quarta-feira, outubro 15, 2025

A propósito de ZANGUEZI (1922 / Velimir Khlebnikov)





Não é sempre que se tem a oportunidade, o privilégio e a ventura de se ler Велими́р Хле́бников (nosso venerando y venerável Velimir Khlebnikov) em bom (e deveras inventivo) português; oportunidade essa que desta feita nos chega pelas competentes mãos de Mário Ramos, poeta e professor de literatura russa na USP desde 2010. 

A obra traduzida por Ramos não poderia ser mais fascinante: Зангези / ZANGUEZI (1921-22 / ed. bras. Nauta 2025), sem dúvida um dos textos mais fascinantes e representativos do autor que V. Maiakovski um dia descreveu como o "Colombo dos novos continentes poéticos, agora povoados e cultivados por todos nós".

Mas que seria este ZANGUEZI, se calhar a grande síntese, a pedra filosofal do projeto estético, poético, conceitual y existencial de Khlebnikov? É decerto um 'monólito negro' em forma de texto literário, diria eu já à partida; um enigma no seio d'outro grande enigma, qual seja, seu próprio criador, este paradoxal, desconcertante, inefável amálgama entre bardo, profeta, linguista, sacerdote, matemático e magnetizador do fogo dos deuses. 


I


A começar pelo título: ZANGUEZI. Alguns estudiosos sustentam que seria um portmanteau formado pela combinação entre os nomes dos rios Zambeze e Ganges, revelando o fascínio do pai fundador do cubofuturismo pela geografia de países 'exóticos' e remotos para o imaginário europeu do período; outros tantos acreditam que possa ser um neologismo derivado do vocábulo calmuque (povo nômade de origem mongol) zyange (que poderia ser traduzido como 'o mensageiro'),  dando conta dos estudos de linguística de Khlebnikov em S. Petersburgo. Ambas as hipóteses são razoáveis e plausíveis - inclusive perfeitamente complementares; entretanto, eu humildemente aventaria uma terceira possibilidade: o escritor eslavo desejava criar uma fraternidade transfinita y transcendental entre seu alter ego espiritual, o Zaratustra histórico da antiga Pérsia e o Zaratustra filosófico de Nietzsche, tão vastas, insondáveis y inextricáveis são as labirínticas (inter)conexões do espírito humano.


II


Isto, pois, quanto ao título. E no que se refere ao gênero, que seria ZANGUEZI? Vejamos o que afirma Khlebnikov em sua introdução ao poema:

“Uma narrativa é construída com palavras, assim como um edifício é construído por unidades. A supernarrativa, ou transnarrativa (сверхповесть) é constituída por fragmentos independentes.”

Este novo gênero, criado pelo poeta para classificar trabalhos sui generis como ZANGUEZI, KA (1915) etc. envolve fundamentalmente uma fusão / combinação - em aparência caótica e aleatória, mas estruturada a partir de uma lógica interna sobremaneira complexa e rigorosa - entre mais os diversos registros, literários e não-literários. Destarte, coexistem na obra a poesia lírica, o poema em prosa, a profecia bíblica, a narrativa épica arcana, a paródia do ensaio acadêmico etc. 

ZANGUEZI é tudo isso, muito embora não possa ser decomposto nos componentes que em tese constituem seu conjunto - se é que os srs. me compreendem. É sintético, misteriosa e elusivamente sintético, totalizante, mas não analítico - malgrado possamos dizer que foi planejado e executado por seu autor com a precisão de um tratado de lógica simbólica.  É sobretudo uma obra a que se pode atribuir o qualificativo de intemporal / atemporal com inteira e absoluta justiça: por um lado, em numerosas passagens soa quase como se fora uma espécie de pendant do GILGAMESH mesopotâmico, evocando o assombro, o terror, o tremor y o êxtase das cousas que pertencem à aurora da História; por outro contudo, não raro transmite a sensação d'um texto que poderia ter sido composto na manhã de hoje. 


III 


Tal é a estrutura, a moldura. Mas e a substância, a matéria de que são feitos os sonhos, pesadelos, delírios & ideais de ZANGUEZI - ou pelos de algumas de suas passagens mais emblemáticas? Trata-se de ZAUM - neologismo formado pelo prefixo за́ ('além', 'trans') e pela palavra умь ('mente', 'conhecimento', 'razão'); um termo cuja mera prosódia já reverbera um sentido mágico, encantatório - ZAUM / ALAKAZAM / ABRACADABRA

Concebido inicialmente pelo poeta Aleksei Kruchyonykh, fraterno amigo de Khlebnikov (com quem aliás colaboraria em diversos projetos), e ulteriormente desenvolvido por ambos, ZAUM pode ser definido como o 'idioma transmental / transracional'. É a linguagem universal do Inconsciente, que ultrapassa / transcende os limites da razão e do pensamento. Refletindo os aspectos mais utópicos do socialismo, seus criadores acreditavam que ZAUM poderia ser um instrumento fundamental para a criação de uma nova consciência coletiva, uma ferramenta crucial no processo de formação do Novo Homem. 

Não obstante, com o autor de A TROMBETA DE MARTE as coisas nunca são assim tão óbvias e unidimensionais; há sempre algo além, outras galáxias, outras dimensões.  Assim sendo, Khlebnikov também caracteriza ZAUM como a "linguagem dos pássaros" (ecos de Farid al Din Attar?); ou a "linguagem dos deuses" (Agrippa?); e ainda a "linguagem das estrelas" (John Dee?); outras galáxias, outras dimensões... universos paralelos.

Na prática, ZAUM se vale de procedimentos tais como a radical desconstrução morfológica, sintática e semântica do idioma; invenção incessante de neologismos; amplo emprego de toda sorte de jogos de palavras, bem como de assonâncias, aliterações etc. Ou seja, um laboratório de audaciosos experimentos linguísticos em moto contínuo. 

Além de ZANGUEZI e KA, suponho que a obra em que ZAUM atinge sua potência máxima de expressão seja a ópera VITÓRIA SOBRE O SOL (Победа над Cолнцем / 1913), porventura o texto-assinatura, o grande carro-chefe do futurismo russo como um todo, de certo modo encapsulando suas melhores possibilidades. É outrossim uma obra-vitrine, pois é o fruto coletivo de um verdadeiro dream team da vanguarda soviética:  libreto de  Kruchyonykh, prólogo de Khlebnikov, cenografia do mítico artista plástico Kazimir Malevich e música de Mikhail Matyushin, compositor hoje relativamente obscuro, mas à época figura de bastante renome.  


IV


Não poderia encerrar este artigo sem acrescentar uma ou duas palavras a propósito d'um dos elementos por assim dizer mais inelutável inequivocamente crípticos na obra de uma figura por si só tão essencialmente elusiva quanto Khlebnikov: as 'Tábuas do Destino'. 

Com efeito, é o nome que ele atribui a um insólito conjunto de fórmulas matemáticas que alegava ter concebido, e que poderiam ser utilizados para descobrir a existência de padrões cronológicos relativos a eventos históricos marcantes para a Humanidade. Por intermédio desses padrões, o poeta russo  julgava ser possível prever / estabelecer com considerável grau de certeza as datas de acontecimentos futuros importantes. 

Khlebnikov ficou de tal modo obecado com suas 'tábuas' que chegou a dedicar um livro inteiro a esses cálculos e especulações; desafortunadamente, até hoje não há tradução alguma desse trabalho, que imagino ser estrondoso. 


*


De resto, deixo vossas senhorias com um breve tributo que escrevi em louvor a este maravilhoso, incomparável escritor (V); e por fim,  com que o realmente interessa: alguns excertos de ZANGUEZI, na primorosa tra(trans)/recriação de Mário Ramos (VI). Os trechos escolhidos  ilustram bem, assim espero, algumas das facetas mais notáveis / idiossincráticas do poema: as 'tábuas do destino'; correlações misteriosas entre geometria e linguagem; o uso de ZAUM; os vertiginosos rasgos proféticos. 


*


V


ELE, que esbofeteou o Rosto do Público, preparou uma Armadilha para os Críticos, assumiu a presidência do Globo Terrestre e fez soar a Trombeta de Marte, tomando de assalto os insondáveis abismos siderais!


ELE, que nos revelou a Palavra como Tal; nos comoveu pela Fome; nos encantou pelo Riso; e que, magnetizando o Fogo dos Deuses, nos mesmerizou com a Linguagem Transmental, conquistando os infindos universos do inconsciente cósmico!


ELE, Arcano Transfinito, VELIMIR KHLEBNIKOV!!!

   


VI


PLANO IV


(...) As tábuas do destino! Eu vos talharei em letras da noite negra, tábuas do destino! 

Três números! O meu eu da juventude, o meu eu da velhice, o meu eu da meia-idade: juntos sigamos pelo pó dos caminhos! 

105 + 104 + 115 = 742 anos e 34 dias. Leiam, olhos, a lei da ruína dos impérios.

Eis a equação: X = k + n (105 + 104 + 115 - (10² - (2n - 1) 11) dias. 

