quinta-feira, maio 01, 2008

Notas de reflexão crítica XIII - a propósito da autodissolução do Estado numa sociedade comunista

Alphonse van Worden - 1750 AD






- Não há, em todo o multitudinário e polimórfico arco conceitual de indagações suscitadas pela reflexão marxista, problema mais complexo e enigmático que o da autodissolução do Estado socialista no seio de uma sociedade comunista autogestionária; trata-se, com efeito, de um obstáculo até hoje jamais superado por todas as experiências socialistas da História.

- É mister assinalar, já à partida, que a construção do comunismo fatalmente demandará um esforço transformativo global, sistemático, contínuo e progressivo, exigindo pleno e incontrastável envolvimento do conjunto da sociedade: sangue, suor, músculos, nervos, inteligência, tudo convergindo monoliticamente em prol do objetivo supremo; ora, claro está que um processo de tal envergadura jamais poderá admitir a alternância de poder, já que não pode ser eventualmente interrompido, mesmo que em caráter temporário, por um projeto político antagônico, ou mesmo meramente divergente. Destarte, ao contemplarmos as eventuais possibilidades de edificação do comunismo, não podem sob hipótese alguma advogar a alternância de poder, sob pena de incorrermos em flagrante non sequitur.

- O cerne da questão radica, portanto, precisamente no críptico processo adrede aludido, ou seja, a autodissolução do Estado no seio duma sociedade comunista autogestionária. Tal dinâmica historicamente tem se revelado o grande 'Calcanhar de Aquiles' do movimento comunista, a essência de sua contradição, quiçá inextricável: a partir do momento em que o Estado fatal e inexoravelmente se hipertrofia, de modo a levar a efeito as tarefas precípuas do poder revolucionário (a liquidação do inimigo de classe, a reestruturação político-econômica de toda a administração pública, a reforma da educação e da cultura, mormente), como dar início à segunda fase do processo, isto é, o movimento de engenharia social reversa que levaria o Estado a se dissolver no seio da sociedade revolucionária que ele mesmo deveria gerar? Em outras palavras, e de forma mais concisa: não se conhece, até hoje, uma única experiência de concentração de poder nas mãos do Estado cujo desenlace tenha sido o desaparecimento gradual do mesmo no seio de uma sociedade sem classes, pois a partir do momento em que o Estado inevitavelmente se agiganta, aqueles que estão-lhe à testa passam a desfrutar de toda sorte de poderes discricionários, privilégios, vantagens, vaidades e honrarias. Assim, como conceber esses mesmos setores coordenando o movimento que acarretará a perda de todo o poder que granjearam?

- Tendo em vista que ninguém jamais presenciou a dissolução voluntária de um Estado em toda a História humana., é-nos possível sustentar que um determinado aparado estatal eventualmente poderia entrar em colapso em virtude de um desastre militar, de um processo revolucionário (que, por sua vez, instaurará um novo Estado) ou de uma catástrofe natural, mas nunca por um movimento coletivo, voluntário e intrínseco de auto-extinção.

- A única hipótese que poderíamos descrever, ao menos teoricamente, como algo verossímil seria, com efeito, evolução de um movimento autogestionário exercendo paulatina e contínua pressão centrípeta contra os abusos discricionários do Estado, isto é, limitando ao máximo os efeitos da ação estatal centralizada; entretanto, é mister assinalar, contudo, que tal cenário ainda não se materializou, mesmo que parcialmente, em nenhum processo de transição socialista em caráter nacional, mas tão somente como fenômeno local e de duração efêmera (o exemplo mais notável é, talvez, a Catalunha entre 1935 / 36).

- Há ainda que ter em mente outra questão de grande importância: as experiências de implantação do socialismo nunca lograram atingir um caráter global, tendo sido obrigadas a enfrentar, em maior ou menor escala, a pressão política, econômica e militar de um entorno que lhes era fundamentalmente hostil. Devemos ainda ressaltar, a esse respeito, que o processo de criação das repúblicas populares européias nos anos 40 e 50 evolui sob a ominosa égide da ruína material provocada pela II Guerra Mundial, bem como d'um sistema socialista já degradado pelo desvio totalitário stalinista, e ainda pelos crescentes problemas econômicos desencadeados pelo planejamento central. Destarte, o que Lenin e Trotsky de certa visualizavam e almejavam entre 1918 e 1920, isto é, a formação de uma espécie de 'Comunidade de Estados Socialistas Europeus' no esteio do eventual triunfo das revoluções alemã, húngara, polonesa e austríaca, realizava-se como farsa caricatural nos anos 50 sob a égide de uma URSS já comprometida por inúmeras contradições e vicissitudes.

- Isto posto, não nos parece desarrazoado afirmar que o advento do comunismo haverá de ser um processo global, ou então jamais poderá realizar-se; nisto radica, acima de tudo, a grande dificuldade existente para o sucesso de tão titânica empreitada: como imaginar um processo revolucionário em escala mundial, abrangendo as economias-chave do planeta? Parece-nos sumamente difícil que isto possa vir a suceder, salvo como epifenômeno d'uma crise sistêmica de inaudita gravidade.

Clear the way for the Prophets of Rage!




"Hip-hop is the CNN of Black America" - Carlton Douglas Ridenhour

A célebre assertiva cunhada por Ridenhour (a.k.a Chuck D), principal rapper do Public Enemy, sintetiza à perfeição o significado mais profundo do hip hop e da rap music para a América Negra: mais do que simplesmente um gênero musical, ou uma manifestação de street culture, o hip hop (ao menos em sua fase áurea) foi o grande veículo de conscientização, tanto política quanto existencial, para milhões de jovens negros nos EUA. Através de um suporte musical tecnicamente simples, mas de grande complexidade estética (ao facultar a incorporação de elementos sonoros e conceituais das mais diversas fontes), o hip hop verbalizou as angústias, frustrações, anseios, reivindicações e sonhos de uma vasta parcela da sociedade norte-americana. Sua importância, destarte, transcende a esfera musical, afirmando-se como fenômeno de primeira grandeza não apenas no âmbito da cultura pop, mas também da própria história do negro norte-americano.

Isto posto, a importância do Public Enemy para o hip hop é incontestável, sob qualquer ponto de vista que se possa aventar. Em termos musicais, o grupo (com a providencial colaboração de sua célebre equipe de produtores, a Bomb Squad) guindou o gênero a seu state of the art, transformando o que antes era um formato relativamente esquemático e espartano num caleidoscópico maremoto de sons e texturas; no que se refere à parte lírica, de fundamental relevância no universo hip hop, Chuck D afirma-se como o melhor letrista do gênero, convertendo o característico arsenal de alusões, assonâncias e aliterações do rap em letal metralhadora giratória a serviço das causas mais prementes da América Negra; e, por fim, no que tange o inequívoco caráter político do gênero, a banda sempre se notabilizou por sua coragem e desassombro, jamais fugindo de qualquer controvérsia.

It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, segundo álbum na carreira do PE, é a meu juízo não apenas sua grande obra-prima, mas também o melhor álbum da história do gênero (tendo em vista que o genial Paul's Boutique, dos Beastie Boys, a meu ver envereda por caminhos um tanto quanto distintos), e até mesmo um dos melhores discos de todos os tempos overall. Há que se ressaltar, em primeiríssimo lugar, o estratosférico salto qualitativo em relação a estréia do grupo (Yo! Bum Rush the Show - 1987), um excelente álbum, mas que ainda se pautava pelos cânones tradicionais do estilo; It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, pelo contrário, explode com a energia de mil supernovas, criando uma titânica argamassa sonora, um verdadeiro rolo compressor de samples, efeitos eletrônicos alucinantes, ritmos avassaladores e vocais tonitruantes; não seria, aliás, nenhum exagero afirmar que o efeito obtido, tangenciando a musique concrète, transfigura a mesma atmosfera brutal e opressiva do rock industrial em seus aspectos mais inovadores, o que confere ao disco uma atmosfera decididamente avant garde. O encadeamento entre beats, vocais, samples, scratches, efeitos sonoros, surpreendentemente orgânico e coeso (em tempo: vale também conferir o álbum seguinte, Fear of a Black Planet - 1989, ainda mais impressionante a esse respeito), propicia ao ouvinte a sensação de estar escutando uma espécie de sinfonia do caos, onde cada faixa é uma espécie de 'mini-movimento' que completa o anterior e prepara o próximo.

Conforme acabo de salientar, trata-se de um disco tão perfeitamente orgânico e coerente que destacar suas melhores faixas seria quiçá um mister supérfluo e improfícuo; mesmo assim, creio ser necessário sublinhar a excelência intrínseca de ao menos 4 petardos: Bring The Noise, com seu hipnótico entrelaçamento de scratches em moto contínuo e frenéticas agulhadas de saxofone; Terminator X to the Edge of Panic, grande showroom para o mitológico DJ do grupo, numa exibição de terrorismo industrialista no limite da psicose sônica; She Watch Channel Zero?!, envenenada pelo poderoso riff do clássico thrash metal Angel of Death (Slayer), estabelece o melhor crossover rap / metal da galáxia; e Black Steel in the Hour of Chaos, aterrador relato a propósito de um insurreição de detentos, hipnotiza com sua obsedante linha de piano e os trovejantes scratches em assimétrico tiroteio contrapontístico.

