Alphonse Van Worden - AD 1750
A partir de obras como "The Concept of Nature" (1919) e "Science and the Modern World" (1920), e sobretudo em "Process and Reality" (1929), seu trabalho filosófico de maior fôlego, o filósofo, lógico e matemático inglês Alfred North Whitehead, rejeitando o dualismo cartesiano entre mente e matéria, propõe uma concepção de Realidade estruturada em termos de Eventos e de suas relações / interconexões, que estabelecem a unidade entre observador e observado, entre sujeito e objeto. Para Whitehead, deve-se ressaltar, a epistemologia não possui nenhuma prioridade sobre a ontologia, ou vice-versa: qualquer reflexão sobre o Conhecimento envolve, simultaneamente, uma reflexão sobre o Ser.
Antes de empreendermos a investigação sobre o conceito de evento propriamente dito, são necessárias algumas observações preliminares acerca do que o filósofo inglês irá denominar como doutrina científica da matéria.
Na segunda parte da conferência 'Natureza e Pensamento', publicada em "The Concept of Nature", Whitehead irá tratar da influência da filosofia grega na formação da doutrina científica da matéria. Para ele, "tal influência originou-se de uma concepção equivocada, de origem remota, quanto à condição metafísica das entidades naturais" . A entidade foi desvinculada dos elementos que constituem os termos da apreensão sensível; converteu-se, portanto, no fundamento, na essência estruturante de tais elementos, que foram relegados à condição de atributos da entidade. Em si mesma, uma entidade natural deve ser entendida, argumenta o filósofo inglês, tão somente como o processo de apreensível sensível de um fato. A entidade não é a essência primordial de um fato, de fenômeno dado, mas sim a maneira pela qual um fato é processado pelo pensamento. Isto é, a entidade natural não é fundamento, mas movimento de apreensão sensível de um fenômeno que se manifesta. De acordo com Whitehead, essa abstração, que é um processo mental na transfiguração da apreensão sensível em conhecimento discursivo, foi considerada como o caráter fundamental de estruturação da natureza. Em outras palavras: a matéria se configurou como essência metafísica de suas propriedades, e o curso da Natureza é interpretado como sendo a história da Matéria. A Matéria, por sua vez, passou a ser condição de possibilidade de suas propriedades, como podemos constatar ao analisarmos a evolução da doutrina científica da matéria, que tem sua origem no pensamento grego.
Desde os primeiros pensadores jônicos, foram propostas as mais diversas hipóteses sobre quais seriam os fundamentos últimos na natureza. A terra, a água, o ar e o fogo da filosofia jônica, são comparáveis, sublinha Whitehead, ao éter das teorias científicas dos séculos XVIII e XIX: constituem tentativas de formulação de um substrato último para a Natureza; são, na acepção aristotélica, exemplos de substâncias últimas. A entidade, pois, livre de todos os atributos, exceto aqueles do espaço e do tempo, foi pensada como condição concreta de estruturação fundamental da natureza, de maneira que o processo da natureza é compreendido como a trajetória da matéria em seu percurso pelo espaço.
Assim sendo, o filósofo inglês assevera que, na formação da doutrina científica da matéria, a filosofia, num primeiro momento, transformou a entidade considerada em si mesma, que se constitui como abstração necessária ao processo do pensamento, no fundamento metafísico dos fenômenos da Natureza e de seus atributos; num segundo momento, os cientistas tomaram esse fundamento como condição de possibilidade, como materialidade existente no tempo e no espaço.