K é o ponto de partida no tempo, a marcha dos romanos sobre o leste, a batalha do Ácio. O Egito rendeu-se à Roma. Isto foi em dois de setembro do ano 31 A.C. 

Com n=1, o valor de X na equação da ruína dos povos será o seguinte: X=21 de Julho de 711, ou o dia em que a Espanha perdeu sua imponência, conquistada pelos árabes. Caiu a imponente Espanha!

Com n=2, X= 29 de Maio de 1453:  foi o dia da tomada de Constantinopla pelos turcos selvagens. A cidade dos reis inundou-se de sangue e as gaitas de fole turcas transbordaram seu encanto selvagem. Osman pisoteou o cadáver da Segunda Roma. Na catedral de Sofia dos olhos azuis estava a capa verde do Profeta. Sobre os cavalos pançudos vão os vencedores, de turbante branco na cabeça.

A canção das três asas do destino: uma no cravo, outra na ferradura! A unidade sai de cinco e vai para dez, da asa para a roda, e os movimentos dos números em três bases (105 , 104 , 115 ) são fixados pela equação.

Entre a queda da Pérsia, em 1º de outubro de 331 a.C., sob a lança de Alexandre, o Grande, e a queda de Roma, sob os golpes potentes de Alarico, em 24 de agosto de 410, passaram-se 741 anos, ou (10⁵ + 10⁴ + 11⁵) – 3⁶ + 1,5 + 1/2 - 2³ × 3² dias.

As Tábuas do Destino! Leiam, passantes, leiam. Os números guerreiros passarão diante de vós como projeções filmadas em diferentes segmentos de tempo e em diferentes planos de tempo. E todos os seus corpos, de diferentes cidades reunidas, compõem o bloco de tempo entre as quedas dos impérios que traziam o horror.


___


PLANO VIII 


Esta é a língua estelar.

(...)

V significa a rotação de um ponto em torno de outro

(o movimento circular).

L é a quebra da queda, ou os movimentos que, em geral,

vão de um plano a um ponto em queda, em linha transversal (lancha, loar).

R é um ponto que atravessa transversalmente uma área.

P é o movimento rápido de um ponto que sai de outro ponto, e assim, de muitos pontos para outros, uma multidão pontilhada a partir de um ponto; a expansão do volume (pairar, planície).

M é a pulverização do volume em infinitas pequenas partes.

S é a saída de pontos a partir de um ponto imóvel (sinergia).

K é, aqui, o ponto de encontro dos movimentos de muitos pontos num ponto imóvel. Assim, o significado de K é a tranquilidade, a aquietação (...). 


___


PLANO X 


Vai, poderói!

Marcha, poderói! Possarda, possardor!

Possaz, eu podo!

Poderudo, eu posso! Podei, eu podo!

Podei, meu eu prumado! Aprumado! Podei, posseidor!

Poderandai, olhos! Prumados! Aprumados!

Desfilai, podeidades!

Marcha, posseidor! Mãos, mãos!

Possálico, podivinoso semblante

cheio de pondorações!

Poderardentes olhos,

posselhonários pensares,

pondereiros sobreolhos!

O rosto dos pondentreiros.

A mão dos pondentreiros!

Possenvasores!

Mãos, mãos!

Possublimes, possálicas, podivinas.

Portenteiras, potenciosas, poderousadas!

Posserga-se, semblante!

Onipodentes, posserosas, podeidades!

Vocês espalharam-se, cabelos, possindígenos,

Poderanos: poderdeiros, pelo possenhor podivinoso,

por podescendentes,

No meio dos possinfantes: o potentaço, dos poderozes proverossimeis,  

Enrosca-se um sapoderoso,

Possencantado por podivineiros podencantos de possentes  posselhardários. 

Na multidão de possinfantes e poderdeiros.


___


PLANO XVIII


Quando a Horda do Leste 

Saqueou as ruas de Roma, 

E fez do branco mármore negros grilhões, 

Dando de comer às legiões de corvos,

Dentro de duas vezes três à décima primeira 

Ergueu-se de novo a montanha de ossos:

Batalhas nos campos de Kulikovo.

Nisto Moscou punha os pingos nos "is", 

Escrevendo com as tintas das vitórias, 

Do fado de Roma, uma nova história.

Do Leste dos povos cessou a metralha, 

Acabou-se a grandiosa batalha 

Com a carga dos povos do Leste.

O moinho dos tempos 

Dos ossos de Kulikovo

Construiu um dique, um morro de esqueletos. 

Na estepe corre o grito: "Não!" 

É de Moscou o guardião.

Ondas de povos em profusão 

Sobre o Ocidente rolavam 

Os godos, os hunos e mais os tártaros. 

Dentro de duas vezes três à décima primeira.

Moscou ergueu-se num elmo de neve, 

E disse: “Nem mais um passo!" ao leste.

Lá, onde secava a terra tártara (...)



*


Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros








sábado, julho 12, 2025

Esboços para uma nova síntese filósofica: um programa possível

Alphonse van Worden - 1750 AD





Inspirações filosóficas preliminares


- O modelo teórico aqui esboçado apresenta uma alternativa assaz idiossincrática, mas a meu perfeitamente defensável. Em matéria de filosofia política, inspira-se sobretudo nas seguintes linhas de pensamento:


- O realismo cético e 'mecanicista' de Thomas Hobbes (exceção feita à tese contratualista).

- A teoria do direito divino dos reis de Jacques-Bénigne Bossuet.

-  O conservadorismo social de David Hume.

- O tradicionalismo ultramontano de Joseph de Maistre e Donoso Cortés. 

- A teologia política de Charles Maurras. 

- O decisionismo de Carl Schmitt.


- Resumidamente a proposta em jogo consiste na produção d'uma síntese teórica de aspectos das correntes de pensamento supracitadas com os postulados centrais da epistemologia empirista.



I. Fundamentos epistemológicos


1. O primado da experiência sensível e dos limites do observável


- A fonte primordial do conhecimento humano é a experiência sensível, e não a razão inata ou a introspecção metafísica. Só há duas modalidades de enunciados epistemologicamente significativos: QUESTÕES DE FACTO e RELAÇÕES ENTRE IDEIAS (Hume). As 'questões de facto', referentes à realidade concreta que nos cerca, são verificáveis / comprováveis ou não através da experiência; as ‘relações entre ideias', por seu turno, concernentes às matemáticas, são construídas por método axiomático. 


- Interessam-nos aqui fundamentalmente as 'questões de facto'. Nesse sentido, todo juízo válido deve estar ancorado na percepção, na observação, na comparação e na inferência indutiva.


# Corolário político I: não existem direitos naturais, tampouco 'liberdades inalienáveis'. Tais princípios derivam de construções metafísicas não verificáveis. A hipótese d'uma “igualdade natural” entre os homens, por exemplo, é um construto dogmático, não uma constatação empírica. A observação do mundo e o testemunho da História dão conta de que a desigualdade foi, é e provavelmente sempre será regra geral em todos os domínios da Existência.


2. Negação do intelectualismo essencialista


- Não há essências fixas, mas tão somente regularidades, simetrias, assimetrias, parâmetros e padrões de comportamento e ação detectáveis / identificáveis por indução. O conhecimento é falível, provisório, adaptativo. Sistemas morais, modelos de organização política, doutrinas jurídicas etc. devem responder, pois, à realidade concreta, não a universalizações abstratas. Teorias científicas não são estritamente 'verdadeiras', mas sim QUASE-verdadeiras, válidas até que um novo esforço de aproximação correspondencial entre objeto e sistematização teórica produza uma QUASE-verdade mais exata. 

 

# Corolário político II: uma ordem política fundada em abstrações tais como "dignidade humana", "vontade geral" ou "fraternidade universal" será necessariamente ilegítima, improfícua e disfuncional. A política deve ser o reflexo da vida em sociedade e da experiência histórica, não a projeção utópica de uma razão transcendental.  


*


II. Filosofia da História


3. Empirismo, ceticismo e pessimismo


- A História, se considerada sob o escrutínio da observação empírica, não contempla / chancela qualquer noção de progresso moral.  A ciência e a técnica avançam continuamente; a moralidade humana, contudo, permanece a mesma: brutal, tribal, instintiva. A 'guerra de todos contra todos' (Hobbes) segue na ordem do dia; o homem continua a ser o 'lobo do homem'. As revoluções via de regra desaguam em caos ou degradação. As civilizações emergem e colapsam ciclicamente, milênio após milênio. 


# Corolário político III: a concepção liberal de que a liberdade política conduz ao progresso não possui lastro fático e é reiteradamente desmentida pela História. O liberalismo político não raro resulta em entropia, fragmentação social, relativismo moral e dissolução do princípio da autoridade. O Império da Liberdade tende inexoravelmente ao Reino Crepuscular da Anomia.