Enfim, confrades: clear the way for the Prophets of Rage!







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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

domingo, abril 13, 2008

Paixão Revolucionária, Mito e Mística

*O artigo que se segue, originalmente publicado neste espaço a 02/07/06, foi objeto d'algumas ligeiras malgrado significativas alterações, de maneira que julgamos por não apenas editá-lo, mas sim republicá-lo.


Alphonse van Worden - 1750 AD


"O mito move o homem na história. Sem um mito a existência do homem não tem nenhum sentido histórico. A história, fazem-na os homens possuídos e iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa mostrou-se evidente desde o instante em que esta civilização constatou a carência de um mito.(...)"

"A burguesia já não tem mito algum. Tornou-se incrédula, cética e niilista. O mito liberal renascentista envelheceu demasiadamente. O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito move-se com uma fé veemente e ativa. A burguesia nega; o proletariado afirma. A inteligência burguesa entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria e da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. E uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como afirmei em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os motivos religiosos deslocaram-se do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais."

José Carlos Mariátegui - O Homem e o Mito (1925), publicado originalmente na revista Amauta, e depois na coletânea de ensaios El Alma Matinal.


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Escrevesse nos dias de hoje, o eminente marxista peruano seria obrigado a concluir que hodiernamente também o movimento revolucionário tornou-se carente não apenas de mito, mas também de capacidade de invenção.

O que se vê, pois, na atualidade, é uma esquerda que está ou agrilhoada a concepções mediocremente legalistas e institucionais de ação política, para melhor ocultar sua covarde capitulação à ordem capitalista; ou então uma esquerda pseudo-revolucionária de todo estéril e improfícua, uma vez que se limita a reverberar as estratégias revolucionárias d'outrora, que se bem correspondiam ao contexto em que foram gestadas, hoje já não mais se revelam capazes de responder com eficácia às tarefas do presente.

Trata-se, portanto, d'um cenário sobremaneira ominoso: de um lado, uma 'esquerda' que renunciou por completo à transformação revolucionária da sociedade capitalista, quando muito acenando para mudanças de forma meramente retórica e oportunista; de outro, uma ruína ideológica dos tempos idos, que não apenas matraqueia os estrátegas do passado sem absorver-lhes o que de útil ainda possam ter, mas é também incapaz de compreender o contexto em que vive para assim formular novas estratégias de ação.

A propósito dos setores reformistas não há muito que se possa fazer: baldas são quaisquer expectativas de que voltem a exercer um papel sequer minimamente progressista, haja vista, por exemplo, o resultado de uma governo como a de Lula à testa do Brasil, que se limita a exercer o papel de mero gestor do sistema capitalista, sem a mais mínima preocupação em lançar os alicerces d'um futuro processo de transformação substantiva de nossa sociedade; destarte, tornou-se tão somente, para lançar mão aqui de bela imagem cunhada por Fernando Pessoa, um desprezível "cadáver adiado que procria" os mesmos horrores, ignomínias e malefícios de qualquer outro governo conservador que já tenha assolado nossas plagas. É mister d'uma vez por todas abandonar qualquer expectação no que tange á possibilidade de recuperar tais facções para a ação política revolucionária: à lógica do capital estão e estarão de todo submissas per saecula saeculorum.

Se algum laivo d'esperança inda nos resta, por conseguinte, encontrá-lo-emos nas hostes da esquerda que ainda nutre ambições revolucionárias (para não mencionarmos aqui a vastíssima galáxia da 'revolução conservadora', que ulteriormente será objeto d'outro artigo), pois esta ainda cultiva o necessário e feraz mito da transformação social: ainda que decerto árdua, há, de facto, em relação a tais elementos, uma empreitada passível de realização e, quero crer, pleno êxito.

Em primeiro lugar, é necessário à esquerda que ainda acalenta alguma pretensão transformativa d'uma vez por todas assimilar a lição ministrada há já tantos lustros por autores como Mariátegui, Sorel e Peguy: a 'revolução social' não é um fenômeno que se possa interpretar mediante uma analítica científica, já que não pode ser compreendido à luz dos pressupostos epistemológicos e metodológicos da razão lógico-demonstrativa; ao contrário, afigura-se muito mais como fenômeno de cunho mítico-religioso, impermeável a abordagens racionalistas. Há portanto que reconhecer a natureza essencialmente messiânica e mítica da Revolução, a dimensão mística, irracional, imprevisível e emocional presente intrinsecamente em todo processo revolucionário. A dimensão simbólico-messiânica é o alicerce em que se assenta o eixo do fenômeno político, que nada mais que uma versão laica do processo religioso. A ação revolucionária é, pois, Mito e Mística, é fome do Absoluto, mergulho nos báratros da imponderabilidade, salto temerário na escuridão inefável. Não há como negar, por exemplo, que o islâ militante desempenha hoje um papel revolucionário muito mais relevante que as modalidades tradicionais contempladas pelo pensamento marxista. A tipologia categorial estreita do marxismo não consegue, pois, compreender que um Osamah Bin Laden possa ser, como de fato o é, ao mesmo tempo um warlord medieval e um líder revolucionário contemporâneo, ou seja,uma figura onde o 'arcaico' e 'novo' estão entrelaçados de forma indissolúvel; o que vai ao encontro, vale dizer, do que um gênio profético da estatura de Glauber Rocha asseverava já há alguns lustros:


"Na medida em que a desrazão planeja a revolução, a razão planeja a repressão".

"A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza".

"A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma idéia, é o mais alto astral do misticismo".

"As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das forças irracionais das massas pobres".

"A revolução é uma mágica porque é o imprevisto dentro da razão dominadora".

Eztetyka do Sonho
(1971)


À primeira lide, portanto, corresponde a um processo de radical reformulação de sáfaros preconceitos adrede esposados, ao abandono de panoramas d'ação e de pensamento inadequados à conjuntura presente; é sem sombra de dúvidas uma empresa complexa, uma vez que abdicar de certos hábitos e reflexos condicionados é algo que não raro resulta num doloroso processo de autotransformação psicológica; todavia, a segunda tarefa que se apresenta à esquerda revolucionária tradicional é ainda mais fragosa e intrincada.

Salientei acima o imperativo premente que representa para a esquerda contemporânea apreender corretamente os ensinamentos de Mariátegui; contudo, tão somente absorvê-los sem ulterior reelaboração não é de forma alguma suficiente: há que ir além deles, pois não basta reconhecer que Política é também Mito e Mística, mas sobretudo constatar que fora dos horizontes do Mito não há mais qualquer possibilidade revolucionária. E para tanto, é forçoso compreender as metamorfoses estruturais, tanto econômicas quanto políticas, do capitalismo nos últimos 100 anos.

A Revolução de Outubro, mito central do paradigma revolucionário no século passado, ocorreu num contexto histórico em que a indústria ocupava a centralidade da atividade econômica capitalista; assim sendo, como de sobejo o admitem até mesmo marxistas heterodoxos como Mariátegui, coube ao proletariado, protagonismo no supracitado processo, situação que teria se repetido, decerto de forma ainda mais cabal caso uma revolução comunista houvesse eclodido na Alemanha ou em Inglaterra, por exemplo. Não menos patente, todavia, é o facto de que o movimento operário veio perdendo força, substância e representatividade ao longo do século XX em função das metamorfoses estruturais do sistema produtor de mercadorias, cuja capacidade de explorar trabalho atrofia-se paulatinamente sobretudo a partir das décadas de 60-70; nas outrora afluentes sociedades capitalistas da Europa Ocidental, da Ásia e da América do Norte, pois, verifica-se mais e mais a presença de um desemprego que não é mais meramente conjuntural, mas estrutural, fenômeno que sobrecarrega em escala crescente os sistemas previdenciários e coloca em xeque um welfare state construído por um século de lutas sindicais. Ainda que em menor escala e velocidade, vale dizer, o mesmo fenômeno vem ocorrendo no âmbito das economias periféricas.

