenidade torna-se funcional para o Kubla Khan em seu método de contrastes.
O rio, fio condutor semântico/sintático do poema, de facto não pode ser visto como o Rio da Vida, ou qualquer rio claramente definido, mas sim como energia caótica que emerge das forças primevas do Universo, ainda que de seu vórtice turbilhonante também irrompa a insólita e improvável paz de um Caos que por vezes se transfigura em Cosmos. Nesta oscilante dialética 'Caos/Cosmos', o rio Alph perde sua identidade num oceano sem vida; assim sendo, a oposição 'Vida/Morte' é expressa na articulação entre uma linguagem cinética e uma linguagem estática: de um lado, a oposição entre o rio serpenteante e corrente e seu desaparecimento no oceano; de outro, o contraste entre "wood and dale" (vitalidade) e "lifeless ocean" ou "sunless sea" (finitude); e podemos ainda observar, em determinados versos, como "And sank in tumult to a lifeless ocean", a manifestação de ambas as linguagens no deslocamento do cinético ao estático num mesmo plano conceitual.
Na descrição, por conseguinte, do movimento labiríntico do rio que serpenteia, levamos a cabo o cotejo entre duas passagens onde se verifica um contraste que envolve, ressaltemos uma vez mais, tanto o padrão semântico da realidade descrita quanto os níveis sintáticos e prosódicos da tessitura poética.
É no contexto, pois, do multiforme caleidoscópio desta destruição criadora que devemos considerar os versos a seguir: "And ‘mid this tumult Kubla heard from far/ Ancestral voices prophesying war!". Na agonia mortal do rio que se dissolve num oceano inerte, irrompem bramidos ancestrais vaticinando a guerra, a pulsão de morte que precipita o Homem no Caos. As vozes arcanas evocam, sobretudo, a sombria compulsão, a idolatria atávica às forças conflitantes e destrutivas que levam o homem à sua destruição.
Os elementos irracionais e apocalípticos são, como podemos ver, primordiais aqui. Nosso percurso analítico, entretanto, acrescenta forçosamente a essa passagem uma dimensão estrutural, que mais uma vez se mostrará importante no todo do poema. A percepção de uma qualidade irracional reside não apenas na força sublime do caos, mas também, enfatizemos, na configuração difusa das águas que se precipitam imediatamente após o percurso linear do rio. A contraposição entre processos lineares e difusos apresenta, acreditamos nós, uma estrutura análoga à oposição entre os processos mentais racionais e irracionais. Visualmente, as águas cadentes e o oceano sem vida são percebidos como entidades informes: a primeira pertence ao sublime dinâmico, a posterior ao matemático. O "tumult" se afirma como ruído inarticulado, isto é, mais uma vez uma qualidade imaterial e informe; funciona como suporte perceptivo das "ancestral voices", que são, igualmente, qualidade imaterial. Essa qualidade é ainda reforçada por uma refinada engenharia gramatical: caso tivéssemos uma construção tal como, por exemplo, "voices of the ancestors" ('vozes dos ancestrais'), os ancestrais, elementos dinâmicos, apareceriam como sujeito; Coleridge, invertendo a configuração sintática de substantivo em adjetivo ('vozes dos ancestrais' / 'vozes ancestrais'), obtém então uma entidade essencialmente imaterial. É, portanto, nesse interlúdio entre o nascimento e a morte do rio, que logramos, com a máxima concentração, a dissolução de seres concretos em sombras imateriais e informes: iniciando com a desintegração do solo firme em "huge fragments" que irrompem das profundezas da terra, prosseguindo com a perda de identidade do rio fluido ao se dissipar no "lifeless ocean", e terminando com os espectros imateriais representados pelas ancestral voices. Nesse sentido, os versos que acabamos de examinar constituem momento axial na arquitetura poética do Kubla Khan.
Passemos agora aos versos que se seguem: "The shadow of the dome of pleasure / Floated midway on the waves;/ Where was heard the mingled measure/ From the fountain and the caves. / It was a miracle of rare device, / A sunny pleasure-dome and caves of ice!". Podemos atalhar que esta passagem, de certo modo, opera novo deslocamento de foco na perspectiva visual do poema; porém, num aspecto importante, o trecho em questão dá continuidade a processos perceptivos iniciados nos versos precedentes, a saber, a dissolução do mundo concreto em entidades imateriais e informes.