Whitehead, vale dizer, pretende repensar tanto a doutrina científica da matéria quanto as teorias absolutas do tempo e do espaço, isto é, o acervo de teorias que admitem o conhecimento do tempo e do espaço em si mesmos, separados dos eventos neles relacionados. O mesmo princípio adotado para as relações entre espaço e matéria aplica-se, pois, às relações entre tempo e matéria. A concepção de Whitehead advoga, portanto, uma teoria relacional tanto do espaço como do tempo, recusando a forma corrente da teoria relacional do espaço, que exibe porções de matéria como os termos relacionais para as relações espaciais, ou seja, que acredita em complexos relacionais entre entidades puras e simples através do espaço. As relações espaço-temporais se desenvolvem entre eventos que se manifestam dinamicamente, e não entre entidades que, conforme dissemos anteriormente, são apenas abstrações necessárias ao processo do pensamento. Para o filósofo inglês, os legítimos termos relacionais são os eventos, que se afirmam como acontecimentos espaço-temporais. Tempo e espaço são abstrações que exprimem relações entre eventos; conhecemos, portanto, a inter-relação de eventos que se desenrolam no espaço e no tempo, o processo através do qual tais eventos, que são termos relacionais, se manifestam como entrelaçamento de fenômenos para o pensamento, e não entidades absolutas passíveis de conhecimento em si mesmas.
Passaremos agora a investigar o significado que a noção de evento irá assumir na filosofia de Whitehead. Eventos, tal como comumente os concebemos, são acontecimentos que ocorrem em lugares determinados, em períodos de tempo determinado, estendendo-se por uma determinada duração - em suma, tudo que acontece, desde a queda de um fruto de sua árvore, até à queda de um Império. A matéria, argumenta Whitehead, pode ser considerada em si mesma como um agregado de eventos subatômicos, concepção que, sem dúvida, encontrava esteio nas então recentes pesquisas da mecânica quântica. Os eventos subatômicos são, por conseguinte, exemplos dos tipos fundamentais de eventos que constituem a base da ontologia do filósofo inglês. O físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), com a formulação de seu Princípio da Indeterminação em 1927, verificou ser impossível especificar e determinar, simultaneamente e com precisão absoluta, a posição e a velocidade de uma partícula, mostrando como, no processo de medida de grandezas no campo da microfísica, se atinge um limite onde a precisão se torna impossível, mesmo teoricamente, pois o próprio ato de medida perturba, até certo ponto, o fenômeno, que não pode, pois, ser avaliado com precisão. Tal enunciado, portanto, representa um cheque-mate para o determinismo clássico, colocando em questão não apenas a noção tradicional de causalidade, mas a própria independência entre o observador e o observado. Na mecânica quântica, a interpretação de uma observação experimental de um sistema físico é um processo mais complexo do que os até então utilizados na física clássica. Poderá consistir de uma única leitura, cuja precisão terá que ser rigorosamente avaliada, ou então poderá consistir num intrincado conjunto de dados, como no caso de uma fotografia de gotículas d'água na câmara de Wilson, experimento citado por Heisenberg. Em ambos os casos, o resultado só poderá ser expresso em termos de uma distribuição de probabilidades que diga respeito, por exemplo, à posição e ao momento linear das partículas do sistema. A teoria então poderá prever a distribuição de probabilidades para tempos futuros, mas não poderá ser empiricamente verificada, em qualquer um desses instantes futuros, com base no resultado experimental segundo o qual os valores das posições, ou dos momentos lineares, estejam dentro dos limites previstos em uma observação específica. A mesma experiência terá que ser realizada repetidas vezes, de maneira que os valores das posições e momentos lineares se distribuam de modo a configurar o esquema de probabilidades predito. Para a mecânica quântica, portanto, a indeterminação, longe de ser apenas um dado epistemológico, está presente na própria ontologia do objeto de conhecimento.