A dinâmica constante que levou ao desenvolvimento da microeletrônica, da automação dos processos produtivos e da computação desencadeou, portanto, uma série de transformações de suma importância no âmbito das estruturas dinâmicas do capitalismo: o eixo de sustentação do sistema deslocou-se radical, e quiçá definitivamente, do setor secundário para o terciário, da economia 'real' para a 'virtual' . Desta maneira, com a expansão acelerada do setor terciário no bojo da revolução informática, e agora no bojo dos primeiros e sombrios sinais de esgotamento desta 'terceira onda capitalista', emergem como sujeitos históricos privilegiados as legiões de excluídos por este processo, isto é, um 'neolumpesinato' que, ao contrário do lumpenproletariat tradicional, é formado não raro por indivíduos qualificados, mas que não mais conseguem viabilizar-se economicamente no seio de uma entropia crescente das atividades econômicas produtivas. Utilizo aqui o termo 'neolumpesinato' com o fito de sublinhar dois pontos que me parecem cruciais: em primeiro lugar, o facto de que os assalariados do setor terciário não possuem a consciência de classe e a coesão organizativa que o proletariado industrial revelou em seus momentos mais gloriosos, dos quais, claro está, a revolução soviética é o mais eloqüente exemplo; e, em segundo lugar, tendo em mente a legião de excluídos desencadeada pela progressiva 'fadiga' do setor terciário em sua capacidade de agregar nova mão-de-obra. Tal desgaste, aliás, revela como os ciclos de crescimento real de atividade econômica no âmbito do sistema produtor de mercadorias são cada vez mais breves; é facto, por exemplo, que não se geram novos postos de trabalho na UE há pelo menos 20 anos. Assim sendo, vislumbro um 'neolumpesinato' formado, por lado, pelos assalariados do setor terciário e, por outro, pelos excluídos em virtude da precoce decrepitude demonstrada pelo supracitado boom.

Não obstante, o facto de este neolumpesinato estar muito mais aparelhado para compreender o mundo em que vive do que seu correlato passado é, diga-se de passagem, assaz alvissareiro, em termos de esperanças para uma futura mobilização revolucionária.

Estamos sob a égide, conforme já assinalei outras vezes, d'uma verdadeira paralaxe estrutural, que desloca o eixo do processo econômico de forma irreversível da esfera produtiva para a twilight zone do setor terciário, bem como para a esfera puramente especulativa. A atividade industrial perde sua centralidade como locus privilegiado de onde o sistema extrai os recursos para sua auto-reprodução ampliada e, outrossim, o proletariado industrial perde sua centralidade como sujeito privilegiado dos processos revolucionários de superação do sistema produtor de mercadorias; doravante, tal papel estará a cargo de um nebuloso, cambiante e metamórfico neolumpesinato mais ou menos 'especializado', um lumpenproletariat pós-moderno atomizado/gerado pela implosão do setor terciário na atual conjuntura do sistema produtor de mercadorias que é hoje a verdadeira classe revolucionária. O sujeito revolucionário hodierno identifica-se, por conseguinte, com as legiões de excluídos pelo virtual achatamento do setor secundário e pelo esgotamento progressivo da capacidade de absorção do setor terciário, ou seja, o supracitado neolumpesinato gerado pelas metamorfoses do sistema produtor de mercadorias nas últimas décadas.

E eis então que aqui chegamos ao cerne da questão que nos ocupa, ou seja, a natureza dos processos revolucionários no mundo contemporâneo. O que afinal poderá mobilizar o 'neolumpesinato' a superar o estado d'apatia em que se encontra para enveredar pelas sibilinas sendas da transformação revolucionária? Creio firmemente que a clave puramente 'política' não mais poderá servir como força motriz capaz de desencadear qualquer processo revolucionário duradouro no imo do contexto hodierno do Capitalismo; não mais acredito, dessa maneira, na possibilidade da organização política de classe como veículo para a superação dialética do sistema produtor de mercadorias, mas tão somente na emergência de teologias messiânicas da ação revolucionária, que encaro como a única possibilidade de provocar um curto-circuito na própria razão dominadora do Capital, giroscópio conceitual em que se assenta todo o seu edifício. Hoje, mais do que nunca, a instância determinante em última instância não é mais a infraestrutura material, mas sim a superestrutura ideológica; há, pois, uma relação de superveniência desta em relação àquela. O assalto derradeiro e definitivo à ordem estabelecida se dará pela mente, pelo espírito, não pela matéria, pela concretude. O resultado? Imprevisível, um precipitar-se no escuro, um mergulho abissal no oceano ignoto do porvir, como de resto o é e sempre será qualquer transformação revolucionária. Não obstante, os perigos do abismo podem ao menos ser mais estimulantes que a letargia da planície!

terça-feira, abril 08, 2008

Sapientia Universalis III

Alphonse van Worden - 1750 AD
























"Comme les heritiers veritables de Heraclites, les NB aporteront le FEU sur la terre, et leur Cause irrationelle humiliera la sagesse de ce monde, de la societe ouverte de ces etres qui ne sentent aucune nostalgie des Origines, aucune douleur existencielle d'etre separe de l'Etre Pur, aucun soif de l'initiation et de la realisation spirituelle.

Au dela de la gauche et de la droite, la Revolution une et indivisible dans la trinite impossible qui uni dialectiquement Troisieme Rome, Troisieme Reich et Troisieme International.

Regnum des NB, leur Empire de la Fin s'est la realisation parfaite de la plus grande Revolution, continentale et universelle. C'est le retour des Anges, la ressurection des Heros, la revolte du Coeur contre la dictature de la Raison.

Cette DERNIERE REVOLUTION est affaire de l'Acephal, de l'Acephal porteur de la Croix, du Faucil et du Marteau, couronne par la Svastica Eternelle."

Aleksandr Dugin - La métaphysique du National-Bolchevisme (1997)




terça-feira, abril 01, 2008

Breve nota sobre o conceito de 'GUERRA TOTAL'

Alphonse van Worden - 1750 AD







- Na modalidade de confronto armado que corresponde à GUERRA TOTAL, vige tão somente a dinâmica 'amigo / inimigo' tal como concebida por Carl Schmitt, excluindo quaisquer considerações de ordem moral, normativa ou filosófica; bem como o que Ernst Jünger denominou de ‘mobilização total’ (totale Mobilmachung) da sociedade industrial em prol de um estado de guerra permanente.

- Assim sendo, o que é lícito fazer com o 'inimigo' não aceitamos que se faça com o 'amigo', e vice-versa. Não há justiça, nem tampouco qualquer senso de proporção ou cálculo frio numa GUERRA TOTAL, mas apenas matar ou morrer.

- É mister retirar, destarte, todos os véus da hipocrisia e da 'boa consciência', a fim de reduzirmos analiticamente o fenômeno da GUERRA TOTAL à sua essência mais primeva, atávica e definitiva: matar ou morrer.

- No âmbito da GUERRA TOTAL não há, pois, procedimentos mais ou menos 'hediondos', circunstâncias mais ou menos 'civilizadas', pois tal conflagração visa à destruição do inimigo, tanto de seu capital humano quanto de sua infra-estrutura material. Mais: visa o aniquilamento do próprio substrato simbólico e espiritual que informa a civilização inimiga, de modo que no terror indiscriminado e absoluto não apenas contra a população civil, mas também contra monumentos históricos e tesouros artísticos, radica não um jaez aleatório, circunstancial, 'colateral' da GUERRA TOTAL, mas sim seu móvel mais precípuo e transcendental, sua própria mefistofélica raison d'être, enfim; destarte, massacres como Lidice, Mi Lai, Wiriamu, Sabrah e Chatillah, Katim, Fossas Ardeatinas, Gueto de Varsóvia, etc, etc, etc.; ou então bombardeios contra alvos mormente não-militares como Dresden, Hiroshima, Coventry, etc, etc, etc., não são 'danos colaterais' ou 'erros lamentáveis', mas o próprio alpha e omega da GUERRA TOTAL, expressão manifesta de seu ethos mais consumado.

- Portanto, não há como eludir a brutalidade inaudita e escalfúrnia da GUERRA TOTAL, restando tão somente duas atitudes: negar-se terminantemente a envolver-se em conflagrações armadas, seja direta ou indiretamente; ou então tomar partido de um dois lados e advogar sua vitória, custe o que custar.

- Obviamente há conflagrações menores, motivadas por questões parciais, como a conquista de uma passagem para o mar, ou a abertura comercial de uma determinada região; não obstante, quando falamos de uma GUERRA TOTAL com pleno engajamento ideológico e material de toda uma sociedade, o móvel supremo é sim aniquilar o inimigo, destruindo-lhe por completo suas bases de sustentação em todos os planos da existência.

- Nos últimos 100 anos esse tipo de conflito ocorreu de modo particularmente emblemático nos Balcãs (no início e no fim do século); na invasão da URSS pela Wehrmacht ; e na guerra que até hoje segue dilacerando a Palestina.

- Assim são, por conseguinte, as GUERRAS TOTAIS, a mobilizar todos os músculos, cérebros, nervos e almas de uma noção. Tais conflagrações não contemplam qualquer tipo de prurido moral ou consideração de ordem ética. Acreditamos, vale dizer, que a jihad antiimperialista palestina envolve precisamente um conflito dessa natureza.