Em primeiro lugar, confrontamo-nos aqui não com o sólido "dome of pleasure", mas com seu espectro, o qual, apesar de ter uma forma nítida, também pode ser encarado como exemplo arquetípico de uma entidade imaterial; contudo, apesar de flutuar na superfície das ondas, permanece em contínua metamorfose, tornando-se, desse modo, imagem característica de uma realidade cambiante, sempre em mutação, verificando-se a presença de uma similaridade estrutural com os processos emocionais. A sutileza dessa percepção visual é corroborada pela súbita mudança métrica do pentâmetro iâmbico em tetrarritmo trocaico (com uma ligeira sílaba hipermétrica no início do primeiro verso). A sombra do palácio flutua, pois, entre a fonte e as cavernas, é o que podemos presumir. Tal concepção sugere uma disposição simétrica do espaço perceptível, que se exprime em fascinante contraste com os entes imateriais em jogo. Ao mesmo tempo, estamos no local onde o rumor e os sons inarticulados vindos da fonte e das cavernas (mencionados nos dois trechos anteriores da estrofe), se encontram e se entremeiam; ora, os objetos relativamente estáveis (a fonte e as cavernas) estão agora distantes, e apenas uma entidade liberta de forma e matéria pode perceber percebe os sons por eles emitidos. A essa entidade imaterial e informe, se sobrepõe um esquema simetricamente ajustado, que nos é sugerido pelo termo "midway".
Ao nos determos, enfim, sobre a prodigiosa estrofe que encerra o Kubla Khan, constatamos que o cenário se transforma radicalmente. Palmilhamos agora uma diáfana paragem onírica, onde não resta mais nenhum vestígio do palácio do Khan. Enquanto o poema, até o presente momento, havia se dedicado a descrever a criação e ulterior desintegração de um cenário material, a última estrofe se desloca para ermos ignotos, brumosos, apartados de qualquer realidade física. Sabemos apenas que, em determinadas circunstâncias, todos ("all") reagiriam de modo idêntico às atitudes do duplo 'Khan/Coleridge'; nada podemos afirmar acerca destas enigmáticas criaturas: sua identidade, quantos são ou onde se encontram; temos inclusive parcos elementos para determinar quem porventura seria o 'eu' em questão. Estamos aqui sob a égide do imaginário absoluto, que preenche integralmente o presente, apesar de quase tudo ser apresentado no tempo condicional. No que tange ao diapasão emocional do poema, a última estrofe alcança o ápice de um êxtase ritualístico, ponto culminante de um estupefaciente desvario alucinatório: os olhos faiscantes e cabelos revoltos inequivocamente denotam um estado de violenta agitação mental, selvagem "desregramento absoluto de todos os sentidos", recuperando aqui a célebre expressão de Rimbaud. Podemos dizer, com razoável grau de certeza, que a imagerie usada por Coleridge baseia-se em relatos acerca dos lendários cultos órficos, - olhos faiscantes e cabelos flutuantes, assim como mel, leite, magia, santidade e terror. Creio, no entanto, que mesmo os leitores pouco familiarizados com a natureza dos cultos órficos reconhecerão nesses versos finais o auge emocional de um intenso transe místico.
Faz-se mister agora sublinharmos duas questões de grande importância nesta passagem: o fato de o orador despertar (seja ele quem for), quando sob os auspícios do estado mental ali descrito, um horror sagrado em sua audiência; e sobretudo a percepção, fundamental para o poema como um todo, de que este êxtase místico está relacionado à sua aptidão em reviver, a partir e no seio de si mesmo, a canção inebriante da sibilina donzela abissínia, e em reconstruir, "with music loud and long", a visão transcendental descrita nas estrofes precedentes. A música se configura, dessa maneira, como instância suprema das qualidades imateriais que abordamos em nossa análise.
Conseqüentemente, o apogeu da experiência mística e emocional entretecida por Coleridge ocorre no ponto em que todo o cenário físico desaparece, permanecendo somente o transe espiritual e as essências imateriais, em especial a música sublime, alicerce onírico onde será reerguido o fulgurante palácio de Kubla Khan. O paraíso que o Imperador pretendia erigir com a construção de um magnífico palácio é, pois, desintegrado pelas potências telúricas da Terra e enfim se converte, por meio de forças terrenas e celestiais, humanas e sobrenaturais, em nova e resplendente criação, que a hipnótica donzela abissínia e o transfigurado poeta recuperam com o sublime êxtase de sua divina arte.