O filósofo inglês, todavia, não restringe a validade de seus eventos fundamentais ao plano subatômico; desse modo, não somente os fenômenos descritos pela física quântica, mas também os eventos atômicos, moleculares e celulares se enquadram nas unidades fundamentais definidas por Whitehead. Toda esta complexa rede de eventos se manifesta como o conjunto de ocasiões experienciadas pela percepção humana, o que não significa dizer que se configurem necessariamente como experiências conscientes. A quantidade de fenômenos que experimentamos simultaneamente ultrapassa de sobejo nossa capacidade de análise. Experimentamos todo o universo à nossa volta, mas nossa consciência é tão somente capaz de analisar uma fração mínima desta totalidade de fenômenos. De facto, estamos conscientes, por exemplo, da pessoa com quem conversamos numa festa e, ao mesmo tempo, experimentamos os demais eventos que se desenrolam no ambiente em que nos encontramos. Para Whitehead, a característica mais importante da consciência consiste precisamente de isolar analiticamente um fenômeno em meio à miríade de fenômenos que nos envolve: poderíamos falar com qualquer um na festa, mas estamos falando com uma pessoa específica. Trata-se do que o filósofo inglês irá denominar como ocasião atual, isto é, o fenômeno que está sendo no momento analisado por nossa consciência.
Consideremos agora o ato da percepção. É por intermédio da percepção, que compreende cognição, intencionalidade e afecções, que ficamos cientes do meio que nos cerca. Eu olho para a folha de papel que está à minha frente, por exemplo. Tenho uma percepção imediata de sua aparência geral - sua forma, tamanho, cor. Ela está colocada sobre esta mesa e rodeada por uma série de outras coisas, que todavia não constituem, no presente momento, objetos precisos da minha consciência. Da mesma maneira, estou vagamente consciente do meu corpo e de suas relações com a mesa e a folha de papel. Enquanto observo a folha, cadeias de memórias associativas são despertadas. Todas estas percepções e memórias estão enfeixadas numa unidade, num único evento perceptivo. O ponto focal deste evento é o meu corpo. A folha de papel, ocasião atual de meu processo perceptivo, e os objetos a sua volta, assim como as lembranças, são todos elementos constitutivos internos da minha experiência, e participam direta ou indiretamente do evento que ora está sendo experimentado. Em nossos processos perceptivos, por conseguinte, estamos continuamente dividindo a apreensão sensível de um evento complexo em eventos singulares, ou seja, estabelecendo ocasiões atuais como objeto de análise de nossa consciência.
O ato perceptivo estabelece, pois, a relação causal entre o sujeito e a realidade externa num momento específico. Percepção e memória, salienta Whitehead, são instâncias constitutivas de um conceito mais abrangente, por ele chamado de apreensão. Para o sujeito, portanto, apreender um objeto, que pode ser físico, como uma folha de papel, ou conceitual, como a memória, é experimenta-lo, percebe-lo, senti-lo, ainda que não necessariamente de um modo consciente ou reflexivo. A capacidade de apreender está também presente nos planos elementares da natureza. Uma célula percebe o ambiente que a circunda. No complexo de eventos subatômicos, cada evento apreende seu antecedente, e é quase que inteiramente determinado por ele.
O conceito de apreensão parece ser, num primeiro momento, deveras semelhante ao conceito fenomenológico de intencionalidade; ambos descrevem a relação que se estabelece entre um sujeito e um objeto tendo em vista a superação da cisão sujeito/objeto. Da mesma maneira que intencionalidade é sempre consciência de um objeto, apreensão é sempre percepção de um conjunto de dados. Existe, contudo, aponta Whitehead, uma distinção crucial entre as duas noções: a intencionalidade é pensada apenas em termos de consciência humana, ao passo que o escopo da apreensão, como tivemos a oportunidade de constatar, ultrapassa os limites da consciência humana. Ao invés de meramente se identificar com a intencionalidade, a apreensão generaliza tanto a noção de intencionalidade quanto a de causalidade, unificando desta forma tanto as perspectivas fenomenológica e científica.
Ao conceber, portanto, a natureza em termos de EVENTOS, e não de substâncias, Alfred North Whitehead opera um deslocamento radical em relação às teorias ontológicas e epistemológicas consagradas pela tradição filosófica. Mente e Matéria não mais constituem as instâncias fundamentais em que se divide a realidade, sendo substituídas por Whitehead pelo conceito unificado de eventos relacionais se processando dinamicamente no espaço-tempo, possuindo características que podem ser consideradas como pertencentes, em certos aspectos, tanto ao plano material quanto, em outros, ao plano conceitual.