4. Instituições e Tradições como experimentos que  atravessam os séculos


- As instituições que perduraram ao longo do História podem e devem ser encaradas como 'soluções empíricas' testadas e aprovadas pelo uso. A monarquia, a Igreja, as ordens militares, os códigos de honra, as tradições familiares são exemplos de instituições que corresponderam E correspondem a arranjos históricos criados pelo Homem para atender a necessidades reais da sociedade; destarte, longe de serem um 'entulho autoritário', ou então os 'restos mortais' de tempos idos, constituem uma força viva, que ademais proporciona um sentido de permanência, estabilidade e coesão ao corpo social.  


# Corolário político IV: o Estado teocrático assim como o autocrático não são monstruosidades aberrantes, mas sim o produto histórico resultante de soluções empíricas que funcionaram. O próprio método científico nos obriga a respeitar essas instituições, pois elas como 'tecnologias' políticas, econômicas, sociais e morais validadas pela experiência histórica. 


*


III. Antropologia filosófica


5. Naturalismo rigoroso e desigualdade estrutural


- O ser humano é movido por paixões, pulsões, hábitos e interesses próprios. Não há motivo, evidência alguma para crermos em sua capacidade de autogoverno. A igualdade é uma condição biologicamente e socialmente insustentável. A liderança é um fenômeno natural em qualquer agrupamento humano. 


#Corolário político V: o governo das massas é uma impossibilidade estrutural e funcional. A democracia é uma ficção útil para esconder os mecanismos, estratégias e intenções daqueles que exercem o poder real. Um modelo hierárquico, fundado no mérito - compreendido aqui como materialização da Aristocracia do Espírito - e/ou hereditariedade ritualizada, sempre será mais legítimo, eficiente e honesto.


6. O Estado como 'fato' natural


- O Estado não é um contrato, mas sim uma ocorrência natural, um desdobramento orgânico e inevitável, uma extensão do domínio e da obediência presentes em todas as formas de vida social existentes na História. Assim como a alcateia carece do Alpha, a pólis carece do soberano, cuja função precípua consiste em promover a paz civil, o bem-estar social e a prosperidade do corpo político. 


#Corolário político VI: todo 'contratualismo' é uma construção ficcional incompatível com a observação criteriosa da História. Nunca houve um 'pacto' real firmado entre indivíduos livres e iguais para constituir uma sociedade política, teses contratualistas são apenas uma maneira de mascarar as relações de dominação e submissão que caracterizam tanto o processo de formação e consolidação do Estado quanto seu próprio 'maquinário'.  


*


IV. Teologia política 


7. Religião como tecnologia social e e Cesaropapismo empírico


- A religião sempre foi, historicamente falando, um instrumento de coesão moral e social sobremaneira eficaz; isto a despeito de quaisquer considerações de índole metafísica, bem entendido. A obediência ritual, a transcendência simbólica, a tradição hierárquica, todas essas instâncias funcionam como estruturas reguladoras do desejo e do conflito.


# Corolário político VII: defender a laicidade absoluta é um erro técnico. A convergência entre o Altar e o Trono pode ser uma resposta empírica legítima e viável para o problema da anomia. A religião oficial, controlada ou promovida pelo Estado, é uma tecnologia de controle social tão necessária quanto o  Exército, a Toga, a Imprensa ou a Moeda.


*


V. Soberania e legitimidade


8. Soberania e poder decisório


- A soberania é definida por quem tem a capacidade de decidir em contextos e situações excepcionais (Schmitt); assim sendo, independe de qualquer concepção abstrata de legalidade, lastreando-se pelo contrário por sua capacidade de intervenção e efetividade concreta. A autoridade que se impõe pela força, pela  ordem, pela continuidade e pela faculdade de comandar é legítima pelo simples fato de existir.


# Corolário político VIII: o Direito Divino dos Reis (Bossuet) pode e deve ser reinterpretado como um símbolo empírico da autoridade sacralizada; constitui-se, a esse respeito, num modelo de organização política de longa duração, que garantiu estabilidade institucional por mais tempo que qualquer experimento liberal.


 


quarta-feira, abril 23, 2025

Vox Populi (1883) - Villiers de L'Isle-Adam (tradução minha)

Alphonse van Worden - 1750 AD





Preclaros Irmãos d'armas, saudações. 

Encontrei hoje casualmente em meus arquivos esta tradução - um tanto quanto livre e improvisada, mas nem por isso descuidada - pronta já há alguns anos. Trata-se d'um  conto / poema em prosa do brilhante escritor francês Avgvste Villiers de L'Isle-Adam, pouco conhecido entre nós, já que nosso gosto médio sempre foi mais afeito à sensaboria realista / naturalista que às "aspirações desenfreadas pelo Infinito" (como dizia Baudelaire) da literatura fantástica de inspiração simbolista ou decadentista. 

Neste relato em particular Villiers de L'Isle-Adam demonstra que seu talento e sensibilidade se estendem generosamente a esferas em geral pouco associadas a seu nome: crítica social, filosofia moral, alegoria teológica. 'Entendendores entenderão' porque cargas d'água julguei por bem postá-la justo agora, o que se oculta nas entrelinhas, o texto, o contexto & o subtexto. 

Boa leitura a todos.


*


VOX POPULI  (1883)

Jean-Marie-Mathias-Philippe-Auguste Villiers de l'Isle-Adam


Para o sr. Leconte de Lisle


“O soldado prussiano prepara seu café num candeeiro apagado”

Sargento Hoff.


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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Desde essa visão já lá se foram doze anos de vicissitudes. Um sol de verão atirava suas longas setas douradas sobre os telhados e cúpulas da velha capital. Miríades de janelas devolviam centelhas cintilantes; o povo, imerso numa luz poeirenta, apinhava-se nas ruas para ver o exército passar.

Sentado em frente ao gradil do átrio da Notre-Dame, sobre um banco de madeira — os joelhos cruzados sob andrajos negros — o Mendigo centenário, decano da Miséria de Paris, rosto enlutado e tez cinérea, rugas cor de terra sulcando-lhe a pele, com as mãos postas sob a tabuleta que chancelava oficialmente sua cegueira, oferecia sua figura espectral ao Te Deum do evento em torno.

Toda essa gente — não eram eles, afinal, seus próximos? Os passantes em êxtase — não seriam seus irmãos? Decerto: a raça humana! De resto, esse inquilino do soberano portal não era de todo desprovido de bens: o Estado lhe concedia o apanágio de ser cego.

Detentor desse galardão e da respeitabilidade inerente àquele lugar de esmolas garantidas que oficialmente ocupava, possuindo até mesmo a condição de eleitor — era nosso igual… a não ser pela... LUZ.

E esse homem, espécie de retardatário entre os vivos, murmurava de tempos em tempos um queixume monocórdio — sílaba por sílaba — a expressão profunda de toda a sua existência:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

À sua volta, sob as tonitruantes vibrações vindas do campanário — lá fora, além da muralha escura dos seus olhos — o alvoroço da cavalaria pisoteando o solo, e, em ondas, o toque dos clarins, as aclamações da multidão, misturadas às salvas dos Veteranos, às altivas ordens de comando, ao rumor do aço, ao trovejar dos tambores que marcavam o passo de infindáveis desfiles de infantaria — toda uma ruidosa glória lhe chegava! Seus agudos ouvidos captavam até mesmo a flutuação dos estandartes, com suas franjas pesadas perpassando as couraças. 

Milhares de relâmpagos de sensações – pressentidas e nebulosas – eram evocadas na mente daquele velho prisioneiro da escuridão! Ele adivinhava a febre que incendiava os corações e mentes da cidade.

E o povo, como de costume hipnotizado pela aura que envolve a Audácia e a Fortuna, bradava em uníssono a divisa da ocasião: 

“Viva o Imperador!”

Todavia, entre os silêncios dessa tempestade triunfal, uma voz desgarrada se elevava do lado da grade mística. O ancião, a nuca reclinada contra o ferro das barras, girando as pupilas mortas em direção aos céus - esquecido por esse povo cujo verdadeiro anseio ele parecia sozinho encarnar, o anseio oculto sob os ‘hurrahs!’, o anseio secreto e pessoal - salmodiava, como fatídico intercessor, sua frase ora pejada de mistérios: 

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Eis que dez anos se foram desde o sol daquela celebração! Os mesmos ruídos, as mesmas vozes, a mesma fumaça! Uma surdina, não obstante, moderava então a azáfama da euforia popular. Uma sombra saturava os olhares. As salvas convencionais do palanque do Pritaneu se mesclavam, desta vez, com os fragores distantes das baterias de nossos fortes. E, aguçando os ouvidos, a multidão já tentava discernir, no eco, a resposta dos canhões inimigos que se avizinhavam.

Dirigindo a todos muitos sorrisos, o governador passava conduzido pelo trote compassado de seu elegante cavalo. O povo, apaziguado por aquela confiança que uma aparência irrepreensível sempre lhe inspira, saudava a aparição daquele soldado intercalando aplausos marciais e cânticos patrióticos. 

Mas os termos da saudação d’outrora haviam se modificado: aturdida, a massa proferia a divisa do momento: 

“Viva a República!”

E logo ali, ao pé do sublime umbral, ainda se distinguia a solitária voz de Lázaro. O porta-voz da consciência popular oculta não alterava, ele mesmo, a rigidez de sua constante demanda.

Alma sincera dos festejos, erguendo aos céus seus olhos apagados, exclamava, entre silêncios, com um tom de resignada constatação:

“Tende piedade de um pobre cego, por eu vos suplico!”

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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Então foram nove os anos de sofrimento suportados desde aquele sol turvo!

Oh! O mesmo estrépito! Os mesmos estrondos d’armas! Os mesmos relinchos!  Mais discretos, contudo, que no ano anterior;  mas ainda assim estridentes.

“Viva a Comuna!”, vociferava o povo, ao sabor do vento.

E a voz do sempiterno Eleito do Infortúnio reiterava, em seu espaço sagrado, seu estribilho retificador do único pensamento daquele povo. Balançando a cabeça, gemia nas sombras:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

E, duas luas depois, quando, ao som das derradeiras badaladas do sino do sino, o Generalíssimo das forças regulares do Estado passava em revista seus duzentos mil fuzis – ai de nós! – ainda fumegantes da trágica guerra civil, o povo, apavorado, urrava, contemplando ao longe os edifícios em chamas:

“Viva o Marechal!”

E embaixo, emergindo do recinto salubre, a Voz imutável — a voz do veterano da Miséria humana — repetia sua imprecação maquinalmente dolorosa e impiedosa:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

E desde então, de ano em ano, de revista em revista, de alarido em alarido, fosse qual fosse o nome lançado ao acaso pelo povo em seus vivas, aqueles que escutam atentamente os rumores da terra sempre distinguiram, no auge das clamorosas proclamações revolucionárias e das festas belicosas que as sucedem, a Voz remota, a Voz verdadeira, a Voz íntima do terrível Mendigo simbólico — o Vigia noturno que bradava a hora exata do Povo — a incorruptível sentinela da consciência dos cidadãos, aquele que restitui integralmente a prece oculta da Multidão e condensa seu suspiro.

Sumo Pontífice implacável da Fraternidade, esse Titular autorizado da cegueira física jamais cessou de implorar, como mediador involuntário, a caridade divina para seus irmãos em consciência.

E quando o Povo, ébrio de fanfarras, sinos e artilharia, turbado por esses arroubos fátuos, tenta em vão, sob quaisquer termos falsamente entusiásticos, ocultar de si mesmo seu verdadeiro desígnio, o Mendigo, voltado para o Céu, com os braços erguidos, tateando em meio às densas trevas que o envolvem, ergue-se no limiar eterno da Igreja, e com uma voz cada vez mais plangente, mas que parece alcançar além das estrelas, continua a manifestar sua inexorabilidade de profeta:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”



sexta-feira, março 28, 2025

Da série 'reflexões d'uma época de crise'




Nunca entendi, c/ toda pureza d'alma, porque as pessoas resistem tanto ao processo de zombieficação; ora, deve ser muito bom virar zombie, convenhamos.


Senão vejamos:


I - você fica livre de qualquer prurido ou convenção social; ademais, é um modo de vida relativamente simples e prático: tudo que você precisa fazer é sair matando e comendo;

II - não há preconceito de qualquer natureza entre os zombies, seja de cor, idade, gênero sexual, condição social ou qualquer outro tipo: todos são igualmente aceitos e bem acolhidos na comunidade zombie;

III - consequentemente, podemos sem hesitação concluir que o processo de zombieficação abole peremptoriamente toda e qualquer distinção de classe, pelo que se converte, portanto, na única fórmula eficaz até hoje conhecida de se criar uma sociedade legitimamente igualitária;

IV - há, portanto, um genuíno, louvável sentido de vida comunitária entre os zombies. Reparem que jamais encontramos um zombie sozinho, eles sempre agem em conjunto, de forma coordenada e harmoniosa, consoante o seguinte princípio: onde come um zombie, comem todos;

V - e por fim, last but not least, a zombieficação constitui o túmulo definitivo de todo o orgulho, de toda a vaidade, arrogância e presunção, o que sem dúvida constitui um passo de suma importância para a edificação do espírito e elevação da alma.



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

quinta-feira, fevereiro 20, 2025

In Praise of the FAERIE QVEENE

Alphonse van Worden - 1750 AD




Se há um autor que não me canso de visitar y revisitar, este é sir Edmund Spenser, sobretudo em se tratando de seu monumental FAERIE QVEENE, magnífica, incomparável e transcendente catedral em versos, onde em síntese magistral se amalgamam o ciclo arturiano; a poesia épica de Virgílio; a engenharia lírica petrarquiana; a exaltação patriótica; o fervor teológico; a arte a serviço da edificação moral dos pósteros. 

Ler o FAERIE QVEENE é mergulhar na própria substância de que são entretecidos os sonhos y as mitologias; é peregrinar por sibilinas sendas, entre vales sombrios e fúlgidas planícies, c/ seus portentosos castelos e ominosas masmorras; entre miríades de dragões, salamandras, ogros, trolls, elfos, quimeras, gigantes, ciclopes, bruxos y feiticeiras, bem como entre audazes cavaleiros andantes e excelsas donzelas, toda uma vertiginosa miríade de lendas y narrativas. Com efeito, trata-se indubitavelmente do píncaro, a grande obra-prima em toda a história da literatura fantástica, o mirífico fanal onde Tolkien e tantos y tantos outros generosamente beberam. 

Como se não bastara, ao contrário do que se poderia pensar, em termos estilísticos é Spenser, e não Shakespeare, o mais influente poeta da literatura inglesa, o que fica patente nas obras de autores como Milton, Pope, Blake, Wordsworth, Coleridge, Shelley, Keats, Tennyson etc.

Por fim, deixo vossas senhorias c/ um dos belíssimos sonetos monostróficos que constam do proêmio da obra. 



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A Vision vpon this conceipt of the Faery Queene


ME thought I saw the graue where Laura lay

Within that Temple, where the vestall flame

Was wont to burne, and passing by that way,

To see that buried dust of liuing fame,

Whose tombe faire loue, and fairer vertue kept,

All suddenly I saw the Faery Queene:

At whose approch the soule of Petrarke wept,

And from thenceforth those graces were not seene.

For they this Queene attended, in whose steed

Obliuion laid him downe on Lauras herse:

Hereat the hardest stones were seene to bleed,

And grones of buried ghostes the heuens did perse.

Where Homers spright did tremble all for griefe,

And curst th'accesse of that celestiall theife






quarta-feira, fevereiro 19, 2025

Breve nota a propósito da weird fiction de William Hope Hodgson


 

Muito embora nem sempre acerte o alvo (suas observações sobre E.T.A Hoffmann não poderiam ser mais equivocadas), não há como negar que SUPERNATURAL HORROR IN LITERATURE (1927), o célebre ensaio de crítica literária de autoria de H. P. Lovecraft, é quase sempre um guia seguro para o gênero. 

 É o caso da novela THE HOUSE ON THE BORDERLAND (1908), do escritor inglês William Hope Hodgson. Lovecraft argumenta que a obra seria um "clássico de primeira categoria" caso não padecesse de alguns clichês sentimentais; aliás, segundo o ficcionista norte-americano, este seria o grande defeito de Hodgson, sobretudo em seu romance de maior fôlego, THE NIGHT LAND (1912 / pretendo ler este ano). 

Pois ouso discordar do excelso autor de THE CALL OF CTHULHU. Pelo menos em se tratando da obra em questão, o componente romântico a meu ver funciona como mais uma faceta na odisseia lisérgico-espacial vivida (sonhada?) pelo protoganista, mais uma peça neste enigmático quebra-cabeças psicofísico.   

THE HOUSE ON THE BORDERLAND parece-me ser um dos primeiros exemplos do que se poderia denominar de 'horror cósmico', vale dizer, a fusão entre a literatura de horror e a então nascente ficção científica, que mais tarde seria celebrizada por autores como o próprio Lovecraft, Lord Dunsany, Clark Ashton Smith, Robert W. Chambers etc. Assim sendo, ao conceber uma trama onde o elemento de terror claustrofóbico e paranoide se expande através de visões monumentais (e em última instância apocalípticas) de eventos em escala cósmica, Hodgson sem dúvida rompe c/ convenções e tropos literários estabelecidos e contribui decisivamente para a criação de um novo paradigma.  

Há ainda um caráter até mesmo 'psicodélico' em diversas passagens do texto. As descrições de fenômenos astronômicos, as viagens no seio do espaço-tempo, o colapso ao fim e ao cabo do Universo conhecido, tudo isso conjura uma atmosfera de alucinatório, feérico e vertiginoso delírio, a experiência do horror sagrado perante tudo aquilo que inconcebivelmente arcano, inefável y insondável, a sensação de 'Space is Deep' tão presente nas melhores narrativas lovecraftianas ou em filmes como 2001: A SPACE ODYSSEY e SOLARIS

Ressalte-se ainda um traço fascinante, que aproxima THE HOUSE ON THE BORDERLAND do que se poderia chamar de modernidade literária: o labiríntico interplay entre Fantasia e Realidade. A mansão em ruínas, situada num recanto hostil e remoto do countryside irlandês, funciona como um portal (meta)físico entre a Terra e dimensões / universos paralelos, além de toda imaginação. Estamos, portanto, num terreno que de certo modo já tangencia autores como Borges, Buzzatti ou Calvino. 

Todavia, a conexão mais evidente e direta é de facto com a ficção lovecraftiana, se calhar sobretudo no que diz respeito ao sentimento de crescentes desamparo, solidão e pavor do homem que constata sua inanidade e insignificância perante ALGO que está muito além de sua compreensão. Em Hodgson já não há monstros e/ou criaturas sobrenaturais de corte tradicional, mas sim forças inomináveis, deidades abissais que desafiam inexoravelmente sua sanidade e até mesmo seu senso de realidade.  

THE HOUSE ON THE BORDERLAND merece, enfim, todos os encômios.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

sábado, setembro 28, 2024

In Memoriam XI

 Alphonse van Worden - 1750 AD



Ó preclaros, egrégios, excelsos irmãos d'armas!

Nosso comunicado hoje não poderia estar revestido d'um caráter mais soturno, ominoso y luctífero: حسن نصر الله foi martirizado ontem pelas ínvio inimigo sionista em Beirute. 

Trata-se de perda absolutamente inestimável. حسن نصر الله liderava o حِزْب اللّٰه desde os idos de 1992, e assim como قاسم سلیمانی, assassinado em condições análogas há 4 anos, encarnava à perfeição as virtudes do ascestimo, da austeridade, da disposição marcial, do espírito de sacrifício. Era em tudo y por tudo o próprio epítome do arquétipo védico  do क्षत्रिय, e como tal deve ser lembrado, celebrado y reverenciado. 

Foi, outrossim, sem dúvida alguma uma das mais importantes lideranças revolucionárias do mundo contemporâneo, fundamental para o Eixo de Resistência contra o Atlantismo não só no Oriente Médio, mas em todo o planeta. De resto, agora não há como hesitar ou ter meias medidas: a Rep. Islâmica precisa reagir à altura - c/ inteligência, sangue frio, senso tático e descortino estratégico, claro - mas não pode de forma alguma permanecer de braços cruzados.  

Enfim: que para ti se descortinem as veredas da Arcana Cœlestia, honorável guerreiro.



quarta-feira, junho 05, 2024

Ainda a propósito de OUT1: NOLI ME TANGERE...



Trata-se d'uma obra de tal modo impressionante y idiossincrática que não resisto a registrar mais algumas observações a propósito. 


- indagado anos mais tarde sobre o significado do título, Rivette declarou o seguinte: "Escolhi OUT em contraposição ao anglicismo 'In', então em voga na França, e que eu achava uma tolice. E como o filme tem uma estrutural serial, que poderia se desdobrar em vários episódios, acrescentei também o número 1." A resposta do cineasta demonstra a que ponto ele estava consciente do desafio que um filme como aquele representava, mesmo num contexto ainda plenamente receptivo às experimentações da Nouvelle Vague. É como frisei em minha resenha: Rivette decidiu levar às últimas e mais extremas consequências todo o universo estético, conceitual y espiritual da Nouvelle Vague, não apenas sem fazer qualquer tipo de concessão, mas indo muito além de tudo que fora proposto antes pelo movimento. Com OUT 1 ele dobra, triplica, quintuplica a aposta, traça a linha de demarcação definitiva: doravante somente os mais fiéis entre os fiéis o acompanharão.    

- O poder encantatório do verbo; o condão taumatúrgico, a energia mística da palavra enquanto tal; a autoconsciência progressiva no tocante aos procedimentos e recursos da linguagem, tal como Paul Valéry advogava. Tais são as grandes coordenadas do universo de OUT 1.

- De resto, volto a sublinhar: "cheguei a um estágio em minha trajetória como espectador y ouvinte em que a circunstância de 'gostar' ou não de um filme, uma peça de teatro, um disco está longe de ser o mais importante: importa antes o ASSOMBRO, o espanto, o pasmo, a infinita perplexidade." OUT 1 é se calhar o mais consumado exemplo desta disposição.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

Breve nota sobre um certo princípio e suas trágicas consequências...

 Alphonse van Worden - 1750 AD



Aqueles que se interessam verdadeiramente a sério pelo debate de ideias (e isto se aplica a qualquer área do conhecimento) devem ter em mente dois procedimentos basilares:


- a necessidade constante de investigar as origens, os fundamentos conceituais das doutrinas e sistemas de pensamento em voga na contemporaneidade;

- o imperativo tanto filosófico quanto ético de conhecer bem o pensamento de seus opositores.


Tendo isso em mente, estive a reler c/ muito proveito e prazer - afinal de contas, trata-se também d'um livro maravilhosamente bem escrito - o célebre ensaio ON LIBERTY (1859), do inglês John Stuart Mill, s/ dúvida um dos alicerces teóricos fundamentais do liberalismo.

Considerai, estimados irmãos d'armas, por exemplo, esta passagem, presente já no capítulo de abertura (I - INTRODUCTORY):


"The object of this Essay is to assert one very simple principle, as entitled to govern absolutely the dealings of society with the individual in the way of compulsion and control, whether the means used be physical force in the form of legal penalties, or the moral coercion of public opinion. That principle is, that the sole end for which mankind are warranted, individually or collectively, in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-protection. That the only purpose for which power can be rightfully exercised over any member of a civilised community, against his will, is to prevent harm to others. His own good, either physical or moral, is not a sufficient warrant. He cannot rightfully be compelled to do or forbear because it will be better for him to do so, because it will make him happier, because, in the opinions of others, to do so would be wise, or even right. (...) The only part of the conduct of any one, for which he is amenable to society, is that which concerns others. In the part which merely concerns himself, his independence is, of right, absolute. Over himself, over his own body and mind, the individual is sovereign."


Toda a lógica estruturante não só da ética anarcocapitalista, do ideário transumanista, mas também do identitarismo liberal de esquerda, da ideologia de gênero, as pautas do feminismo ("meu corpo, minhas regras"), do movimento LGBT etc., tudo isso já está plenamente presente em potência no excerto supracitado.

Não obstante, como eloquente prova do vertiginoso processo de decadência intelectual e moral vivido pela Humanidade nos últimos 200 anos, reparem como o próprio Mill estabelece inequívocos limites para o domínio de aplicação de seu próprio Princípio:


"It is, perhaps, hardly necessary to say that this doctrine is meant to apply only to human beings in the maturity of their faculties. We are not speaking of children, or of young persons below the age which the law may fix as that of manhood or womanhood. Those who are still in a state to require being taken care of by others, must be protected against their own actions as well as against external injury."


Atentai: It is, perhaps, hardly necessary to say, vale dizer, "é porventura desnecessário salientar"; penso ser outrossim desnecessário frisar que um autor como Mill julgaria absolutamente monstruosa, por exemplo, a hipótese d'uma criança ter o direito de optar por uma 'cirurgia de redesignação sexual'. E no entanto...

sexta-feira, março 29, 2024

Jacques Rivete - IV: OUT 1, um Filme TOTAL





"O filme engole tudo e finalmente se autodestrói" 

Jacques Rivette


"Treze homens imbuídos pelo mesmo sentimento, todos dotados de uma grande energia para serem fiéis à mesma ideia, muito prontos para cometerem traição, mesmo que seus interesses fossem opostos, muito profundamente políticos para dissimular as ligações sagradas que lhes unem, muito fortes para se colocarem acima de todas as leis, muito ousados para tudo empreender, e muito felizes para ter quase sempre sucesso em seus desígnios (...). Enfim, para que nada escape à sombria e misteriosa poesia desta história, estes treze homens continuam desconhecidos, ainda que todos tenham realizado as mais bizarras ideias que sugere à imaginação o poder atribuído aos Manfredo, aos Fausto, aos Melmoth; e todos hoje estão divididos, dispersados, ao menos."

Honoré de Balzac, na introdução à trilogia de romances Histoire des Treize (1833-39). A tradução é de Paulo Rónai. 


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Depois de CÉLINE ET JULIE VONT EN BATEAU, DUELLE (UNE QUARANTAINE), NOROÎT, MERRY-GO-ROUND e LE PONT DU NORD, creio que estou pronto para dizer uma ou duas coisas a propósito da Grand Œuvre, o filme-matriz, a magna epopeia, a Odisseia, a Comédie Humaine e a Recherche de Jacques Rivete (e em verdade a galáxia semiótica, o quase infinito labirinto de referências cruzadas y intersecções simbólicas do cineasta de facto abarca tudo isso y muito mais): 

OUT 1: NOLI ME TANGERE (1971). 

Muito embora convenientemente divididas em oito 'capítulos', são quase 13 horas de filme (existe uma versão alternativa de 'apenas' 4 horas chamada OUT1: SPECTRE, mas não falarei dela), resultando numa obra que sob múltiplos y profundos aspectos pertence a outro tempo, se calhar até mesmo a outra dimensão. Assistir hoje a um filme de Rivette - notadamente à sua obra máxima - significa, estou certo disto, ter a disposição e até mesmo a coragem de mergulhar profundamente numa realidade alternativa, de drasticamente se desconectar da própria dinâmica histérica, estéril y espasmódica de nosso tempo presente, tão avesso à perplexidade metafísica, à (anti)lógica do sonho e ao paradoxal destino dos magnetizadores do fogo dos deuses... c/ efeito, é percorrer as sendas de um universo paralelo, mesmo que somente por algumas horas. É, em suma, um ato... 'POLÍTICO', para usar um chavão em voga, mas que no contexto tem razão de ser. Nesse sentido, penso ser cabível uma advertência preliminar: os habituais detratores do cinema francês terão - com absoluta justiça - todos os motíveis possíveis e concebíveis para simplesmente execrar o filme. Pois em OUT 1 TODOS os vezos estilísticos, os tropos narrativos, os maneirismos, estereótipos y clichês que historicamente identificam a sétima arte nas terras gaulesas são levados às últimas y mais delirantemente extremas consequências. 

A quem se dirige, portanto, este catedralesco opvs rivettiano? Diria eu que substancialmente a cinco grupos de espectadores - que podem ou não se interseccionar:


- cultores de teorias da conspiração, sociedades secretas, seitas, ordens iniciáticas etc;  

- obecados por simetrias, paralelismos, correspondências, regularidades, padrões, coincidências; e, ao mesmo tempo, também por amor à simetria, a seu reflexo invertido: falhas, erros, anomalias, lacunas, panes;  

- amantes de enigmas, charadas, criptogramas, anagramas, lipogramas, palíndromos, alusões cifradas, paródias, paráfrases, colagens  etc. etc. etc. à guisa de jogos semióticos / metalinguísticos aplicados à literatura (e por extensão a qualquer outra arte), num arco que poderia ir de, digamos, Lewis Carrol a um autor contemporâneo como Thomas Moyniham, passando por Edwin Abbott, Macedonio Fernández, Borges, os autores do Grupo Oulipo, Milorad Pavic etc.; 

- apaixonados pelo teatro, sobretudo aqueles profissionalmente envolvidos com ele;

- aficcionados pelos universos literários de Balzac e/ou Proust.   

A crítica cinematográfica, quase sempre lamentável, costuma priorizar um sexto grupo: os inconsoláveis órfãos da contracultura, do naufrágio de 68. Mas é a meu ver d'uma associação preguiçosa, baseada em conexões meramente circunstanciais. 

Muito bem, este então seria o público-alvo, basicamente. Mas enfim, de que se trata o filme? Tentemos agora decifrar a esfinge. 


OUT 1 é antes de qualquer outra coisa uma  colossal, ciclópica mistificação; e aqui emprego tal epíteto da forma mais elogiosa que se possa imaginar, por incrível que pareça. Trata-se, portanto, d'uma grande impostura, uma meticulosamente concebida, minuciosamente lapidada y milimetricamente executada impostura. Pois que é toda conspiração senão uma farsa, um logro? E analogamente, toda sociedade secreta, seita, ordem iniciática, senão expedientes mais ou menos elaborados / argutos de engano y ilusão? E aqui não importam, acredito eu, as linhas de demarcação entre fantasia e realidade, sociedades secretas fictícias (no caso os Treize e os Dévorants dos romances de Balzac) e reais (os Compagnons du Devoir, algo como uma maçonaria 'nacional' criada em França no Medievo). E mais, significativa e substancialmente mais: que é a própria EXISTÊNCIA, ao fim e ao cabo, senão "a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing", como proverbialmente definiu o Bardo de Stratford-Upon-Avon? OUT 1 ilustra esta devastadora verdade de modo insofismável, categórico, definitivo: gestos e olhares furtivos; palavras sussurradas, plenas de mistério, medo, dúvida, perplexidade; movimentos febris, atos impensados, rompantes intempestivos, que podem levar até mesmo à morte; encontros, desencontros, reencontros; começos, recomeços, ciclos, desenlances... Para quê? Não se sabe; os personagens / atores também não sabem. E não hesito em afirmar: tampouco sabem os responsáveis pelo roteiro e pela direção, nomeadamente Rivette e sua colaboradora Suzanne Schiffman. E nem ninguém saberá. Jamais. Não há ordem redentora e 'tutto nel mondo è burla'. 

Mas esta é apenas a primeira de muitas, múltiplas camadas. OUT 1 também é um exaustivo, escrupoloso y assombrosamente metódico exercício de simetria, digno das melhores tradições francófonas do ostinato rigore valeryano. À exceção do episódio inicial, todos os demais obedecem essencialmente à mesma estrutura: temos na abertura um subtítulo que se refere respectivamente ao primeiro e último personagens que aparecem em cena naquele capítulo (De Lili à Thomas, De Thomas à Frédérique); um punhado de stills exibindo cenas do episódio anterior; uma sequência em P&B de um minuto recapitulando o desfecho do capítulo antecedente antes do novo episódio ter início. E que não se conclua precipitadamente que paralelismos y regularidades se restringem a esse plano por assim dizer mais 'epidérmico'. Pelo contrário: é curioso perceber como cada uma das partes de OUT 1 obedecem a uma dinâmica mais ou menos similar. Cenas y sequências de natureza semelhante tendem a se repetir especularmente - aliás é frequente o recurso a longos takes com emprego de imagens refletidas em espelhos - episódio após episódio, sempre com discretas, muito embora significativas variações ditadas pela evolução da narrativa, o que gera um contraditório y desconcertante efeito de estranhamento / reconhecimento. E da simetria emerge a assimetria: com muita sutileza e engenho, Rivette vai gradativamente acrescentando à matéria fílmica uma série de glitches visuais e sonoros - são diálogos reproduzidos em reverse, ficando assim incompreensíveis; fade-outs abruptos; shots repetidos aleatoriamente; imagens desfocadas deliberadamente etc. E qual seria o propósito? Demonstrar quão enganoso e ilusório é todo o arcabouço de simetria que nos foi tão cuidadosamente apresentado? Pode ser... Ou não.  

Ora passemos ao que caracterizei como "a galáxia semiótica, o quase infinito labirinto de referências cruzadas y intersecções simbólicas". Aqui Rivette está em seu elemento, e pode dar livre curso tanto à sua vasta erudição quanto à sua sempre surpreendente capacidade de estabelecer as mais inauditas conexões, interconexões, associações y alusões. Em OUT 1 o cineasta lança mão precipuamente de duas fontes textuais: a trilogia de romances HISTOIRE DES TREIZE de Balzac (concentrando-se mormente no FERRAGUS, CHÉF DES DEVORANTS) e na obra-prima do nonsense que é o poema proto-surrealista THE HUNTING OF THE SNARK (1876), de Lewis Carroll. É a mão do mestre, sem sombra de dúvidas: é simplesmente brilhante a maneira como Rivette insere as citações na enredo, liga os pontos y conexões e trabalha todo um vertiginoso jogo de possibilidades em termos de desdobramentos conceituais e referências cruzadas. É a nebulosa de um KAOS rigidamente organizado que se desdobra continuamente, agregando mais e mais dimensões. Tem-se, por exemplo, se não me engano nos capítulos 5 e 6, um par de memoráveis sequências onde os personagens peregrinam pelas estações de metrô de Paris em busca d'um colega que desapareceu misteriosamente. O modo como o mise-en-scéne é feito remete inequivocamente à Teoria da Derive / Errância situacionista, com suas elucubrações sobre os efeitos psíquicos que os espaços urbanos eventualmente poderiam exercer sobre seus habitantes, uma psicogeografia física, econômica e política da memória afetiva dos moradores das grandes metrópoles.      

Prosseguindo: OUT 1 é outrossim um panegírico, um hino em louvor, uma eloquente e passional declaração de amor ao teatro, sobretudo à complexa, labiríntica, tortuosa trama de relações artísticas y afetivas entre atores, diretores e encenadores. Em quase todos os capítulos do filme temos extensas, por vezes penosamente longas sequências - assim imagino, pelo menos, para quem não for do meio, ou não tiver, tal como eu, interesse didático no tópico - dedicadas a exercícios de improvisação teatral entre os elencos das duas montagens presentes no enredo - SETE CONTRA TEBAS e PROMETEU ACORRENTADO, ambas tragédias de Ésquilo. Para quem é do 'ramo', todavia, tais momentos podem ser instrutivos em vários níveis: a) uma espécie de mostruário de diferentes escolas / técnicas de interpretação teatral do século XX - Artaud, Meyerhold, Kazuo Ohno, Peter Brook, Grotowsky, Living Theatre, Fluxus, todos pedem passagem; b)  um fascinante tour de force em termos do que poderíamos chamar de 'metalinguagem dramatúrgica', isto é, atores interpretando atores precisamente no momento em que estão exercitando os fundamentos da arte da interpretação teatral enquanto... atuam; c) a discussão do teatro como metáfora / microcosmo por excelência da própria sociedade, sobretudo da mecânica das relações interpessoais.  