Jorge Luis Borges, em seu ensaio El sueño de Coleridge (1952), cujo tema central é o caráter fantástico e misterioso do célebre poema Kubla Khan: or a vision in a dream. A fragment (1797), do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), um magnífico, ainda que fragmentário devaneio lírico, que lhe teria sido ofertado em sonho, registrou a seguinte observação: "Swimburne sentiu que o resgatado era o mais alto exemplo da música do inglês, e que o homem capaz de analisá-lo poderia (a metáfora é de John Keats) destecer um arco-íris".
A imagem evocada pelo escritor argentino nos mostra, de maneira lapidar, a miríade de dificuldades que nos desafiam ao percorrermos os evanescentes meandros de uma fantasmagoria onírica, onde forma e sentido se entremeiam numa geometria hipnótica de cintilantes epifanias. O mister a que nos propomos neste artigo é, pois, uma tarefa sobremaneira árdua: destecer ou, ao menos contemplar, o iridescente arco-íris sonoro projetado pelas miríficas polifonias de Coleridge.
Antes de, todavia, iniciarmos nossas considerações sobre o poema em tela, é mister, a meu juízo, brevemente examinarmos o contexto histórico-simbólico que norteia as insólitas condições em que Coleridge lavrou sua obra-prima.
Segundo nos informa no prólogo que antecede o poema, o autor, valetudinário, passava o verão de 1797 recolhido a uma quinta nos confins de Exmoor; no silente crepúsculo de uma tarde, em decorrência de uma ligeira indisposição, havia-lhe sido prescrito o uso de láudano; e enquanto lia determinada passagem do Purcha's Pilgrimage, que relata a construção do célebre palácio do Imperador chinês Kubla Khan (1215-1294) em Shang-tu (Xanadu), os efeitos do hipnótico fizeram-lhe adormecer; durante o sono, a passagem lida ao acaso multiplicou-se numa cornucópia de imagens iridescentes, e Coleridge teria concebido - ou recebido - um poema de pelo menos 200 a 300 versos. Ao cabo de algumas horas despertou, e no momento em que, célere, punha-se a transcrever o poema sonhado, foi interrompido por uma visita inesperada que o deteve por cerca de uma hora. Verifiquemos, por meio das palavras do próprio Coleridge, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa, o que lhe aconteceu: "ao retornar ao quarto, constatou, com grande surpresa e mortificação, que embora houvesse conservado de modo vago e brumoso a forma geral da visão, todo o restante, salvo umas oito ou dez linhas dispersas, se dissipara como as imagens na superfície de um rio no qual se atira uma pedra, mas, ai!, sem a restauração ulterior destas últimas. (...) Todavia, das lembranças ainda retidas em sua mente, o Autor tem constantemente se proposto a terminar por si mesmo o que lhe havia sido, por assim dizer, originalmente ofertado".
De qualquer modo, o que nos foi legado por Coleridge é o conjunto de cinqüenta e poucos estupefacientes versos que formam o poema. A supracitada história tornou-se notória, e Borges - devoto fiel do poeta inglês - escreveu em seu ensaio sobre este curiosíssimo emaranhado entre sonho, mito e realidade. A incomparável magnificência deste poema - e de mais sete ou oito -, formam o núcleo precípuo de sua poesia, e garantiram-lhe a fama e o respeito de seus pares. Como bem assinala o expressionista alemão Gottfried Benn (1886-1956), o que permanece de um verdadeiro poeta não ultrapassa um punhado de poemas: o resto contribui somente para fundamentar o caminho cingido; o que conta, pois, não é a quantidade, mas a qualidade imperativa dos escritos efetivamente importantes de um autor; e Coleridge, com inteira justiça, pertence a essa restrita plêiade, sustentando, ao lado de seu conterrâneo William Blake, o inefável e vertiginoso delírio poético, a vertente alucinatória do romantismo inglês, que se converteria em influência precípua na poética do norte-americano Edgar Allan Poe e, conseqüentemente, numa referência para os labirintos estéticos do simbolismo francês, sobretudo nas obras e reflexões poéticas de Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Paul Valéry.