As mais belas mortes - VI

Isidore Lucien Ducasse, dito Comte de Lautréamont (1846-1870)

















O egrégio vate gaulês Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), dito Comte de Lautréamont, é sem dúvida credor de menção em nosso donairoso sítio; vale dizer que de sua brevíssima existência pouquíssimo sabe-se de concreto: há ciência de que veio ao mundo na deleitável cidade de Montevidéu, filho de um funcionário da representação consular francesa na capital cisplatina; consta também que a família retornou à pátria natal quando nosso rapazote tinha 10 anos, de modo a inscrevê-lo num renomado lycée parisiense. A partir deste episódio, contudo, os factos da vida de Lautreámont esfumam-se nas sibilinas evanescências do impreciso. Há quem diga, por exemplo, que teria tomado parte como communard nos eventos de 1870, mas desta presuntiva efeméride não há registo conclusivo.

Pois muito bem: por que cargas d´água estamos aqui a falar de Lautréamont? De certeza sua obra-capital, o volume de prosa lírica Les Chants du Maldoror, impertérrita celebração mefistofélica da crueldade infrene em todas as suas latitudes, reserva flamejantes páginas ao culto ominoso da 'indesejada das gentes'; isto, todavia, não bastaria para reservar ao luciferino bardo um nicho entre os mais belos passamentos, uma vez que outros excelsos entusiastas da morte foram ‘galardoados’ (se me permitis uma inocente ironia) com trespasses no mais das vezes sobremaneira prosaicos; o que há, pois, de notável na decedura de Lautréamont é que NADA de exacto, à exceção do ano em que se deu, sabe-se a seu respeito, sendo todas as considerações a propósito tão somente vagas especulações sem esteio documental ou factual taxativo... destarte convenhamos, áticos confrades: que exício poderia ser mais esteticamente adequado para alguém como o espectral Lautréamont?

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Thomas Mann (1875-1955)

























Há de ser quiçá uma lenda sem grande respaldo histórico, mas de modo algum poderíamos nos furtar a relatar a excêntrica circunstância em que se teria dado o passamento do ático escritor alemão Thomas Mann (1875-1955).

No último lustro de sua vida, já retirado à vila de Kilchberg ( ao pé de Zurique - Suiça), consta que este luminar das letras teutônicas teria em sonhos recebido a informação de que morreria num dado dia 11, sem indicação de mês ou ano; assim sendo, a cada dia 11, Mann recolhia-se na mais absoluta e contrita imobilidade, esperando as 12 badaladas do dia seguinte para enfim adormecer tranquilo; na virada de 11 para 12 de agosto de 1955, após cumprir mais uma tormentosa e afadigante vigília, Mann dirigiu-se a seus aposentos aliviado ao ver mais vez adiado o inefável encontro marcado com a 'indesejada das gentes'; todavia, ao observar casualmente um relógio no segundo andar, constatou, para sua imensa aflição, que este ainda assinalava as 23 horas do dia 11; angustiado, consultou uma empregada a propósito da discrepância de horários e, ao constatar que de facto ainda estava no aziagamente pressago décimo-primeiro dia, viu-se assaltado por tamanho pavor e consternação que terminou por falecer vítima duma síncope fulminante.

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

domingo, março 02, 2008

Notas de reflexão crítica XII - a propósito da crítica social na ficção chestertoniana

Alphonse van Worden - 1750 AD






Ó supinos confrades: a crítica social levada a efeito pelo inglês Gilbert Keith Chesterton (1874 - 1936) a meu juízo um caso verdadeiramente notável (quiçá igualado, no âmbito das letras anglo-saxônicas, tão somente pelo irlandês Jonathan Swift e pelo norte-americano Ambrose Bierce), pois à capacidade de percuciente analista dos processos socioculturais de sua época, logra aliar o corrosivo expediente da sátira, mister em que alcançou elevado nível de realização; tal aspecto, aliás, é patente na maior parte de sua obra ficcional, em obras tais como, por exemplo, o memorável romance The Man Who Was Thursday: A Nightmare (“O homem que era quinta-feira” - 1908), amiúde definido como um ‘thriller metafísico’, uma devastadora paródia contra o anarquismo em seu aspecto mais obscuro e sibilino de revolta niilista contra Deus, isto é, contra toda e qualquer desígnio de transcendência; ou ainda os contos policiais do padre Brown (quiçá a mais célebre das criações chestertonianas), com sua labiríntica geometria de referências teológicas e reflexões sobre a condição humana, consubstanciando-se a partir de um jogo de espelhos invertidos operado pelo autor, com desfechos que amiúde contemplam duas possibilidades: a) uma solução de índole racional, obtida por via indutiva através dos dados compilados pelo padre-detetive em suas investigações; b) uma solução de cunho fantástico, amiúde reverberando o substrato metafísico inerente à narrativa; e não é desarrazoado especular, com efeito, que a finalidade de tal estrutura bipartite seja refletir a própria dualidade da alma humana, peremptoriamente cindida entre o lastro da realidade material e a etérea rarefação do universo ideal. Trata-se, enfim, de toda uma série de notáveis peças de engenharia textual, cuja elegância formal e irretocável timing narrativo J.L.Borges certa feita comparou, com rara felicidade, “a uma jogada de xadrez”.

Não obstante, tomarei aqui em consideração o texto onde o estro satírico de Chesterton atinge, quero crer, o ápice em termos de corrosão sulfúrica e lucidez indignada: o relato How I Found The Superman (“Como encontrei o Super-Homem” - 1909). Sob o astucioso formato de uma reportagem fictícia, Chesterton assesta suas baterias contra a macabra aliança entre, de um lado, certo tipo de protofascismo / socialismo de caráter ambíguo, cujas matrizes conceituais deitam raízes tanto na filosofia nietzscheana quanto no neodarwinismo (Herbert Spencer, Gobineau, etc.), ideologia a um só tempo cruel, lunática, caótica e obtusa; e, de outro, a hipocrisia das 'boas intenções' do reformismo social advogado pelos setores 'iluminados' da elite de então. Assim sendo, vergasta tanto as perigosas ‘ilusões do progresso’, com seus estratosféricos delírios teleológicos, submetendo todas as necessidades e aspirações humanas à lógica cega e implacável de uma remota e quase inexeqüível finalidade, quanto a insensata perspectiva dos que, do alto de seu rarefeito Olimpo social, tentam reformar a vida dos de ‘baixo’ sem efetivamente conhecer-lhes os desejos e carências. Trata-se, pois, de uma genuína obra-prima, que agora vos apresento em tradução de minha autoria:

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Como encontrei o Super-Homem

Gilbert Keith Chesterton

Daily News, 1909


Os leitores do Sr. Bernard Shaw e outros autores contemporâneos talvez julguem interessante saber que o Super-Homem foi encontrado: eu o encontrei, ele vive em South-Croydon. Meu triunfo será um grande golpe para o Sr. Shaw, que no momento está procurando pela criatura em Blackpool; e no que tange à tentativa do sr. Wells em gerar o Super-Homem a partir de gases químicos num laboratório, sempre a considerei condenada ao fracasso. Posso assegurar ao Sr. Wells que o Super-Homem de Croydon nasceu de modo ordinário, malgrado em si mesmo não seja, claro está, nada menos que algo extraordinário.

Tampouco seus pais são indignos do maravilhoso ente que trouxeram ao mundo. O nome de Lady Hypatia Smythe-Brown (atualmente Lady Hypatia Hagg) jamais será esquecido no East End, onde realizou um esplêndido trabalho social; seu renitente brado de "salvem as crianças!" referia-se à cruel negligência para com a visão dos pequenos em permitir que se divertissem com brinquedos toscamente pintados. Costumava citar estatísticas irreprocháveis, no intuito de provar que crianças com permissão para lidar com objetos em tom escarlate ou violeta frequentemente sofriam de vista cansada na velhice; e foi devido à sua incessante cruzada que a praga do 'macaco-na-vareta' * foi quase eliminada de Hoxton.

A devotada ativista percorria as ruas incansavelmente, confiscando brinquedos às crianças pobres, que não raro debulhavam-se em lágrimas graças à sua bondade. O bom trabalho que desenvolvia fora, contudo, interrompido, em parte por seu recente interesse pelo credo de Zaratustra, em parte pela violenta pancada de um guarda-chuva; o golpe foi-lhe infligido por uma irlandesa depravada, vendedora de maçãs, que retornando de alguma orgia para seu descuidado apartamento, encontrou Lady Hypatia no quarto retirando um oleógrafo da parede, o qual, para dizermos o mínimo, decerto não contribuía para a elevação do espírito.

A ignara e semi-embriagada celta então desfechou um rude golpe à reformadora social, ao que ainda acrescentou uma absurda acusação de roubo. A mente perfeitamente equilibrada de Lady Hypatia ficou em estado de choque; e foi durante esta breve alienação mental que ela se casou com o Dr. Hagg.

