quarta-feira, abril 23, 2025

Vox Populi (1883) - Villiers de L'Isle-Adam (tradução minha)

Alphonse van Worden - 1750 AD





Preclaros Irmãos d'armas, saudações. 

Encontrei hoje casualmente em meus arquivos esta tradução - um tanto quanto livre e improvisada, mas nem por isso descuidada - pronta já há alguns anos. Trata-se d'um  conto / poema em prosa do brilhante escritor francês Avgvste Villiers de L'Isle-Adam, pouco conhecido entre nós, já que nosso gosto médio sempre foi mais afeito à sensaboria realista / naturalista que às "aspirações desenfreadas pelo Infinito" (como dizia Baudelaire) da literatura fantástica de inspiração simbolista ou decadentista. 

Neste relato em particular Villiers de L'Isle-Adam demonstra que seu talento e sensibilidade se estendem generosamente a esferas em geral pouco associadas a seu nome: crítica social, filosofia moral, alegoria teológica. 'Entendendores entenderão' porque cargas d'água julguei por bem postá-la justo agora, o que se oculta nas entrelinhas, o texto, o contexto & o subtexto. 

Boa leitura a todos.


*


VOX POPULI  (1883)

Jean-Marie-Mathias-Philippe-Auguste Villiers de l'Isle-Adam


Para o sr. Leconte de Lisle


“O soldado prussiano prepara seu café num candeeiro apagado”

Sargento Hoff.


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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Desde essa visão já lá se foram doze anos de vicissitudes. Um sol de verão atirava suas longas setas douradas sobre os telhados e cúpulas da velha capital. Miríades de janelas devolviam centelhas cintilantes; o povo, imerso numa luz poeirenta, apinhava-se nas ruas para ver o exército passar.

Sentado em frente ao gradil do átrio da Notre-Dame, sobre um banco de madeira — os joelhos cruzados sob andrajos negros — o Mendigo centenário, decano da Miséria de Paris, rosto enlutado e tez cinérea, rugas cor de terra sulcando-lhe a pele, com as mãos postas sob a tabuleta que chancelava oficialmente sua cegueira, oferecia sua figura espectral ao Te Deum do evento em torno.

Toda essa gente — não eram eles, afinal, seus próximos? Os passantes em êxtase — não seriam seus irmãos? Decerto: a raça humana! De resto, esse inquilino do soberano portal não era de todo desprovido de bens: o Estado lhe concedia o apanágio de ser cego.

Detentor desse galardão e da respeitabilidade inerente àquele lugar de esmolas garantidas que oficialmente ocupava, possuindo até mesmo a condição de eleitor — era nosso igual… a não ser pela... LUZ.

E esse homem, espécie de retardatário entre os vivos, murmurava de tempos em tempos um queixume monocórdio — sílaba por sílaba — a expressão profunda de toda a sua existência:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

À sua volta, sob as tonitruantes vibrações vindas do campanário — lá fora, além da muralha escura dos seus olhos — o alvoroço da cavalaria pisoteando o solo, e, em ondas, o toque dos clarins, as aclamações da multidão, misturadas às salvas dos Veteranos, às altivas ordens de comando, ao rumor do aço, ao trovejar dos tambores que marcavam o passo de infindáveis desfiles de infantaria — toda uma ruidosa glória lhe chegava! Seus agudos ouvidos captavam até mesmo a flutuação dos estandartes, com suas franjas pesadas perpassando as couraças. 

Milhares de relâmpagos de sensações – pressentidas e nebulosas – eram evocadas na mente daquele velho prisioneiro da escuridão! Ele adivinhava a febre que incendiava os corações e mentes da cidade.

E o povo, como de costume hipnotizado pela aura que envolve a Audácia e a Fortuna, bradava em uníssono a divisa da ocasião: 

“Viva o Imperador!”