A maior parte dos estudos sobre o Kubla Khan trata de duas questões centrais, ou da interconexão entre ambas: a) qual o significado do poema? / b) quais as fontes temáticas do poema? O eixo de convergência entre as supracitadas indagações é a tentativa de investigar a relação entre o texto poético e o que está fora dele. A princípio, tais indagações se revelam amplamente pertinentes; entretanto, podemos observar que boa parte das investigações se detém com muito mais freqüência no lado externo dessa relação (o significado ou a fonte putativa), do que no lado interno (o texto), ou na própria relação de entrelaçamento. Uma das razões para este facto é, a nosso juízo, a maior facilidade em se lidar com o espectro de temas externos ao poema, ao passo que uma análise de sua complexa estrutura interna, ou da relação entre as duas instâncias, revela-se sobremaneira mais intrincada. Assim sendo, percorrendo sendas menos frequentadas mas se calhar mais promissoras, procuraremos nos concentrar no texto em si mesmo, sublinhando a importância de vários de seus aspectos, de modo a integrá-los numa leitura coerente do poema e trazer para o primeiro plano, como comprovação de nossas considerações, sua tessitura excepcional.
Kubla Khan pode ser encarado, sob as diversas linhas de fuga que se desvelam no decorrer de seus versos, como a quintessência do romantismo na poesia. Vejamos agora, pois, como tais elementos emergem na estrutura do texto coleridgiano.
A primeira parte do poema se caracteriza como um exemplo emblemático do estilo romântico nas descrições da natureza. O local escolhido para a construção do imponente palácio do Khan apresenta um cenário de luxuriante esplendor, mas sem dúvida de proporções humanas, reais, o que podemos constatar em algumas passagens, tais como "Five miles meandering in a mazy motion,/ Through wood and dale the sacred river ran, ou ainda em And there were gardens bright with sinuous rills,/ Where blossomed many an incense-bearing tree"; no entanto, tais descrições logo se apresentam inextricavelmente entretecidas com a manifestação de forças poderosas do Infinito e do Sublime, que se encarnam nas "caverns measureless to man", no "deep romantic chasm", no "lifeless ocean" ou no "sunless sea".
Quando estimamos a magnitude através de números, isto é, conceitualmente, a imaginação seleciona uma unidade, que pode então se repetir indefinidamente; mas há um outro tipo de estimativa de grandezas, que o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) denomina como estimativa estética, na qual a imaginação tenta compreender ou circunscrever a representação total num único processo perceptivo. Podemos falar inicialmente de uma fronteira que limita essa capacidade, mas um objeto cujas dimensões aparentes ou imaginadas exorbitam essa capacidade até seu limite último, ameaçando exceder o poder da imaginação para tudo absorver de uma só vez, possui, subjetivamente falando, uma magnitude absoluta: alcança o limite percebido e nos aparece como se infinito fosse. No Kubla Khan encontramos ambos os tipos de magnitude, a unidade selecionada repetindo-se indefinidamente ("so twice five miles of fertile ground"), e o que se revela como "measureless to man", excedendo a capacidade da imaginação em compreender ou conter a totalidade num único momento perceptivo. A esse respeito, uma outra concepção kantiana deve ser examinada: a dialética entre o sublime matemático, que é exibida em objetos que nos impressionam por suas dimensões ciclópicas, e o sublime dinâmico, que é evocado por objetos que parecem ter um poder absoluto sobre nós; é interessante, pois, verificarmos que o poema de Coleridge caminha da primeira à segunda espécie de sublime acima descritas; e é notadamente esse aspecto que infunde à paisagem natural uma energia inaudita, começando com as monumentais "caverns measureless to man", atravessando a dinâmica sublime da paisagem sagrada, encantada e assombrada, até chegar ao delirante frenesi do orador no final do poema, que parece exercer um domínio absoluto sobre sua audiência. Sob um escrutínio mais detalhado, essa energia sublime passa por uma transformação gradativa: de uma contemplação de entidades naturais sólidas e estáveis para uma visão cada vez mais rarefeita, abstrata, brumosa, livre de enquadramentos materiais. As "caverns measureless to man" da primeira estrofe nos arrebatam por sua magnitude descomunal e, como tal, por serem tremendamente poderosas; esse poder, entretanto, é estático e ainda inseparável da nossa percepção da estabilidade das coisas físicas em si mesmas.