Creio que a figura do Dr. Hagg dispensa maiores comentários: qualquer um remotamente familiarizado com os ousados experimentos em eugenia neoindividualista, que hoje constituem um dos maiores interesses da democracia inglesa, deve conhecer seu nome e recomendá-lo à proteção pessoal de um poder impessoal. Muito cedo na vida desenvolveu uma visão brutal da história das religiões, que adquiriu na mocidade como engenheiro-eletricista. Tornou-se mais tarde um de nossos maiores geólogos, adquirindo aquela profunda e luminosa visão a respeito do futuro do socialismo que tão somente a geologia pode proporcionar.

A princípio parecia haver algo como um descompasso, uma sutil mas perceptível fissura, entre suas concepções e as de sua aristocrática esposa: ela era favorável (para lançarmos mão aqui de seu marcante epigrama) a proteger os pobres contra si mesmos, ao passo que ele, numa nova e poderosa metáfora, advogava o fuzilamento dos mais fracos. Todavia, ao fim e ao cabo o casal percebeu a existência de uma conjunção essencial no caráter insofismavelmente moderno de ambas as visões de mundo; e nesta instrutiva e abrangente conclusão suas almas encontraram a paz de espírito. O facto é que esta união entre os dois tipos mais evoluídos de nossa civilização - a sofisticada aristocrata e o invulgar homem de ciência - foi abençoada pelo nascimento do Super-Homen, aquele ser por quem todos os trabalhadores de Battersea aguardavam ansiosamente, noite e dia.

Encontrei a residência dos Hagg sem maiores dificuldades; está situada numa das ruas mais afastadas de Croydon, e encoberta por uma fieira de álamos. Cheguei à porta lá pelo entardecer, e é compreensível que fantasiosamente divisasse algo de lúgubre e monstruoso na indistinta mole da casa que abrigava um ser mais extraordinário que os filhos dos homens. Ao entrar fui recebido com admirável cortesia por Lady Hypatia e seu marido. Tive, no entanto, enorme dificuldade para propriamente ver o Super-Homem, que hoje tem por volta de 15 anos, e é mantido solitário num aposento tranqüilo; mesmo a conversa que entretive com seus pais não logrou esclarecer a natureza da misteriosa criatura. Lady Hypatia, com suas feições lívidas e pungentes, envolta por aqueles inefáveis e patéticos tons de verde e cinza com os quais alegrara tantos lares em Hoxton, parecia falar sobre seu rebento sem o mais mínimo laivo da reles vaidade que sói caracterizar uma mãe comum. Arrisquei-me então a perguntar se o Super-Homem tinha uma aparência agradável.

"Veja, ele estabelece seus próprios parâmetros", ela respondeu, com um leve suspiro. "Em seu plano existencial é superior a Apolo; visto a partir de nosso plano inferior, obviamente...". E novamente suspirou.

Movido por um terrível impulso, de súbito perguntei: "ele tem algum tipo de cabelo?"

Houve um silêncio longo e doloroso, e então o Dr. Hagg disse suavemente: "tudo em seu plano existencial é diferente; o que ele tem não é... bem, não é o que denominamos 'cabelo', claro está, mas...".


"Não te parece", atalhou sua mulher, muito delicadamente, "não te parece que deveríamos, à guisa de uma justificativa, denominar aquilo como 'cabelo' quando estivermos palestrando com terceiros?"

"Talvez estejas correta", replicou o doutor após refletir por alguns momentos, "tendo em vista um cabelo como aquele, deve-se falar através de parábolas".

"Bem, que diabos é então", perguntei com alguma irritação, "se não for cabelo? Seriam penas?"


"Não, penas não, não do modo que as concebemos", respondeu Hagg num tom de voz medonho.

Levantei-me agastado. "Afinal, será que posso vê-lo?", perguntei. "Sou um jornalista, e não tenho motivos mundanos, exceto curiosidade e vaidade pessoal. Gostaria de poder dizer que apertei a mão do Super-Homem".

Marido e mulher ergueram-se pesadamente, muito constrangidos.

"Bem, como o senhor decerto sabe", disse Lady Hypatia, com seu de facto encantador sorriso de anfitriã aristocrática, "não se pode exatamente apertar-lhe as mãos... não as mãos, o senhor compreende... a estrutura, é óbvio..."

Rompi então com todas as convenções sociais, e corri para a porta do cômodo que me parecia abrigar a inaudita criatura; a abri de supetão. O quarto estava imerso em total escuridão; mas à minha frente escutei um breve guincho lamentoso, e por detrás um duplo gemido.

"O senhor conseguiu, enfim!", gritou o Dr. Hagg, enterrando a fronte calva entre as mãos. "Deixou entrar uma corrente de ar, e agora ele está morto".

Enquanto me afastava de Croydon naquela noite, vi homens de preto carregando um ataúde de formato inumano. O vento uivava sobre minha cabeça, fazendo turbilhonar os álamos, que se inclinavam e acenavam como penachos num funeral cósmico.

"De facto", disse o Dr. Hagg, "é o universo inteiro pranteando a morte de sua mais magnífica criatura". Não obstante, julguei perceber a presença de um assovio gargalhante no agudo bramir do vento.



* brinquedo popular entre as crianças inglesas na época.

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Como não resulta difícil constatar, há no supracitado relato um generoso acervo de temas, alusões (mais ou menos veladas) e ferinos reproches, a começar pelo contexto sobremaneira sarcástico em que o autor menciona dois de seus notórios antagonistas à época: George Bernard Shaw (de quem era, convém sublinhar, um amigo fraterno) e Herbert George Wells. Impossível, claro está, esgotar aqui a riqueza da cornucópia crítica de nosso autor, de maneira que nos concentraremos no alvo que, a meu juízo, parece ser o mais cabal; destarte, a advertência mais impiedosa é indubitavelmente dirigida contra o otimismo cientificista de Wells, entusiástico defensor de princípios de ‘engenharia social’ e de transformação radical da vida humana em todas as suas esferas. Para o pensador católico, contudo, tais idéias constituíam uma teratologia de inauditas pretensão e brutalidade, pois violentavam o curso natural da existência humana, seus hábitos e tradições culturais, tencionando submetê-los à camisa-de-força de projetos abstratos de reforma social, quase sempre ominosamente simplistas, via de regra desprovidos de quaisquer laços substantivos com a ‘vida real’ e sua complexa teia de injunções; ademais, Chesterton rejeitava ad limine qualquer tipo de fé ilimitada nas possibilidades materiais do Homem, mormente no que tange à inabalável convicção, tão usual no período, de que a evolução tecnocientífica seria capaz de solucionar todos os problemas do humanidade.

Há que frisar, contudo, que as perspectivas de Wells não desfrutavam de unanimidade no seio do pensamento de esquerda; muito pelo contrário, aliás, como bem o demonstra, por exemplo, um incisivo ensaio de George Orwell, Wells, Hitler and The World State (“Wells, Hitler e o Estado Mundial” - 1941), onde verbera, nos termos mais acerbos, contra o que denomina de ‘religião do progresso’, ou seja, a crença no progresso linear, contínuo e irreversível da humanidade, que estaria, portanto, ao fim e ao cabo ‘condenada’ a um êxito inelutável. Orwell desconfiava fortemente dessa visão de mundo, à qual atribuía um cariz sobremaneira autoritário e irrealista, uma vez que desconsidera a intermitente dinâmica de avanços e retrocessos da ação humana, bem como deposita no futuro esperanças exageradas, aspirações essas cuja viabilidade prática é, ao fim e ao cabo, inverificável no presente.

Beastie Boys it's in the house, what we're gonna do?




Muito embora o hip hop tenha surgido como um multitentacular veículo de expressão para os sentimentos, necessidades e demandas da América negra, o gênero também se caracteriza, conforme assinalei em resenha anterior, por sua capacidade ímpar de assimilação étnica e cultural. Dessa maneira, a despeito de certa desconfiança inicial, rappers brancos começaram também a marcar presença no hip hop já na década de 80; dentre esses, os Beastie Boys estão em inequívoco plano de destaque, ombreando com os mais importantes artistas negros do gênero.

Egressos do Brooklyn, tradicional reduto judeu de NY, e com um background eminentemente punk, ninguém jamais poderia cogitar que aqueles 3 garotos irrequietos e debochados lançariam o álbum de maior sucesso comercial em toda a história do rap: produzido pelo mitológico Rick Rubin, Licensed to Ill (1986) foi não apenas um estrondoso fenômeno de vendas, mas também lançou as bases do crossover entre hip hop, heavy metal e hard rock, inspirando um sem-número de epígonos ao longo dos anos seguintes. Pejado de faixas a um só tempo pesadas e dançantes, e ainda de letras vitriolicamente escrachadas, é um disco sobremaneira divertido e contagiante; carece, contudo, de maior elaboração musical, e seu novelty value decerto se esgota após algumas audições, o que levou muita gente boa a considerar que a banda seria tão somente uma one hit wonder... não obstante, os caras novamente deixariam o mundo boquiaberto com o lançamento de seu segundo disco, o magnífico Paul's Boutique (1989).

Gravado durante o 'exílio' temporário da banda em Los Angeles, e após toda uma série de turnês tumultuadas, bem como de tormentosas polêmicas em função da misoginia presente nas letras do álbum de estréia, Paul's Boutique é um dos discos mais arrojados e vanguardistas de todos os tempos, portentoso testemunho da incrível fluência dos BB's como rappers, bem como da genialidade delirante de sua dupla de produtores, os Dust Brothers (E.Z. Mike e 'King' Gizmo); assim sendo, trata-se de uma OBRA-PRIMA de produção, engenharia de som e poética rap. Fruto de um contexto privilegiado que nunca mais se repetiria no futuro, isto é, de uma época onde a legislação em termos de 'sampleagem' ainda não estava plenamente estabelecida, nunca antes ou depois se viu uma tão rica, labiríntica e complexa tapeçaria de samples, de tal modo entremeados uns aos outros em camadas multiformes e interligadas, que temos não uma simples colagem de citações justapostas, mas sim um verdadeiro exercício de reprocessamento antropofágico da tradição na gestação do novo. Ademais, Paul's Boutique, malgrado alicerçado nos marcos estéticos do hip hop, expande-se generosamente, mais do que qualquer outro disco do gênero, para outras paragens musicais, dialogando incessantemente com elementos de funk, soul, jazz, reggae, hard rock, etc; finalmente, em termos líricos, a dinâmica multitudinária e ecumênica do disco reafirma-se numa assombrosa cornucópia de alusões, referências e trocadilhos sobre NY e a cultura pop de forma geral, tornando-se fascinante o exercício de decodificação temática e semiótica do abrangente universo conceitual urdido pelo trio de rappers.

Assim como em relação It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back (Public Enemy), é sumamente difícil nomear os highlights da obra magna dos Beastie Boys, pois o álbum é tão orgânico e coerente que funciona muito mais como um monolítico continuum de sons e idéias em permanente manar do que como mera reunião de faixas; todavia, a meu juízo as seguintes faixas são dignas de menção especial: Johnny Ryal, irresistível fusão rap'n'soul; Egg Man, rap em compasso de filme de suspense; High Plains Drifter, hipnótico ensaio de hip hop em mutação genética dub; Hey Ladies, funkaço digno de um Parliament das melhores safras; Looking Down the Barrel of a Gun, talvez a melhor fusão de rap / metal criada pela banda; e por fim, o caleidoscópio sônico par excellence de B-Boy Bouillabaisse.

Resumo da ópera: um DISCAÇO.





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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

In Memoriam IV

Alphonse van Worden - 1750 AD




Ó excelso mujahid Imad Mughniyah, indômito propugnáculo de AMIR UL-MOMINEEM, que para ti se descortinem os celestinos horizontes da Arcana Coelestia!!!





segunda-feira, fevereiro 04, 2008

Tributo aos excelsos próceres da Pátria Sérvia!!!

Alphonse van Worden - 1750 AD









Боже правде, ти што спасе
од пропасти досад нас,
чуј и одсад наше гласе
и од сад нам буди спас.


Моћном руком води, брани
будућности српске брод,
Боже спаси, Боже храни,
српске земље, српски род!


Сложи српску браћу драгу
на свак дичан славан рад,
слога биће пораз врагу
а најјачи српству град.


Нек на српској блиста грани
братске слоге златан плод,
Боже спаси, Боже храни
српске земље, српски род!


Нек на српско ведро чело
твог не падне гнева гром
Благослови Србу село
поље, њиву, град и дом!


Кад наступе борбе дани
к’ победи му води ход
Боже спаси, Боже храни
српске земље, српски род!


Из мрачнога сину гроба
српске славе нови сјај
настало је ново доба
Нову срећу, Боже дај!


Отаџбину српску брани
пет вековне борбе плод
Боже спаси, Боже брани
моли ти се српски род!

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

A propósito do papel da decisão individual no âmbito da História

Alphonse van Worden - 1750 AD


Ignorar a importância da decisão individual no bojo da História constitui um erro desafortunadamente usual entre certos marxistas; soem asseverar, com efeito, que o processo histórico forja-se tão somente no bojo de fenômenos coletivos em larga escala espaço-temporal. Todavia, se um determinado agente ocupa tal ou qual posição estratégica em função, é verdade, das lides d'um processo histórico coletivo, não é menos verdade que no momento preciso e infinitesimal de uma tomada de decisão as forças históricas que desencadearam o processo estão ausentes. O instante da decisão é, portanto, um ato de jaez essencialmente solitário e intransferível para o indivíduo que ocupa o local exato na hora exata; e mesmo nos casos em que o rumo a ser tomado está a cargo d'um colegiado, podemos afirmar que o grupo de homens responsáveis por aquela está no momento da decisão isolado das instâncias coletivas que porventura o engendraram; cabe falar, destarte, de uma sutil e complexa dialética coletiva/individual como força motriz da História. O processo histórico é, com efeito, um movimento de contínua retroalimentação dialética, onde as esferas individual e coletiva 'intercondicionam-se' mutuamente.

Não se pode, portanto, negar a existência patente da consciência individual, cujas opções podem sim aportar guinadas de rumo para o transcurso dos acontecimentos.há, por conseguinte, que admitir que a História não se processa somente por intermédio de processos coletivos de transformação, reconhecendo o caráter igualmente vital das decisões individuais dos agentes que ocupam posições chave em determinados momentos. Assim sendo, podemos, por exemplo, nos inquirir: o nazismo existiria sem Hitler? É bem provável que sim, mas assumiria uma conformação distinta, o que sem dúvida significa que teria outra trajetória; e isto vale para todo e qualquer evento histórico, que nunca pode ser reduzido a um fator monocausal, mas sim creditado a uma miríade de causas espaço-temporais.

O problema radica, pois, exatamente numa interpretação ultradeterminista do materialismo histórico, onde a subjetividade humana nada mais seria que um epifenômeno mecânico da articulação de forças materiais. Fica-se com a impressão, destarte, de que certos marxistas consideram o que se convencionou chamar de ‘processo histórico', que é uma abstração conceitual, como uma espécie de misteriosa entidade concreta e de caráter volitivo no espaço-tempo. . Tal concepção advém, como já tive oportunidade de aqui ressaltar, do facto de que o marxismo permanece inserido no quadro das filosofias que concedem estatuto de realidade concreta aos 'Universais', ou seja, que tomam representações conceituais como se impressões sensíveis fossem, para usarmos aqui uma terminologia de sabor humeano.

O que efetivamente acontece envolve, de facto, uma dialética deveras complexa e sutil... ocorre-me agora que o contexto onde ela se manifesta de forma mais cabal é no âmbito de uma batalha ou campanha militar. Suponhamos o Marechal X, comandante-geral das forças terrestres de Y, no átimo infinitesimal em que, debruçado sobre pilhas de mapas, gráficos e informes do front,deve decidir-se pelo deslocamento do grosso de seus efetivos para os pontos A e B, de modo a envolver o inimigo Z num movimento de pinça pelos flancos, ou para o ponto C, cortando as linhas de suprimento do inimigo e formando uma reserva estratégica, na expectativa de que Z tome a iniciativa, para só então desfechar um contra-ataque.

Pois muito bem: a meu juízo, a interferência do processo histórico multitudinário e anônimo, que eventualmente colocou X naquela posição naquele exato momento, é assaz irrelevante. Naquele instante preciso do espaço-tempo, a tomada de decisão será individual, refletindo as qualidades pessoais de X: sua inteligência, percepção, sensibilidade, formação técnica, cultura histórica e estratégica. Não há como, portanto, ignorar o vastíssimo acervo de decisões essencialmente solitárias embutidas em qualquer processo macro; outrossim, as probabilidades existentes no âmbito da análise combinatória de todas as decisões individuais envolvidas em qualquer processo macro certamente tende ao infinito, de modo que estabelecer um cálculo preciso seria sumamente difícil.

Examinemos agora um exemplo concreto, vale dizer, as dissensões políticas na URSS durante as décadas de 20 e 30. Caso Trotsky e Bukharin, a meu juízo os mais importantes líderes revolucionários soviéticos depois de Lenin, houvessem cometido, por exemplo, menos erros de avaliação tática do processo político no âmbito interno partidário, decerto teria sido possível vencer a facção staliana entre 1924-1928. O próprio Bukharin chegou a reconhecer, tragicamente tarde demais, que suas divergências programáticas com a esquerda trotsko-preobhazenskiana eram muito menos sérias que suas diferenças no tocante ao grupo de Stalin; outrossim, não teria sido impossível, por um lado, que Trotsky avaliasse com mais acuidade a real dimensão e importância da smychka campo/cidade para a viabilidade empírica ulterior do processo socialista soviético e, por outro, que Bukharin compreendesse melhor a relevância axial da democracia partidária para salvaguardar a revolução de intentonas termidorianas e/ou bonapartistas. Há, por conseguinte, que admitir que a História não se processa somente por intermédio de processos coletivos de transformação, reconhecendo o caráter igualmente vital das decisões individuais dos agentes que ocupam 'posições-chave' em determinados momentos fundamentais.