Por fim, o tributo aos universos literários de Balzac e Proust. No que tange ao autor da COMÉDIE HUMAINE, penso que se calhar são desnecessários comentários adicionais. Mas há que sublinhar que OUT 1 também é a Recherche proustiana de Rivette, especiamente em dois aspectos: a relação quase que simbiótica, de íntima, profunda, dir-se-ia até mesmo mítica y mística identificação, entre os personagens e a paisagem geográfica e sentimental de Paris, ou seja, o amálgama eminentemente proustiano entre matéria, consciência e memória; e ainda algo que certa feita escrevi a propósito do já citado Macedonio Fernández, mas que se aplica exemplarmente a Proust: uma apologética, uma ética, um modus vivendi e uma defesa da dignidade última da arte em relação à vida.    

Filme-matriz; filme-conspiração; filme-mistificação; filme-simetria; filme-metalinguagem; filme-enigma; filme-exercício. Assim é a monumental obra-prima de Jacques Rivette. NOLI ME TANGERE, a expressão latina presente no subtítulo de OUT 1, poderia ser traduzida como 'não me toques'. São as últimas palavras que Nosso Senhor Jesus Cristo teria dito a Maria Madalena, quando ela O reconhece após a ressurreição. Ao que parece, a intenção do cineasta era mandar um recado a produtores e exibidores: não ousem retalhar / mutilar meu filme. Eu diria que há também uma mensagem subliminar endereçada aos temerários exegetas: não tentem interpretá-lo. Faz sentido: o esforço que aqui levei a efeito, malgrado meritório, é de certa maneira fútil y supérfluo perante um filme verdadeiramente caleidoscópico e multidimensional, quase infinito, sob tantos aspectos. Um filme que por si só, é preciso que se diga com todas as letras, já bastaria para colocar seu realizador nos mais rarefeitos planos do Olimpo cinematográfico.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros




O peculiar cinema de Jacques Rivette - III

Alphonse van Worden - 1750 AD




MERRY-GO-ROUND (Jacques Rivette / 1981, 160m) foi um fracasso tanto de crítica quanto de público. E muito embora eu tenha até gostado bastante do filme, posso perfeitamente entender o porquê: trata-se d'uma obra profundamente... bem, o melhor adjetivo que encontro é o termo em inglês 'infuriating'. 

Pois em verdade vos digo: raríssimas vezes assisti a um filme de tal modo labiríntico, 'esotérico', praticamente inextricável.  Projeto de retomada do cineasta após o de certo modo traumático encerramento da tetralogia 'Scènes de la Vie Parallèle' (da qual Rivette só completaria os dois primeiros capítulos - DUELLE e NORÔIT), MERRY-GO-ROUND se apresenta como uma espécie de filme policial noir ambientado neste universo paralelo.  Só para os senhores terem uma ideia do que estamos falando, o caráter notoriamente sibilino, dir-se-ia até mesmo hermético, das tramas de clássicos do gênero como THE LADY FROM SHANGAI (Orson Welles / 1947) ou KISS ME DEADLY (Robert Aldrich / 1955), parece em cotejo c/ a obra de Rivette tão singelo y linear quanto o roteiro de uma comédia de Adam Sandler - s/ qq demérito para estas obras-primas do cinema americano, saliente-se. Exemplo disso, vale sublinhar, é a solução adotada por Rivette para a infeliz circunstância de Maria Schneider, talvez a personagem central do filme, ter abandonado as filmagens: empregar a atriz Hermine Karagheuz para substituí-la, s/ todavia fornecer ao espectador qualquer pista ou indício disto, tanto assim que nos créditos ela é simplesmente identificada como 'l'autre'. 

Com efeito, se você compreende a arte cinematográfica como um veículo criado para contar histórias c/ início, meio e fim, um filme como este pode se transformar numa experiência simplesmente excruciante, verdadeiramente insuportável.  Não obstante, para aqueles que concebem o cinema como um dispositivo catalisador de atmosferas, lanterna mágica capaz de conjurar paisagens oníricas, sondar as sendas do inconsciente y peregrinar pelos páramos da irrealidade, do mundo imaginário, este desconcertante filme s/ dúvida pode ser uma jornada das mais estimulantes.   

A mise-en-scéne e a estrutura narrativa de MERRY-GO-ROUND são essencialmente fragmentárias y erráticas, no limite da arbitrariedade aleatória; nesse sentido, os primeiros 25, 30 minutos do filme, relativamente lineares e bem concatenados, funcionam talvez como uma armadilha para espectadores incautos / ingênuos. Um duo formado por um contrabaixista e um clarinetista pontua de quando em quando a ação c/ interlúdios de free improvisation, e estranhamente (ou se calhar emblematicamente) este porventura seja o ponto focal mais constante, o eixo dramático de sustentação mais sólido que Rivette concede ao espectador, o que a meu ver resulta fascinante e particularmente hipnótico, a música como fio condutor da dramaturgia. 

No desfecho de MERRY-GO-ROUND as irmãs protagonistas saem de cena, enquanto o amante / namorado e a elusiva 'outra' trocam sorrisos misteriosos num promontório sombrio, após um exasperante jogo de fuga e perseguição que perdura ao longo de todo o filme.  Qual a conclusão, a última mensagem, a solução definitiva final para este caleidoscópio de enigmas? Nunca saberemos, e acredito que nem mesmo Jacques Rivette alguma vez soube. A impressão que se tem é a de um imenso quebra-cabeças, por certo sugestivo e belo, mas onde estão faltando numerosas peças. É algo que indubitavelmente tem o condão de irritar a esmagadora maioria das pessoas, mas que para mim sempre foi y será fonte de inesgotável fascínio, até mesmo obsessão.



sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Vargtimmen (1968) / Ingmar Bergman

 Alphonse van Worden - 1750 AD



A propósito do título, antes de mais nada.


VARGTIMMEN.

A 'Hora do Lobo'.

Uma arcana expressão nórdica para o horário que a maior parte dos grimoires medievais considera mais propício à celebração de pactos e invocação do... Diabo. Três horas da manhã, para ser mais exato.

E é precisamente o momento do dia em que o protagonista Johan Borg (magnificamente interpretado por Max von Sydow) se vê acossado / assaltado pelos espectros (imaginários?) de seu passado, ora convertidos numa legião de vampíricos avantesmas emergindo dos báratros abismais do inconsciente.

VARGTIMMEN (1968) é de certo modo um ponto fora da curva na trajetória de seu criador Ingmar Bergman. Trata-se essencialmente de um filme de horror. Um soturno y sombrio pesadelo gótico, não obstante carregado de humor negro y sarcasmo cruel - o que aliás corresponde ao universo estético que o cinesta sueco exalta neste filme: o fantasmagórico mundo do romantismo e do expressionismo alemães. C/ o acréscimo, vale dizer, de generosas doses de fantasia surrealista; aliás, se me permitem uma analogia extravagante, eu diria que o filme poderia ser descrito como a versão que um improvável Buñuel escandinavo eventualmente faria para o magnífico Vampyr (1932) de C.T. Dreyer.

Pois VARGTIMMEN é uma grande declaração de amor de Bergman ao que de mais augusto a arte germânica produziu, que ele aqui evoca através da delirante fábula gnóstica da Zauberflöte de Mozart; da magia onírica dos contos de Hoffmann em sua faceta mais noturna, inclusive recorrendo diretamente a dois célebres personagens do ficcionista prussiano - o arquivista Lindhorst e o maestro Kreisler; da pulsão de morte do expressionismo, com suas falanges de sombras espectrais, macabros duplos e marionetes em soirées alucinatórias (um aceno talvez ao mítico Schatten - Eine nächtliche Halluzination / 1920 , de Arthur Robison), seus sinistros espelhos e labirintos, admiravelmente reproduzidos pela fotografia de Sven Nyqvist.

Em VARGTIMMEN Bergman propõe ao espectador um mundo assombrado pelas 'emanações glaciais do além' de que falava Béla Balázs. É o incerto, instável y inefável universo do homem que já não vê, mas tem VISÕES. É, c/ efeito, o inquietante domínio da 'misteriosa agitação do inorgânico' dos românticos teutônicos, onde seres vivos e objetos estão em estado de animação suspensa, um mundo paralelo onde o indivíduo não tem mais acesso aos dados objetivos da Realidade, podendo tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes a partir de suas quimeras.

Wilhelm Worringer falava sobre a presença d'um denso véu entre o homem nórdico e a Natureza. Eu diria que há um fosso, e não somente entre o homem nórdico e Natureza, mas entre toda a Humanidade e a própria Realidade como um todo. E este fosso está aumentando, inexoravelmente, dia após dia, ano após ano, geração após geração. E talvez já fosse intransponível à época do filme. VARGTIMMEN (que se calhar se converteu em meu Bergman predileto c/ o passar do tempo) é uma terrificante visão do fosso, a partir do fosso e sobre o fosso. O artista, antena da raça que é, proclama o veredito: não há escapatória. Que Deus se apiede de nós.