As descrições ulteriores, do rio e da fonte, seguem do mesmo modo o entrelaçamento 'sublime matemático/sublime dinâmico', bem como abrem vastas perspectivas para a investigação de simbolismos. O rio, com seu enorme poder, tem a liberdade de multiplicar seu volume, mas apenas por um breve momento, para depois submergir no silêncio de um oceano inerte; não é, seguramente, o Rio da Vida, mas o rio da transfiguração poética de universos insondáveis para a razão humana, territórios que tão somente o transe místico pode percorrer. Depois de subir com dificuldade, vagueia sinuosamente através do jardim dos prazeres, e então mergulha, como verificamos, num oceano sem vida; parece primeiro procurar um desafio e, então, desfazer a artificialidade organizada do paraíso terreno, arrojando saraivadas de fragmentos rochosos ou espargindo miríades de grãos esfarelados.
A destruição da fonte é, da mesma maneira, um acontecimento colossal, que se exprime num fluxo de energia inesgotável, ora diminuindo, ora crescendo, mas persistindo através de sua própria e inefável pulsação. A passagem é plena de vitalidade, porque o verso, manejado de forma magistral por Coleridge, possui a energia e o controle necessários. É instrutivo observar que a combinação de energia e controle, tanto no ritmo quanto na melodia, é, vale dizer, tão intensa em trechos como "And ‘mid these dancing rocks at once and ever / it flung up momently the sacred river", que corremos o risco de não perceber a força imagética presente em "dancing rocks" e em "rebounding hail". Muitas vezes o leitor, por inapropriadamente permitir que a musicalidade de certas passagens o hipnotize, pode ficar surdo aos "huge fragments" e "dancing rocks", que proporcionam outro tipo de compasso ao ritmo e à formação do pensamento, conferindo unidade e continuidade ao todo orgânico do poema. A desintegração da fonte está, portanto, destinada a ampliar a revelação das copiosas energias do universo em seu mais sublime e aterrador aspecto, refletindo as forças obscuras da natureza em intensa atividade, numa violência que parece exceder o poder da imaginação para absorver tudo ao um só tempo, criando e destruindo a fonte num continuum que se eterniza nos reflexos crepusculares de um instante portentoso, e regressando a um estágio pré-humano, onde as energias do caos estão plenamente ativas, pulverizando fragmentos de rocha imensos e primordiais.
Voltaremos a discutir o caráter rítmico dessa passagem e sua interação com a descrição do processo de implosão da fonte, submetida a uma grande energia e vigor. Gostaria agora, todavia, de examinar com mais vagar a seguinte descrição do rio: "Five miles meandering with a mazy motion/ Trough wood and dale the sacred river ran, / Then reached the caverns measureless to man,/ And sank in tumult to a lifeless ocean". Seria possível identificar, de certa maneira, na ausência de intencionalidade do fluxo sinuoso do rio, uma referência a um propósito moral constante na obra de Coleridge: o rio surgiria afinal apenas para serpentear num movimento labiríntico, metáfora recorrente na poética do autor inglês para descrever estados de incerteza moral e espiritual, o que podemos constatar, vale dizer, em alguns de seus notáveis Conversation Poems, tais como Frost at Midnight, Fears in Solitude ou The Nightingale, obras compostas em 1798. Entretanto, a meu juízo, tal interpretação não parece esgotar o significado que Coleridge imprime à referida passagem na tessitura intrínseca do Kubla Khan. Creio ser razoável considerarmos a qualidade perceptível do rio que corre num movimento labiríntico, sem necessariamente transfigurá-la numa concepção moral. Na semântica estrutural do poema, o movimento aleatório do rio possui uma qualidade significativamente amena em si mesma, sobretudo após o caráter algo tenso e dramático percebido nos "huge fragments vaulting like rebounding hail" e nas "dancing rocks". Esse aspecto atenuado, sereno do verso em tela torna-se ainda mais evidente mais aparente se o compararmos àqueles similares presentes na primeira estrofe: "Where Alph, the sacred river, ran/ Through caverns measureless to man/ Down to a sunless sea". Em ambas as descrições temos fundamentalmente a mesma informação sobre o 'comportamento' do rio; não obstante, uma comparação mais acurada pode assinalar uma tensão maior na passagem da primeira estrofe, e uma qualidade notadamente branda na posterior. Como podemos observar, o conteúdo da descrição dá mais importância aos detalhes do ambiente: as "Five miles meandering with a mazy motion/ Through wood and dale" ocorrem apenas na estrofe posterior. Isto sugere, quiçá, certa serenidade na percepção descritiva. Quanto à estrutura sintática, a passagem anterior contém um único verbo flexionado, ao passo que a posterior contém três verbos finitos para indicar a mesma progressão do rio: correu... então alcançou...e mergulhou. Novamente, convém salientar, isso pode indicar alguma suavidade na consciência observadora. O que a longa descrição posterior nos oferece é, pois, pura e simplesmente a existência e a atividade tranqüilas dos elementos, de acordo com sua natureza, enquanto que a anterior, por assim dizer, subtrai-nos de nossa liberdade emocional.