'Idealismo positivista', é o que de certeza diria certa estirpe de marxistas a respeito do que acima foi dito... e com isto incidiriam no mais irredutivelmente mecanicista dos materialismos; nada, diga-se de passagem, poderia estar mais próximo do idealismo que o materialismo hipertrofiado. O que fizemos, por conseguinte, foi raciocinar especulativamente a partir de hipóteses perfeitamente plausíveis, de opções que estiveram à mão dos agentes históricos que estamos aqui a considerar; e é de facto erro corriqueiro entre certos marxistas ignorar a importância de decisão individual no bojo da História. Não se pode, todavia, negar a existência patente da consciência individual, cujas opções podem aportar guinadas de rumo para o transcurso dos acontecimentos; além disso, o questionamento sobre o que poderia 'ter sido' possui também um aspecto dos mais oportunos: alertar-nos para os equívocos cometidos por nossos predecessores.

As questões adrede aludidas parecem-me ser, enfim, da maior importância importante para os marxistas, uma vez que as correntes liberais e conservadores costumam arrogar-se o primado da reflexão sobre o papel da decisão individual na História e demais processos humanos.

Jawohl, Tivol!




A sulfurosa garage hermétique do arquipélago do Sol Nascente é a matriz inconteste do que há de mais cauterizante em termos de full mode on mindmelting lysergic mindblowin’ avant cosmic rock’n’roll, certo? Hmmm... sim, pode-se dizer que sim... com efeito, não há muito como enfrentar a colossal fuzilaria dos obuses psicosônicos japoneses, o multidudinário arsenal de esmerilhação sonora dos AMT’s, High Rise’s, Mainliner’s e tutti quanti.

Não obstante, quiçá não seja de todo desarrazoado afirmar que, às plúmbeas margens do Báltico, sob a espectral refulgência do ‘Sol da meia-noite’ nas solitárias planícies de gelo, começa a emergir na Finlândia um cenário capaz de fazer frente à armada nipônica. Nomes como Pharoah Overlord, Avarus, Uton, Islaja, Es, Kiila, Dead Reptile Shrine, Anaksimandros e Kemialliset Ystavat indubitavelmente são capazes de conjurar os mais estratosféricos astrais do estraçalhamento psych, das opiáceas ondulações do acid drone folk à implacável devastação ultimate fuzz noise ear splitting destruction; e neste último mister, até agora ninguém logrou superar os páramos de brutalismo sonoro alcançados por um abstruso quarteto chamado Tivol.

Aparentemente na ativa desde 1995, a banda parece cultuar obsessivamente os arcanos da obscuridade: não possuem site próprio ou página no MySpace, e são identificados meramente por prenomes em seus álbuns (Askola, Ihanamäki, Kettunen e Nevalainen, sem maiores especificações ‘técnicas’). No último biênio, contudo, dois lançamentos internacionais brotaram das sombrias florestas finlandesas: Early Teeth (2005) e Interstellar Overbike (2006).

Compilado e remasterizado pela veneranda Holy Mountain a partir de dois CD-R’s (Cyclobean Ways e Breathtaking Sounds of Tivol) praticamente artesanais editados em 2002, Early Teeth é sem dúvida o que de melhor o Tivol produziu até agora, transfigurando, em grau máximo de desorientação hellraiser, a fusão entre desvario psych e hipnose kraut que os camaradas levam a efeito, algo como 'Mainliner meets Neu! in the unholy land of Cosmic Inferno', ou então Leif Eriksson, Loki, Volstagg e Surt, alucinados por doses elefantinas de hidromel, encenando o ragnarock psicodélico na espaçonave de Makoto Kawabata.

A banda abre os trabalhos em grande estilo com a sensacional Vihaan vitusti kaikkea mitä kulutusyhteiskunnan aikaansaama pinnallinen alkoholiin perustuva sosiaalinen käyttäytymiskulttuuri edustaa (melhor título de música 'EVÁÁÁÁÁÁÁÁ', PQP!!!), incontrolável maremoto magmático emergindo das espectrais cavernas do próprio Niflheim para entrar em combustão espontânea sob os titânicos golpes de um Mjolnir sônico. Há sobretudo que destacar os inacreditáveis vocais, que talvez possam ser vagamente descritos como um lancinante feixe de uivos agônicos eletronicamente distorcidos no limite da inextricabilidade sonora.

Prosseguimos então com Läskipäisyyden kultainen suihku, onde a banda tira o pé do acelerador para mergulhar num mefistofélico oceano de radiações eletromagnéticas, que se torna cada vez mais denso e claustrofóbico, até desaguar nas insondáveis profundezas de um abismo de microfonia terminal assombrado por imprecações banshee; a terceira faixa, Viha, kateus, katkeruus ja muut loistofiilikset, acena com um tênue reflexo de ‘normalidade’ hard psych em seu início, para logo dar ensejo, contudo, a uma tonitruante cavalgada elétrica dos blasfemos filhos de Muspell em direção ao derradeiro grimoire do alheamento transmental; Jawohl, Tivol!, por fim, traz a anarquia dos caras para uma galáxia garage punk envolta em espirais esquizóides de distorção purple haze.

Acautelai-vos, portanto, ó altaneiros samurais psych: a transpsicodélica frota viking está a caminho!!!





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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

terça-feira, janeiro 22, 2008

Glenn Branca: the black mass of electrical ecstasy

























Artista de amplos recursos técnicos; criador de toda uma estética originalíssima, a partir da fusão entre noise rock e música erudita experimental; e figura constelar no âmbito da vanguarda novaiorquiana dos anos 70 e 80, sobre o qual exerceu decisiva influência, Glenn Branca é indubitavelmente uma das figuras mais interessantes e inovadoras da música contemporânea. Posso seguramente afirmar, aliás, que se trata de meu compositor predileto em todos os tempos (apenas para ficar bem claro: não estou de forma alguma a dizer que é o 'melhor', ou o 'mais importante', ou qualquer outra estultícia do mesmo naipe, mas tão somente que é o meu favorito). 

Se há, aliás, um compositor que poderia ser classificado como PROGRESSIVO e EXPERIMENTAL na mais legítima e genuína acepção da palavra, este é Branca, pois ao contrário de muitas 'vacas sagradas' por aí, que se limitam a preguiçosamente adaptar / reciclar / surrupiar trechos elementos da tradição clássica, o genial regente e guitarrista norte-americano forjou um novo estilo ao amalgamar rock’n’roll e música erudita em surpreendente síntese alquímica.

A trajetória de Branca teve início no fértil e irrequieto cenário da vanguarda multimídia nova-iorquina dos anos 70. Em 1976, Branca cria, com Jeffrey Lohn,suas primeiras bandas, as formações no wave Theoretical Girls e The Static. Ambas enveredavam por uma estética relativamente análoga a de outros grupos da cena (DNA, Mars, Teenage Jesus and The Jerks, Don King), ou seja, a incorporação de elementos do minimalismo (Reich, Glass, Rilley) e da drone music (La Monte Young, Tony Conrad) ao nascente punk rock; são já notáveis, todavia, as inusitadas afinações de guitarras, as texturas microtonais e a obsedante massa sonora gerada pela superposição de diversas camadas de guitarras, características que se tornariam marca registrada no trabalho do compositor.

Em 1981, lança sua primeira obra-prima, o álbum The Ascension, onde o escopo sinfônico, ainda que para um ensemble pequeno (4 guitarras elétricas, baixo elétrico e bateria), já se faz plenamente presente: são peças sobremaneira hipnóticas, densas espirais de radiância sonora evoluindo em movimentos cada vez mais obsessivos e inquietantes. John Cage certa vez classificou a música de Branca como 'fascista' e 'histérica' ("I found in myself a willingness to connect the music with evil and with power...If it were something political, it would resemble fascism"). A observação é de certo modo procedente, pois a música 'branquiana' flui através de uma série de crescendos ominosos, sem desenlace ou catarse, de modo a transfigurar uma contínua sensação de apreensão e desassossego progressivos; não obstante, longe de ser um traço derrogatório, trata-se, creio eu, de algo que corrobora para tornar a música de Branca ainda mais admirável em sua busca tantalizante pelo inner void da tensão estrutural permanente.