A partir de obras como "The Concept of Nature" (1919) e "Science and the Modern World" (1920), e sobretudo em "Process and Reality" (1929), seu trabalho filosófico de maior fôlego, o filósofo, lógico e matemático inglês Alfred North Whitehead, rejeitando o dualismo cartesiano entre mente e matéria, propõe uma concepção de Realidade estruturada em termos de Eventos e de suas relações / interconexões, que estabelecem a unidade entre observador e observado, entre sujeito e objeto. Para Whitehead, deve-se ressaltar, a epistemologia não possui nenhuma prioridade sobre a ontologia, ou vice-versa: qualquer reflexão sobre o Conhecimento envolve, simultaneamente, uma reflexão sobre o Ser.
Antes de empreendermos a investigação sobre o conceito de evento propriamente dito, são necessárias algumas observações preliminares acerca do que o filósofo inglês irá denominar como doutrina científica da matéria.
Na segunda parte da conferência 'Natureza e Pensamento', publicada em "The Concept of Nature", Whitehead irá tratar da influência da filosofia grega na formação da doutrina científica da matéria. Para ele, "tal influência originou-se de uma concepção equivocada, de origem remota, quanto à condição metafísica das entidades naturais" . A entidade foi desvinculada dos elementos que constituem os termos da apreensão sensível; converteu-se, portanto, no fundamento, na essência estruturante de tais elementos, que foram relegados à condição de atributos da entidade. Em si mesma, uma entidade natural deve ser entendida, argumenta o filósofo inglês, tão somente como o processo de apreensível sensível de um fato. A entidade não é a essência primordial de um fato, de fenômeno dado, mas sim a maneira pela qual um fato é processado pelo pensamento. Isto é, a entidade natural não é fundamento, mas movimento de apreensão sensível de um fenômeno que se manifesta. De acordo com Whitehead, essa abstração, que é um processo mental na transfiguração da apreensão sensível em conhecimento discursivo, foi considerada como o caráter fundamental de estruturação da natureza. Em outras palavras: a matéria se configurou como essência metafísica de suas propriedades, e o curso da Natureza é interpretado como sendo a história da Matéria. A Matéria, por sua vez, passou a ser condição de possibilidade de suas propriedades, como podemos constatar ao analisarmos a evolução da doutrina científica da matéria, que tem sua origem no pensamento grego.
Desde os primeiros pensadores jônicos, foram propostas as mais diversas hipóteses sobre quais seriam os fundamentos últimos na natureza. A terra, a água, o ar e o fogo da filosofia jônica, são comparáveis, sublinha Whitehead, ao éter das teorias científicas dos séculos XVIII e XIX: constituem tentativas de formulação de um substrato último para a Natureza; são, na acepção aristotélica, exemplos de substâncias últimas. A entidade, pois, livre de todos os atributos, exceto aqueles do espaço e do tempo, foi pensada como condição concreta de estruturação fundamental da natureza, de maneira que o processo da natureza é compreendido como a trajetória da matéria em seu percurso pelo espaço.
Assim sendo, o filósofo inglês assevera que, na formação da doutrina científica da matéria, a filosofia, num primeiro momento, transformou a entidade considerada em si mesma, que se constitui como abstração necessária ao processo do pensamento, no fundamento metafísico dos fenômenos da Natureza e de seus atributos; num segundo momento, os cientistas tomaram esse fundamento como condição de possibilidade, como materialidade existente no tempo e no espaço.