Essas qualidades contrastantes são reforçadas por suas respectivas estruturas prosódicas. Os últimos versos da passagem posterior são organizados numa estrutura simétrica, estável, num esquema de rima a-b-b-a, ao passo que os três versos da passagem anterior são parte de uma estrutura muito mais complexa, cujo típico efeito é desequilibrar qualquer espécie de estabilidade focal. Um outro elemento de desassossego pode ser encontrado na correspondência específica, ou porventura na carência de correspondência, entre a estrutura sintática e a unidade prosódica em "Where Alph, the sacred river, ran/ Through caverns(...)". Quanto mais próxima a quebra sintática está da parte final de um verso, maior é o nosso relaxamento quando o trecho restante nos é oferecido; por outro lado, quanto mais próximo o início do prosseguimento da unidade sintática estiver da parte final do verso, maior será a tensão experimentada. Portanto, nesse trecho do poema, o uso do verbo no passado faz-se imperioso, assim como o momentum gerado pela frase de encadeamento, que acentua o aspecto da velocidade de "ran". Em oposição, na passagem posterior, a frase "with a mazy motion" começa exatamente no centro do verso, e portanto não é percebida como um verso encadeado, mas quase como um verso de encerramento. Mesmo sua seqüência, "the sacred river ran", a princípio idêntica letra por letra à frase correspondente na outra passagem, difere dela em dois pontos importantes: Primeiro, o verbo "ran" na passagem anterior inicia um enjambement, enquanto que na passagem posterior serve como encerramento de um verso concluído; segundo, a pontuação realça a quebra antes do fim do verso na passagem anterior, e com a mesma simbologia acentua o ímpeto da frase de encadeamento, enquanto que na passagem posterior as vírgulas de articulação são omitidas, e a exigência de empregar "ran" é um tanto ou quanto atenuada. Quanto à métrica dos versos, observemos que o pentâmetro iâmbico tem uma propriedade flexível peculiar, devido ao fato de não poder ser dividido em duas metades simétricas; isso o torna mais apropriado do que qualquer outro às cadências do discurso natural, enquanto que tetrarritmo tem uma rigidez peculiar, devido ao fato de poder ser dividido em duas partes absolutamente iguais. Ora, os trechos em pauta podem ser contrastados nesse aspecto também: a passagem posterior contem quatro pentâmetros iâmbicos, a anterior dois tetrarritmos iâmbicos e um trímetro. A tensão nesses dois tetrarritmos é exacerbada pelo fato de que em ambos a cesura, após a quarta sílaba, é 'atropelada'; logo, mais uma vez, a relativa placidez da passagem posterior é corroborada. Ressalte-se, contudo, que a serenidade que emerge dessa comparação, compreendida de modo intuitivo pelo leitor, é meticulosamente introduzida apenas para ser devastada no quarto verso dessa passagem. Já vimos que como parte do padrão sintático de três verbos finitos, "sank" aprofunda ainda mais essa condição de tranqüilidade; por intermédio da mesma analogia, todavia, a locução verbal "sank in tumult" introduz uma comoção nessa descrição idílica. Indica a eclosão de um estrondo de tonitruante energia, bem como a súbita desintegração da forma linear do rio, apesar de sinuosa. Nesse contexto, "lifeless ocean" deve ser encarado como uma amplificação de "sunless sea"; conseqüentemente, o atributo dialético da serenidade torna-se funcional para o Kubla Khan em seu método de contrastes.
O rio, fio condutor semântico/sintático do poema, de facto não pode ser visto como o Rio da Vida, ou qualquer rio claramente definido, mas sim como energia caótica que emerge das forças primevas do Universo, ainda que de seu vórtice turbilhonante também irrompa a insólita e improvável paz de um Caos que por vezes se transfigura em Cosmos. Nesta oscilante dialética 'Caos/Cosmos', o rio Alph perde sua identidade num oceano sem vida; assim sendo, a oposição 'Vida/Morte' é expressa na articulação entre uma linguagem cinética e uma linguagem estática: de um lado, a oposição entre o rio serpenteante e corrente e seu desaparecimento no oceano; de outro, o contraste entre "wood and dale" (vitalidade) e "lifeless ocean" ou "sunless sea" (finitude); e podemos ainda observar, em determinados versos, como "And sank in tumult to a lifeless ocean", a manifestação de ambas as linguagens no deslocamento do cinético ao estático num mesmo plano conceitual.
Na descrição, por conseguinte, do movimento labiríntico do rio que serpenteia, levamos a cabo o cotejo entre duas passagens onde se verifica um contraste que envolve, ressaltemos uma vez mais, tanto o padrão semântico da realidade descrita quanto os níveis sintáticos e prosódicos da tessitura poética.
É no contexto, pois, do multiforme caleidoscópio desta destruição criadora que devemos considerar os versos a seguir: "And ‘mid this tumult Kubla heard from far/ Ancestral voices prophesying war!". Na agonia mortal do rio que se dissolve num oceano inerte, irrompem bramidos ancestrais vaticinando a guerra, a pulsão de morte que precipita o Homem no Caos. As vozes arcanas evocam, sobretudo, a sombria compulsão, a idolatria atávica às forças conflitantes e destrutivas que levam o homem à sua destruição.
Os elementos irracionais e apocalípticos são, como podemos ver, primordiais aqui. Nosso percurso analítico, entretanto, acrescenta forçosamente a essa passagem uma dimensão estrutural, que mais uma vez se mostrará importante no todo do poema. A percepção de uma qualidade irracional reside não apenas na força sublime do caos, mas também, enfatizemos, na configuração difusa das águas que se precipitam imediatamente após o percurso linear do rio. A contraposição entre processos lineares e difusos apresenta, acreditamos nós, uma estrutura análoga à oposição entre os processos mentais racionais e irracionais. Visualmente, as águas cadentes e o oceano sem vida são percebidos como entidades informes: a primeira pertence ao sublime dinâmico, a posterior ao matemático. O "tumult" se afirma como ruído inarticulado, isto é, mais uma vez uma qualidade imaterial e informe; funciona como suporte perceptivo das "ancestral voices", que são, igualmente, qualidade imaterial. Essa qualidade é ainda reforçada por uma refinada engenharia gramatical: caso tivéssemos uma construção tal como, por exemplo, "voices of the ancestors" ('vozes dos ancestrais'), os ancestrais, elementos dinâmicos, apareceriam como sujeito; Coleridge, invertendo a configuração sintática de substantivo em adjetivo ('vozes dos ancestrais' / 'vozes ancestrais'), obtém então uma entidade essencialmente imaterial. É, portanto, nesse interlúdio entre o nascimento e a morte do rio, que logramos, com a máxima concentração, a dissolução de seres concretos em sombras imateriais e informes: iniciando com a desintegração do solo firme em "huge fragments" que irrompem das profundezas da terra, prosseguindo com a perda de identidade do rio fluido ao se dissipar no "lifeless ocean", e terminando com os espectros imateriais representados pelas ancestral voices. Nesse sentido, os versos que acabamos de examinar constituem momento axial na arquitetura poética do Kubla Khan.
Passemos agora aos versos que se seguem: "The shadow of the dome of pleasure / Floated midway on the waves;/ Where was heard the mingled measure/ From the fountain and the caves. / It was a miracle of rare device, / A sunny pleasure-dome and caves of ice!". Podemos atalhar que esta passagem, de certo modo, opera novo deslocamento de foco na perspectiva visual do poema; porém, num aspecto importante, o trecho em questão dá continuidade a processos perceptivos iniciados nos versos precedentes, a saber, a dissolução do mundo concreto em entidades imateriais e informes.
Em primeiro lugar, confrontamo-nos aqui não com o sólido "dome of pleasure", mas com seu espectro, o qual, apesar de ter uma forma nítida, também pode ser encarado como exemplo arquetípico de uma entidade imaterial; contudo, apesar de flutuar na superfície das ondas, permanece em contínua metamorfose, tornando-se, desse modo, imagem característica de uma realidade cambiante, sempre em mutação, verificando-se a presença de uma similaridade estrutural com os processos emocionais. A sutileza dessa percepção visual é corroborada pela súbita mudança métrica do pentâmetro iâmbico em tetrarritmo trocaico (com uma ligeira sílaba hipermétrica no início do primeiro verso). A sombra do palácio flutua, pois, entre a fonte e as cavernas, é o que podemos presumir. Tal concepção sugere uma disposição simétrica do espaço perceptível, que se exprime em fascinante contraste com os entes imateriais em jogo. Ao mesmo tempo, estamos no local onde o rumor e os sons inarticulados vindos da fonte e das cavernas (mencionados nos dois trechos anteriores da estrofe), se encontram e se entremeiam; ora, os objetos relativamente estáveis (a fonte e as cavernas) estão agora distantes, e apenas uma entidade liberta de forma e matéria pode perceber percebe os sons por eles emitidos. A essa entidade imaterial e informe, se sobrepõe um esquema simetricamente ajustado, que nos é sugerido pelo termo "midway".
Ao nos determos, enfim, sobre a prodigiosa estrofe que encerra o Kubla Khan, constatamos que o cenário se transforma radicalmente. Palmilhamos agora uma diáfana paragem onírica, onde não resta mais nenhum vestígio do palácio do Khan. Enquanto o poema, até o presente momento, havia se dedicado a descrever a criação e ulterior desintegração de um cenário material, a última estrofe se desloca para ermos ignotos, brumosos, apartados de qualquer realidade física. Sabemos apenas que, em determinadas circunstâncias, todos ("all") reagiriam de modo idêntico às atitudes do duplo 'Khan/Coleridge'; nada podemos afirmar acerca destas enigmáticas criaturas: sua identidade, quantos são ou onde se encontram; temos inclusive parcos elementos para determinar quem porventura seria o 'eu' em questão. Estamos aqui sob a égide do imaginário absoluto, que preenche integralmente o presente, apesar de quase tudo ser apresentado no tempo condicional. No que tange ao diapasão emocional do poema, a última estrofe alcança o ápice de um êxtase ritualístico, ponto culminante de um estupefaciente desvario alucinatório: os olhos faiscantes e cabelos revoltos inequivocamente denotam um estado de violenta agitação mental, selvagem "desregramento absoluto de todos os sentidos", recuperando aqui a célebre expressão de Rimbaud. Podemos dizer, com razoável grau de certeza, que a imagerie usada por Coleridge baseia-se em relatos acerca dos lendários cultos órficos, - olhos faiscantes e cabelos flutuantes, assim como mel, leite, magia, santidade e terror. Creio, no entanto, que mesmo os leitores pouco familiarizados com a natureza dos cultos órficos reconhecerão nesses versos finais o auge emocional de um intenso transe místico.
Faz-se mister agora sublinharmos duas questões de grande importância nesta passagem: o fato de o orador despertar (seja ele quem for), quando sob os auspícios do estado mental ali descrito, um horror sagrado em sua audiência; e sobretudo a percepção, fundamental para o poema como um todo, de que este êxtase místico está relacionado à sua aptidão em reviver, a partir e no seio de si mesmo, a canção inebriante da sibilina donzela abissínia, e em reconstruir, "with music loud and long", a visão transcendental descrita nas estrofes precedentes. A música se configura, dessa maneira, como instância suprema das qualidades imateriais que abordamos em nossa análise.
Conseqüentemente, o apogeu da experiência mística e emocional entretecida por Coleridge ocorre no ponto em que todo o cenário físico desaparece, permanecendo somente o transe espiritual e as essências imateriais, em especial a música sublime, alicerce onírico onde será reerguido o fulgurante palácio de Kubla Khan. O paraíso que o Imperador pretendia erigir com a construção de um magnífico palácio é, pois, desintegrado pelas potências telúricas da Terra e enfim se converte, por meio de forças terrenas e celestiais, humanas e sobrenaturais, em nova e resplendente criação, que a hipnótica donzela abissínia e o transfigurado poeta recuperam com o sublime êxtase de sua divina arte.