Todavia, entre os silêncios dessa tempestade triunfal, uma voz desgarrada se elevava do lado da grade mística. O ancião, a nuca reclinada contra o ferro das barras, girando as pupilas mortas em direção aos céus - esquecido por esse povo cujo verdadeiro anseio ele parecia sozinho encarnar, o anseio oculto sob os ‘hurrahs!’, o anseio secreto e pessoal - salmodiava, como fatídico intercessor, sua frase ora pejada de mistérios: 

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Eis que dez anos se foram desde o sol daquela celebração! Os mesmos ruídos, as mesmas vozes, a mesma fumaça! Uma surdina, não obstante, moderava então a azáfama da euforia popular. Uma sombra saturava os olhares. As salvas convencionais do palanque do Pritaneu se mesclavam, desta vez, com os fragores distantes das baterias de nossos fortes. E, aguçando os ouvidos, a multidão já tentava discernir, no eco, a resposta dos canhões inimigos que se avizinhavam.

Dirigindo a todos muitos sorrisos, o governador passava conduzido pelo trote compassado de seu elegante cavalo. O povo, apaziguado por aquela confiança que uma aparência irrepreensível sempre lhe inspira, saudava a aparição daquele soldado intercalando aplausos marciais e cânticos patrióticos. 

Mas os termos da saudação d’outrora haviam se modificado: aturdida, a massa proferia a divisa do momento: 

“Viva a República!”

E logo ali, ao pé do sublime umbral, ainda se distinguia a solitária voz de Lázaro. O porta-voz da consciência popular oculta não alterava, ele mesmo, a rigidez de sua constante demanda.

Alma sincera dos festejos, erguendo aos céus seus olhos apagados, exclamava, entre silêncios, com um tom de resignada constatação:

“Tende piedade de um pobre cego, por eu vos suplico!”

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Grande parada nos Champs-Élysées, naquele dia!

Então foram nove os anos de sofrimento suportados desde aquele sol turvo!

Oh! O mesmo estrépito! Os mesmos estrondos d’armas! Os mesmos relinchos!  Mais discretos, contudo, que no ano anterior;  mas ainda assim estridentes.

“Viva a Comuna!”, vociferava o povo, ao sabor do vento.

E a voz do sempiterno Eleito do Infortúnio reiterava, em seu espaço sagrado, seu estribilho retificador do único pensamento daquele povo. Balançando a cabeça, gemia nas sombras:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

E, duas luas depois, quando, ao som das derradeiras badaladas do sino do sino, o Generalíssimo das forças regulares do Estado passava em revista seus duzentos mil fuzis – ai de nós! – ainda fumegantes da trágica guerra civil, o povo, apavorado, urrava, contemplando ao longe os edifícios em chamas:

“Viva o Marechal!”

E embaixo, emergindo do recinto salubre, a Voz imutável — a voz do veterano da Miséria humana — repetia sua imprecação maquinalmente dolorosa e impiedosa:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”

E desde então, de ano em ano, de revista em revista, de alarido em alarido, fosse qual fosse o nome lançado ao acaso pelo povo em seus vivas, aqueles que escutam atentamente os rumores da terra sempre distinguiram, no auge das clamorosas proclamações revolucionárias e das festas belicosas que as sucedem, a Voz remota, a Voz verdadeira, a Voz íntima do terrível Mendigo simbólico — o Vigia noturno que bradava a hora exata do Povo — a incorruptível sentinela da consciência dos cidadãos, aquele que restitui integralmente a prece oculta da Multidão e condensa seu suspiro.

Sumo Pontífice implacável da Fraternidade, esse Titular autorizado da cegueira física jamais cessou de implorar, como mediador involuntário, a caridade divina para seus irmãos em consciência.