Lesson No.2 e Structure são Sonic Youth avant la lettre, muito embora sobremaneira mais abstratas, angulosas e glaciais; fascinante exercício de contrastes, The Spectacular Commodity é simultaneamente luz e sombra em insólita convergência de vetores cromáticos dissonantes; Lightfield (In Consonance) é uma daquelas arrebatadoras walkürenritt eletromagnéticas tão características da obra de Branca, com suas trovejantes constelações de clusters circungirando em direção ao Infinito. Por fim, The Ascension, sinfonia do caos über eletrik por excelência, inicia-se como uma ameaçadora nebulosa eletrostática em lenta mas inexorável expansão, para então entregar-se a mais emblemática das progressões geométricas de radiação hipercinética do opus branquiano, terror e êxtase na mesma galáxia multiforme de estruturas sônicas em glorioso colapso.

Nos anos seguintes, Branca aperfeiçoaria esse formato, compondo sinfonias para conjuntos cada vez maiores (vale mencionar que figuras notórias do rock contemporâneo, como a dupla de guitarristas do SY - Lee Ranaldo e Thurston Moore - iniciaram-se na vida artística justamente com Branca); são obras monumentais e extremamente ambiciosas, onde o artista explora não só os páramos mais abstrusos da música ocidental contemporânea, mas também agrega elementos da música balinesa e indonésia. A partir de 1989, marcando uma surpreendente guinada em sua obra, o compositor passa também a trabalhar com orquestração sinfônica tradicional, mas sem abandonar suas explosões de energia guitarrística concentrada, e assim expandindo um legado cujo rigor estético bem como a ousadia conceitual nunca cessam de maravilhar seus ouvintes.

























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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte - Deserto dos Tártaros

Notas de reflexão crítica XI - a propósito da progressiva dissociação entre 'essência' e 'aparência'

Alphonse van Worden - 1750 AD





- Duas são, a meu juízo, as características emblemáticas do mundo hodierno, verdadeiras linhas de demarcação e balizamento que condicionam e delimitam o Homem na contemporaneidade: 1) a absorção de todas as esferas da ação humana pela lógica mercantil (cuja análise já levamos a cabo noutros textos presentes neste espaço), consoante a qual só possuem ‘valor’, em última instância, as pessoas, contextos e atividades passíveis de gerar renda; 2) a dissociação cada vez maior entre essência e aparência, ou seja, entre aquilo que as coisas e indivíduos de facto ‘são’, e aquilo que eles ‘aparentam ser’.

- Tal dualidade decerto não se afirma, é mister sublinhar, apenas como traço circunstancial da atualidade; trata-se, pelo contrário, d’algo inerente à ontologia do ser humano, traço inscrito, portanto, em nosso próprio aparato perceptivo, isto é, no conjunto de mecanismos mediante os quais acessamos e processamos os estímulos fenomênicos que a realidade nos envia.

- Nunca há, destarte, uma identidade total, um isomorfismo absoluto entre, de um lado, os dados concretos da natureza percebidos pela experiência humana, e, de outro, as representações (sejam elas de cariz gráfico, visual, sonoro ou de qualquer outro gênero) que deles fazemos; existe, pois, sempre uma décalage entre as coisas ‘em si’ (recorrendo aqui a um termo kantiano) e a transcrição mental que delas fazemos mediante os dados empíricos captados pelos sentidos. Há, portanto, uma ‘correspondência’ mais ou menos exata entre o que pensamos / lembramos / sentimos e a Realidade, mas nunca uma identidade completa.

- Isto irá refletir-se também, claro está, no âmbito de nossa psicologia e vivência social. Parece, pois, algo evidente, para qualquer um, a distância existente entre a ‘imagem mental’ que formamos de alguém, e aquilo que a pessoa em tela realmente ‘é’. A esse respeito, vale mencionar aqui o romance SOLARIS (Solaris - 1961), do polonês Stanislaw Lem, que ilustra à perfeição a questão em pauta: Solaris, o ‘planeta-oceano’, é uma espécie de organismo vivo dotado de inteligência e vontade própria. Um de seus mais miríficos poderes é a capacidade de materializar até mesmo o mais evanescente devaneio ou reflexão dos astronautas e cientistas que habitam a base espacial nele instalada. Assim sendo, a partir das lembranças do protagonista Kelvin, Solaris acaba por corporificar sua mulher Hari, que se suicidara anos antes; não obstante, algo de ainda mais inusitado ocorre: Kelvin não ‘reconhece’ sua falecida esposa naquele ente redivivo, que lhe parece ser tão somente uma espécie de cópia imperfeita, de caricatura do ‘original’; e aos poucos percebemos, leitores e personagens, que a figura materializada pelo planeta inteligente não é exatamente Hari, mas sim o conjunto de reminiscências, sentimentos e sensações ou, em outras palavras, o multiforme feixe de representações mentais que a memória de Kelvin designava como ‘Hari’. Há, por conseguinte, não apenas no tocante aos fenômenos naturais e objetos inanimados, mas também no que concerne às relações humanas, uma enorme diferença entre um ente tal como ele é, e a percepção que dele formamos. Kelvin descobre, por fim, ao verificar que não consegue amar a ‘nova’ Hari (malgrado ela lhe suscite atração física e até mesmo certa afeição), algo deveras paradoxal e inquietante: amava não o ente idealizado que fabricara a partir das impressões sensíveis fornecidas por Hari, mas sim a incognoscível pessoa ‘real’, mesmo sendo incapaz de acessar sua essência.

- A supracitada dissintonia , muito embora responsável por toda sorte de ilusões e equívocos cognitivos, nunca atingira antes o estágio de cisão esquizofrênica, uma vez que o Homem sempre manteve, em maior ou menor nível, uma consciência relativa do descompasso existente entre suas representações conceituais e os objetos e fenômenos da natureza. Entretanto, essa derradeira e crucial barreira de sanidade parece estar perigosamente oscilando nos tempos que correm: com o advento da chamada ‘realidade virtual’, bem como de todo gênero de dispositivos de simulação e reprodução serial cada vez mais sofisticados, o homem está construindo uma espécie de ‘universo paralelo’, com coordenadas, características, códigos e signos específicos – e até mesmo, de certo modo, uma sensibilidade própria - estabelecendo, portanto, certo ordenamento intencional e uma dada estrutura aparente de realidade, sem que esta apresente, contudo, efetiva tangibilidade; e tal contexto obviamente reflete a progressiva abstração da atividade econômica. Se a forma-mercadoria já se afirmava, desde sempre, como célula básica do Capital, convertendo os produtos do labor humano em coisas dotadas valor meramente abstrato, alienadas de suas qualidades sensíveis, tal dinâmica de abstração agudizou-se sobremaneira nas últimas décadas: com atividade industrial perdendo sua centralidade como locus privilegiado de onde o sistema extrai os recursos para sua auto-reprodução ampliada, o eixo de sustentação do Sistema desloca-se aceleradamente para o setor financeiro, supino reino do ‘automovimento tautológico’ do dinheiro, desdobrando-se ad infinitum em espirais de rentabilidade artificial, desprovidas, por conseguinte, de lastro real.

- A título de ilustração, lançaremos mão uma vez mais da notável imagística de Stanislaw Lem. Em O INCRÍVEL CONGRESSO DE FUTUROLOGIA (Kongres futurologiczny - 1971), o autor polaco concebe uma sociedade onde o ‘reino da aparência’ logra absoluta autonomia em relação à realidade física, sobrepondo-se por completo a ela, de modo que o homem, sob a égide do ilusionismo absoluto, já não mais pode distinguir entre dados objetivos e subjetivos. Através de sofisticados alucinógenos, maciçamente pulverizados na atmosfera e em todos os ambientes, o Estado não apenas controla a subjetividade de seus cidadãos, mas se torna capaz de ‘produzir’ o próprio 'Universo' físico e mental de seus súditos, evocando de certa forma, malgrado em termos mais puramente fantasistas, a tão caracteristicamente kafkiana atmosfera de ominosa, claustrofóbica alienação espiritual, de brumas e ameaças espectrais onde a realidade sensível se dissolve na oscilação inquietante do inefável. Todavia, em amarga e quiçá profética ironia, o mundo urdido por Lem começa a entrar em colapso: na medida em que recorre continuamente, e em escala sempre crescente, à produção e fumigação de substâncias alucinógenas, o próprio aparato estatal começa a perder o controle do processo, de maneira que a distinção entre objetos, mercadorias e dispositivos reais e ‘virtuais’ começa a se tornar cada vez mais difusa e problemática, com previsíveis e catastróficas conseqüências na esfera econômica. Hoje constatamos, estupefatos, que o sistema produtor de mercadorias começa a reproduzir tal estado de coisas: os ativos financeiros que, circulam por todo o globo terrestre entrelaçando mercados em tempo real, já não mais correspondem a ganhos reais, e os próprios agentes econômicos, assim como bancos, instituições multilaterais e mecanismos estatais de controle e regulação, começam a perder o controle de toda essa incessante dinâmica.