*

PS

Aos amigos y confrades que pretendem reivindicar qualidades inadvertidas para o que se poderia chamar de 'cinema de entretenimento', sobretudo em cotejo c/ o que por outro lado poderíamos designar como 'cinema de arte', eu replicaria o seguinte:

Tais qualidades não são apenas inadveridas - o problema é que quase sempre elas simplesmente INEXISTEM mesmo.

De resto, o legado de mestres como Bergman, Welles, Dreyer, Rivette, Eisenstein ou Murnau não pode ser subestimado. Certamente pode ser criticado, reavalidado, redimensionado, relativizado, mas nunca subestimado, o que inevitavelmente acontece quando elevamos criadores e obras menores ao mesmo plano de excelência. E o cinema não merece isso, assim como a literatura ou a música.



terça-feira, agosto 22, 2023

A propósito de PARIS, TEXAS (1984 / Wim Wenders)



- O texto a seguir assumirá o formato d’um conjunto de notas esparsas, já que há certas obras que, creio eu, jamais conseguirei resenhar de forma sistemática, convencional.


- Mamãe costumava descrever PARIS, TEXAS (Wim Wenders / 1984) do seguinte modo: ‘fdp débil mental ferra com a vida de todo mundo; depois some do mapa; então do nada reaparece; faz a maior cagada do mundo novamente; e some mais uma vez’. - Uma sinopse jocosa, um review for dummies, digamos assim. Concebida, não obstante, por alguém que certamente estava longe de ser uma pessoa tola ou ignorante; antes pelo contrário, aliás: era uma cinéfila cultivada, de gostos refinados, apreciadora de rematados artífices da sétima arte como R. Bresson e C.T. Dreyer. Ao que acrescento: a despeito do que suas palavras à partida possam transparecer, ela gostou do filme. Muito até. Bem mais do que desejaria de ter gostado, diga-se de passagem. Pois em verdade PARIS, TEXAS pertence àquela seleta plêiade de obras de arte capazes de arrojar o espectador / ouvinte / leitor etc. no olho do furacão, num avassalador tsunami de emoções, sensações, y recordações. 


- Também eu fui fortemente atingido, golpeado em cheio em cheio no plexo solar da alma por esta obra devastadora, não somente o ponto culminante na trajetória de seu diretor mas também se calhar o filme mais emblemático em toda a década de 80, e até mesmo uma das grandes obras-primas da história do Cinema. Lembro-me como se fosse hoje: numa época em que abençoadamente não se era enxotado da sala de projeção após o término da sessão, permaneci estático / extático / mesmerizado em minha poltrona durante nada menos que QUATRO sessões consecutivas, e isso em se tratando d'um filme com quase duas horas e meia de projeção. Produto d'um casamento essencialmente disfuncional, filho d'um pai excêntrico / esquisitão (muito embora sob outros aspectos y circunstâncias), não é difícil imaginar porque PARIS, TEXAS me comoveu tão profundamente (e agora os srs. naturalmente compreendem porque outrossim sensibilizou minha mãe - que inclusive sabiamente não quis assisti-lo à época). De maneira que muito embora seja desde sempre um de meus filmes favoritos, é obra a que retornei tão somente duas vezes desde então: uma vez lá por meados dos anos 90 e agora neste fim de semana último. Há que ter cautela com estas altíssimas voltagens de 'vastas emoções e pensamentos imperfeitos' (Rubem Fonseca)... 


- Recorrendo cá a um surrado clichê da exegese crítica, PARIS, TEXAS é uma obra que opera em vários níveis, se desdobra em várias camadas. Dialogando morfológica, sintática y semanticamente com a avgvsta tradição da Hollywood Renaissance (filmes como THE SWIMMER, MIDNIGHT COWBOY, FIVE EASY PIECES, A WOMAN UNDER THE INFLUENCE etc.), Wenders (re)visita / ressignifica gêneros consagrados do panteão cinematográfico americano, reconfigurando-os sob uma perspectiva espiritual y estética que eventualmente só um estrangeiro poderia ser capaz de fazer. Pois essa é uma das claves fundamentais de PARIS, TEXAS: tal como tantas vezes sói acontecer na história de Hollywood, temos um forasteiro (que já foi Fritz Lang, Jean Renoir ou Billy Wilder) criando um complexo y imersivo painel da alma profunda da America. Assim sendo, o filme é, por exemplo, tanto um road movie (magnificamente registrado pela fotografia de Robby Müller, "intensa, radiante, ampla, límpida, altaneira, generosa, espraiando-se por desertos majestosos, desfiladeiros profundos e crepúsculos incandescentes", ecoando aqui o que assinalei a propósito de outro clássico da vertente - EASY RIDER) quanto western existencialista nas inclementes pradarias da pós-modernidade ( não me deixa mentir o inolvidável desfecho, com Travis Henderson partindo solitário em direção às terras sombrias do esquecimento de si mesmo, após ter levado a cabo sua derradeira missão), bem como um drama psicológico de finíssima carpintaria dramatúrgica (Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski sobretudo, mas também Dean Stockwell, Aurore Clément e ainda o menino Hunter Carson, todos eles nos brindam com interpretações definitivas, mergulhos abissais nos báratros insondáveis da existência humana, Twilight Zone de obsessões, sonhos, temores e desejos). 


- Meditação sobre a traiçoeira dialética danação / redenção; sutil e sensível 'estudo de caso' sobre as relações familiares, radiografando o irresgatável naufrágio de um casamento, bem como as tão delicadas e movediças linhas de demarcação entre os laços viscerais que ligam um filho a seus pais biológicos, por mais problemáticos que eles possam ser, e por outro lado a ligação sempre d'algum modo 'subsidiária' que se estabelece com os pais de criação, por melhores que eles sejam; retrato a um só tempo poético e cruel da alienação, solidão y sentimento de crescente  dissociação que caracterizam a vida na metrópole contemporânea (a esse respeito merece especial destaque a fortíssima sequência do 'pregador maldito' anunciando o fim do mundo), Wim Wenders nos oferece, pois, uma ampla, multifária gama de itinerários e possibilidades. 


- Com suas paisagens monumentais; suas infindáveis autoestradas atravessando o deserto e a alma; seus labirintos de viadutos, avenidas, malls y outdoors refulgindo sob a espectral fantasmagoria das luzes de neon, um filme como PARIS, TEXAS exibe de forma particularmente dramática e efetiva um impressionante paradoxo: quão perversamente sedutora pode ser a mitologia larger than life de uma sociedade cada vez mais caótica ("Moloch whose skyscrapers stand in the long streets like endless Jehovahs! Moloch whose factories dream and croak in the fog! Moloch whose smoke-stacks and antennae crown the cities!" - Allen Ginsberg) e desesperada ("America why are your libraries full of tears?" - idem), mas ainda assim pulsando vertiginosamente com a esplêndida e torrencial energia de mil supernovas ("Strong, ample, fair, enduring, capable, rich (...) Chair’d in the adamant of Time" - Walt Whitman). 


- Por fim, seria um sacrilégio falar sobre PARIS, TEXAS sem mencionar sua absolutamente antológica trilha sonora. A cargo do guitarrista Ry Cooder, trata-se d'uma navalha na carne aural, um verdadeiro réquiem em forma de delta blues, country e tex-mex music.

E é isso. 



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros


segunda-feira, maio 29, 2023

Brevíssima nota sobre a grandeza das nações


Alphonse van Worden - 1750 AD



Li o seguinte comentário algures na bravia selva internética: 

"Roma não foi amada por ser grande, foi grande por ter sido amada"

Francamente, isto é um disparate, não faz o menor sentido. Trata-se d'uma chorumela sentimental, uma mera patacoada romântica.

Roma foi grande por ter sido uma sociedade organizada, bem governada, disciplinada, erigida sob a égide das grandes virtudes cívicas  - AVCTORITAS, GRAVITAS, IVSTITIA, DIGNITAS, PIETAS, SEVERITAS, VERITAS, FIRMITAS, INDVSTRIA, FRVGALITAS etc. -, predicadas por sábios e probos varões como os juristas Papianus e Ulpianus, o imperador Marcus Aurelius etc. Tais foram os alicerces da magnificência, da grandeza de Roma. E é tão somente a partir do pertinaz cultivo de tais virtudes que nasce o verdadeiro patriotismo, a energia vital que constrói impérios e conquista continentes, não essa patuscada de pacóvios, esse nacionalismo de pacotilha, de arquibancada de estádio de futebol, bloco de Carnaval ou comício / manifestação de demagogo mequetrefe.  

Enquanto não nos excedermos no exercício das grandes virtudes, jamais construiremos uma pátria digna de ser verdadeiramente amada. Urge começarmos por nós mesmos, e o princípio está no reconhecimento franco, sincero, até mesmo brutal, de nossos vícios e fraquezas. De nada adiantará dourar a pílula e fazer o elogio fátuo de quimeras e devaneios.