E quando o Povo, ébrio de fanfarras, sinos e artilharia, turbado por esses arroubos fátuos, tenta em vão, sob quaisquer termos falsamente entusiásticos, ocultar de si mesmo seu verdadeiro desígnio, o Mendigo, voltado para o Céu, com os braços erguidos, tateando em meio às densas trevas que o envolvem, ergue-se no limiar eterno da Igreja, e com uma voz cada vez mais plangente, mas que parece alcançar além das estrelas, continua a manifestar sua inexorabilidade de profeta:

“Tende piedade de um pobre cego, eu vos suplico!”



sexta-feira, março 28, 2025

Da série 'reflexões d'uma época de crise'




Nunca entendi, c/ toda pureza d'alma, porque as pessoas resistem tanto ao processo de zombieficação; ora, deve ser muito bom virar zombie, convenhamos.


Senão vejamos:


I - você fica livre de qualquer prurido ou convenção social; ademais, é um modo de vida relativamente simples e prático: tudo que você precisa fazer é sair matando e comendo;

II - não há preconceito de qualquer natureza entre os zombies, seja de cor, idade, gênero sexual, condição social ou qualquer outro tipo: todos são igualmente aceitos e bem acolhidos na comunidade zombie;

III - consequentemente, podemos sem hesitação concluir que o processo de zombieficação abole peremptoriamente toda e qualquer distinção de classe, pelo que se converte, portanto, na única fórmula eficaz até hoje conhecida de se criar uma sociedade legitimamente igualitária;

IV - há, portanto, um genuíno, louvável sentido de vida comunitária entre os zombies. Reparem que jamais encontramos um zombie sozinho, eles sempre agem em conjunto, de forma coordenada e harmoniosa, consoante o seguinte princípio: onde come um zombie, comem todos;

V - e por fim, last but not least, a zombieficação constitui o túmulo definitivo de todo o orgulho, de toda a vaidade, arrogância e presunção, o que sem dúvida constitui um passo de suma importância para a edificação do espírito e elevação da alma.



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

quinta-feira, fevereiro 20, 2025

In Praise of the FAERIE QVEENE

Alphonse van Worden - 1750 AD




Se há um autor que não me canso de visitar y revisitar, este é sir Edmund Spenser, sobretudo em se tratando de seu monumental FAERIE QVEENE, magnífica, incomparável e transcendente catedral em versos, onde em síntese magistral se amalgamam o ciclo arturiano; a poesia épica de Virgílio; a engenharia lírica petrarquiana; a exaltação patriótica; o fervor teológico; a arte a serviço da edificação moral dos pósteros. 

Ler o FAERIE QVEENE é mergulhar na própria substância de que são entretecidos os sonhos y as mitologias; é peregrinar por sibilinas sendas, entre vales sombrios e fúlgidas planícies, c/ seus portentosos castelos e ominosas masmorras; entre miríades de dragões, salamandras, ogros, trolls, elfos, quimeras, gigantes, ciclopes, bruxos y feiticeiras, bem como entre audazes cavaleiros andantes e excelsas donzelas, toda uma vertiginosa miríade de lendas y narrativas. Com efeito, trata-se indubitavelmente do píncaro, a grande obra-prima em toda a história da literatura fantástica, o mirífico fanal onde Tolkien e tantos y tantos outros generosamente beberam. 

Como se não bastara, ao contrário do que se poderia pensar, em termos estilísticos é Spenser, e não Shakespeare, o mais influente poeta da literatura inglesa, o que fica patente nas obras de autores como Milton, Pope, Blake, Wordsworth, Coleridge, Shelley, Keats, Tennyson etc.

Por fim, deixo vossas senhorias c/ um dos belíssimos sonetos monostróficos que constam do proêmio da obra. 



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A Vision vpon this conceipt of the Faery Queene


ME thought I saw the graue where Laura lay

Within that Temple, where the vestall flame

Was wont to burne, and passing by that way,

To see that buried dust of liuing fame,

Whose tombe faire loue, and fairer vertue kept,

All suddenly I saw the Faery Queene:

At whose approch the soule of Petrarke wept,

And from thenceforth those graces were not seene.