Whitehead, vale dizer, pretende repensar tanto a doutrina científica da matéria quanto as teorias absolutas do tempo e do espaço, isto é, o acervo de teorias que admitem o conhecimento do tempo e do espaço em si mesmos, separados dos eventos neles relacionados. O mesmo princípio adotado para as relações entre espaço e matéria aplica-se, pois, às relações entre tempo e matéria. A concepção de Whitehead advoga, portanto, uma teoria relacional tanto do espaço como do tempo, recusando a forma corrente da teoria relacional do espaço, que exibe porções de matéria como os termos relacionais para as relações espaciais, ou seja, que acredita em complexos relacionais entre entidades puras e simples através do espaço. As relações espaço-temporais se desenvolvem entre eventos que se manifestam dinamicamente, e não entre entidades que, conforme dissemos anteriormente, são apenas abstrações necessárias ao processo do pensamento. Para o filósofo inglês, os legítimos termos relacionais são os eventos, que se afirmam como acontecimentos espaço-temporais. Tempo e espaço são abstrações que exprimem relações entre eventos; conhecemos, portanto, a inter-relação de eventos que se desenrolam no espaço e no tempo, o processo através do qual tais eventos, que são termos relacionais, se manifestam como entrelaçamento de fenômenos para o pensamento, e não entidades absolutas passíveis de conhecimento em si mesmas.
Passaremos agora a investigar o significado que a noção de evento irá assumir na filosofia de Whitehead. Eventos, tal como comumente os concebemos, são acontecimentos que ocorrem em lugares determinados, em períodos de tempo determinado, estendendo-se por uma determinada duração - em suma, tudo que acontece, desde a queda de um fruto de sua árvore, até à queda de um Império. A matéria, argumenta Whitehead, pode ser considerada em si mesma como um agregado de eventos subatômicos, concepção que, sem dúvida, encontrava esteio nas então recentes pesquisas da mecânica quântica. Os eventos subatômicos são, por conseguinte, exemplos dos tipos fundamentais de eventos que constituem a base da ontologia do filósofo inglês. O físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), com a formulação de seu Princípio da Indeterminação em 1927, verificou ser impossível especificar e determinar, simultaneamente e com precisão absoluta, a posição e a velocidade de uma partícula, mostrando como, no processo de medida de grandezas no campo da microfísica, se atinge um limite onde a precisão se torna impossível, mesmo teoricamente, pois o próprio ato de medida perturba, até certo ponto, o fenômeno, que não pode, pois, ser avaliado com precisão. Tal enunciado, portanto, representa um cheque-mate para o determinismo clássico, colocando em questão não apenas a noção tradicional de causalidade, mas a própria independência entre o observador e o observado. Na mecânica quântica, a interpretação de uma observação experimental de um sistema físico é um processo mais complexo do que os até então utilizados na física clássica. Poderá consistir de uma única leitura, cuja precisão terá que ser rigorosamente avaliada, ou então poderá consistir num intrincado conjunto de dados, como no caso de uma fotografia de gotículas d'água na câmara de Wilson, experimento citado por Heisenberg. Em ambos os casos, o resultado só poderá ser expresso em termos de uma distribuição de probabilidades que diga respeito, por exemplo, à posição e ao momento linear das partículas do sistema. A teoria então poderá prever a distribuição de probabilidades para tempos futuros, mas não poderá ser empiricamente verificada, em qualquer um desses instantes futuros, com base no resultado experimental segundo o qual os valores das posições, ou dos momentos lineares, estejam dentro dos limites previstos em uma observação específica. A mesma experiência terá que ser realizada repetidas vezes, de maneira que os valores das posições e momentos lineares se distribuam de modo a configurar o esquema de probabilidades predito. Para a mecânica quântica, portanto, a indeterminação, longe de ser apenas um dado epistemológico, está presente na própria ontologia do objeto de conhecimento.
O filósofo inglês, todavia, não restringe a validade de seus eventos fundamentais ao plano subatômico; desse modo, não somente os fenômenos descritos pela física quântica, mas também os eventos atômicos, moleculares e celulares se enquadram nas unidades fundamentais definidas por Whitehead. Toda esta complexa rede de eventos se manifesta como o conjunto de ocasiões experienciadas pela percepção humana, o que não significa dizer que se configurem necessariamente como experiências conscientes. A quantidade de fenômenos que experimentamos simultaneamente ultrapassa de sobejo nossa capacidade de análise. Experimentamos todo o universo à nossa volta, mas nossa consciência é tão somente capaz de analisar uma fração mínima desta totalidade de fenômenos. De facto, estamos conscientes, por exemplo, da pessoa com quem conversamos numa festa e, ao mesmo tempo, experimentamos os demais eventos que se desenrolam no ambiente em que nos encontramos. Para Whitehead, a característica mais importante da consciência consiste precisamente de isolar analiticamente um fenômeno em meio à miríade de fenômenos que nos envolve: poderíamos falar com qualquer um na festa, mas estamos falando com uma pessoa específica. Trata-se do que o filósofo inglês irá denominar como ocasião atual, isto é, o fenômeno que está sendo no momento analisado por nossa consciência.
Consideremos agora o ato da percepção. É por intermédio da percepção, que compreende cognição, intencionalidade e afecções, que ficamos cientes do meio que nos cerca. Eu olho para a folha de papel que está à minha frente, por exemplo. Tenho uma percepção imediata de sua aparência geral - sua forma, tamanho, cor. Ela está colocada sobre esta mesa e rodeada por uma série de outras coisas, que todavia não constituem, no presente momento, objetos precisos da minha consciência. Da mesma maneira, estou vagamente consciente do meu corpo e de suas relações com a mesa e a folha de papel. Enquanto observo a folha, cadeias de memórias associativas são despertadas. Todas estas percepções e memórias estão enfeixadas numa unidade, num único evento perceptivo. O ponto focal deste evento é o meu corpo. A folha de papel, ocasião atual de meu processo perceptivo, e os objetos a sua volta, assim como as lembranças, são todos elementos constitutivos internos da minha experiência, e participam direta ou indiretamente do evento que ora está sendo experimentado. Em nossos processos perceptivos, por conseguinte, estamos continuamente dividindo a apreensão sensível de um evento complexo em eventos singulares, ou seja, estabelecendo ocasiões atuais como objeto de análise de nossa consciência.
O ato perceptivo estabelece, pois, a relação causal entre o sujeito e a realidade externa num momento específico. Percepção e memória, salienta Whitehead, são instâncias constitutivas de um conceito mais abrangente, por ele chamado de apreensão. Para o sujeito, portanto, apreender um objeto, que pode ser físico, como uma folha de papel, ou conceitual, como a memória, é experimenta-lo, percebe-lo, senti-lo, ainda que não necessariamente de um modo consciente ou reflexivo. A capacidade de apreender está também presente nos planos elementares da natureza. Uma célula percebe o ambiente que a circunda. No complexo de eventos subatômicos, cada evento apreende seu antecedente, e é quase que inteiramente determinado por ele.
O conceito de apreensão parece ser, num primeiro momento, deveras semelhante ao conceito fenomenológico de intencionalidade; ambos descrevem a relação que se estabelece entre um sujeito e um objeto tendo em vista a superação da cisão sujeito/objeto. Da mesma maneira que intencionalidade é sempre consciência de um objeto, apreensão é sempre percepção de um conjunto de dados. Existe, contudo, aponta Whitehead, uma distinção crucial entre as duas noções: a intencionalidade é pensada apenas em termos de consciência humana, ao passo que o escopo da apreensão, como tivemos a oportunidade de constatar, ultrapassa os limites da consciência humana. Ao invés de meramente se identificar com a intencionalidade, a apreensão generaliza tanto a noção de intencionalidade quanto a de causalidade, unificando desta forma tanto as perspectivas fenomenológica e científica.
Ao conceber, portanto, a natureza em termos de EVENTOS, e não de substâncias, Alfred North Whitehead opera um deslocamento radical em relação às teorias ontológicas e epistemológicas consagradas pela tradição filosófica. Mente e Matéria não mais constituem as instâncias fundamentais em que se divide a realidade, sendo substituídas por Whitehead pelo conceito unificado de eventos relacionais se processando dinamicamente no espaço-tempo, possuindo características que podem ser consideradas como pertencentes, em certos aspectos, tanto ao plano material quanto, em outros, ao plano conceitual.