For they this Queene attended, in whose steed

Obliuion laid him downe on Lauras herse:

Hereat the hardest stones were seene to bleed,

And grones of buried ghostes the heuens did perse.

Where Homers spright did tremble all for griefe,

And curst th'accesse of that celestiall theife






quarta-feira, fevereiro 19, 2025

Breve nota a propósito da weird fiction de William Hope Hodgson


 

Muito embora nem sempre acerte o alvo (suas observações sobre E.T.A Hoffmann não poderiam ser mais equivocadas), não há como negar que SUPERNATURAL HORROR IN LITERATURE (1927), o célebre ensaio de crítica literária de autoria de H. P. Lovecraft, é quase sempre um guia seguro para o gênero. 

 É o caso da novela THE HOUSE ON THE BORDERLAND (1908), do escritor inglês William Hope Hodgson. Lovecraft argumenta que a obra seria um "clássico de primeira categoria" caso não padecesse de alguns clichês sentimentais; aliás, segundo o ficcionista norte-americano, este seria o grande defeito de Hodgson, sobretudo em seu romance de maior fôlego, THE NIGHT LAND (1912 / pretendo ler este ano). 

Pois ouso discordar do excelso autor de THE CALL OF CTHULHU. Pelo menos em se tratando da obra em questão, o componente romântico a meu ver funciona como mais uma faceta na odisseia lisérgico-espacial vivida (sonhada?) pelo protoganista, mais uma peça neste enigmático quebra-cabeças psicofísico.   

THE HOUSE ON THE BORDERLAND parece-me ser um dos primeiros exemplos do que se poderia denominar de 'horror cósmico', vale dizer, a fusão entre a literatura de horror e a então nascente ficção científica, que mais tarde seria celebrizada por autores como o próprio Lovecraft, Lord Dunsany, Clark Ashton Smith, Robert W. Chambers etc. Assim sendo, ao conceber uma trama onde o elemento de terror claustrofóbico e paranoide se expande através de visões monumentais (e em última instância apocalípticas) de eventos em escala cósmica, Hodgson sem dúvida rompe c/ convenções e tropos literários estabelecidos e contribui decisivamente para a criação de um novo paradigma.  

Há ainda um caráter até mesmo 'psicodélico' em diversas passagens do texto. As descrições de fenômenos astronômicos, as viagens no seio do espaço-tempo, o colapso ao fim e ao cabo do Universo conhecido, tudo isso conjura uma atmosfera de alucinatório, feérico e vertiginoso delírio, a experiência do horror sagrado perante tudo aquilo que inconcebivelmente arcano, inefável y insondável, a sensação de 'Space is Deep' tão presente nas melhores narrativas lovecraftianas ou em filmes como 2001: A SPACE ODYSSEY e SOLARIS

Ressalte-se ainda um traço fascinante, que aproxima THE HOUSE ON THE BORDERLAND do que se poderia chamar de modernidade literária: o labiríntico interplay entre Fantasia e Realidade. A mansão em ruínas, situada num recanto hostil e remoto do countryside irlandês, funciona como um portal (meta)físico entre a Terra e dimensões / universos paralelos, além de toda imaginação. Estamos, portanto, num terreno que de certo modo já tangencia autores como Borges, Buzzatti ou Calvino. 

Todavia, a conexão mais evidente e direta é de facto com a ficção lovecraftiana, se calhar sobretudo no que diz respeito ao sentimento de crescentes desamparo, solidão e pavor do homem que constata sua inanidade e insignificância perante ALGO que está muito além de sua compreensão. Em Hodgson já não há monstros e/ou criaturas sobrenaturais de corte tradicional, mas sim forças inomináveis, deidades abissais que desafiam inexoravelmente sua sanidade e até mesmo seu senso de realidade.  

THE HOUSE ON THE BORDERLAND merece, enfim, todos os encômios.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros