quarta-feira, agosto 01, 2007

Apontamentos sobre a filosofia britânica I - a propósito de William of Ockham

Alphonse van Worden - 1750 AD






Ó venerandos confrades d'armas! Bem sabeis de minha perene devoção à filosofia anglo-saxã, excelsa plêiade de autores notáveis pela lucidez epistemológica, consistência argumentativa e firme compromisso com os dados concretos da experiência (Thomas Hobbes, Francis Bacon, John Locke, David Hume, J.S.Mill, C.S.Peirce, Bertrand Russell, A.N.Whitehead, G.E.Moore, Gilbert Ryle, A.J.Ayer, Nelson Goodman, etc.); isto posto, gostaria de vos falar hoje d'um vero luminar, uma das pedras basilares do pensamento medieval, que junto a Roger Bacon (1214 - 1294), estabeleceria os fundamentos da supracitada tradição: o frade franciscano William of Ockham (1288 - 1348), dito Venerabilis Inceptor pelo insofismável esplendor de seu intelecto.

Nascido em Ockham, um pitoresco vilarejo em Surrey, ao pé de East Horsley, ingressou no noviciado franciscano por volta de 1300, e sob a égide desta mirífica ordem, estudou em Londres e na Universidade de Oxford entre 1309 e 1321. Mais tarde viveria em Avignon e Munique, conforme verificaremos ulteriormente. Suas obras mais importantes, versando sobre lógica, teologia, filosofia natural e política, são as seguintes: Summa Totius Logicae (1323), quiçá sua obra-prima, tratado de âmbito sobremaneira ambicioso, e que constitui, ao lado da Logica ‘ingredientibus’ de Abelardo (1079 – 1142), o grande monumento legado pelo medievo ao acervo da lógica 'antiga'; Quodlibeta Septem (publicada postumamente em Paris, no ano de 1487); Quaestiones in Octo Libros Physicorum (1327); Super Potestate Summi Pontificis Octo Quaestionum Decisiones (1344); Breviloquium de potestate tyrannica (1346).

De Ockham costuma-se dizer que foi "o último dos medievais e o primeiro dos modernos". Despojando tal afirmação de eventuais injunções preconceituosas de índole 'iluminista', penso ser essa uma observação correta: com efeito, o ínclito pensador inglês a um só tempo encerra com 'chave de ouro' o ciclo da escolástica, bem como antecipa uma nova sensibilidade filosófica, atenta não apenas à estrutura lógica da linguagem e do pensamento humano, no sentido de conferir-lhes maior rigor e precisão, mas também à experiência humana em sua interação com o mundo concreto

Sintetizando aqui o escopo das investigações filosóficas empreendidas por Ockham, podemos afirmar que o móvel precípuo do franciscano inglês é facultar ao entendimento humano a possibilidade de distinguir com clareza entre entidades linguísticas e entidades reais; ou, em outras palavras, entre o plano conceitual do discurso e os dados empíricos da realidade sensível. Com efeito, o filósofo propugna, por exemplo, que não se deve atribuir aos signos gráficos e fonéticos, necessários à descrição das entidades reais e à comunicação humana, outra função que não a de representação ou símbolo, cujo significado está em assinalar ou indicar realidades diversas deles. Ockham outrossim não aceita que os chamados 'Universais', ou conceitos, possuam existência objetiva, sendo tão somente abstrações necessárias, num primeiro momento, à sistematização dos dados da realidade apreendidos pela experiência humana e, num segundo momento, à transmissão deste conhecimento já ordenado e sistematizado. O assombroso alcance filosófico de tais ideias pode ser estimado por qualquer um que disponha de conhecimentos elementares na matéria.

Creio, destarte, que a grande motivação a animar o projeto filosófico ockhamista era a de estabelecer uma clivagem nítida entre fé e razão, teologia e filosofia (prefigurando claramente a clássica distinção kantiana entre 'objetos do pensamento' e 'objetos do conhecimento'); assim sendo, ao preconizar o 'princípio da economia' (entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem, que se tornaria proverbial sob a denominação cunhada pelo matemático irlandês William Rowan Hamilton: 'navalha de Ockham'), bem como a existência das idéias e proposições unicamente como abstrações conceituais, o Venerabilis Inceptor tenciona fundamentar a filosofia em terreno sólido e insofismável.

No esteio de tais considerações, é mister sublinhar que Ockham prenuncia os critérios de demarcação epistemológica posteriormente estabelecidos por Locke, Hume e pelos autores ligados ao empirismo lógico (Russell, Carnap, Reichenbach, Hempel, etc.): consoante tal perspectiva, um enunciado é dotado de sentido quando podemos descrevê-lo como tautologia da razão pura (isto é, uma proposição verdadeira por definição, cujo sentido permanece o mesmo sob diferentes arranjos de palavras ou símbolos), ou então como proposição verificável empiricamente; caso não possa ser enquadrado em nenhuma das categorias acima, trata-se de especulação de cunho subjetivo, pertencente ao vasto espectro de temas e matérias alheios à esfera lógico-demonstrativa.

Há também que frisar que Ockham não foi ousado apenas em lógica e epistemologia, mas também no universo da teologia especulativa propriamente dita, bem como no âmbito da filosofia política; trata-se, creio, do pensador mais inovador da história da Igreja no período medieval: ao sustentar, por exemplo, que questões de fé não poderiam ser de forma alguma objeto de demonstração racional, o frade inglês provocou um verdadeiro terremoto no seio da Escolástica. E mais: para ele, a fé é tão somente intuição íntima e intransferível, não podendo ser alvo de qualquer sistematização conceitual.

Ockham assevera que qualquer tentativa de demonstração da existência de Deus carece de validade racional; outrossim, tampouco é possível comprovar, seja através da experiência ou do emprego da razão, a existência da alma. Compreendendo bem o sentido profundo da omnipotência divina, o filósofo franciscano concebe Deus como liberdade absoluta, que não pode ser limitado ou circunscrito por coisa alguma. Em Deus não há necessidade, mas sim pura e absoluta contingência, já que todos os Seus desígnios e atos poderiam ser revertidos, se Ele assim o desejasse.  


Ao advogar, portanto, a separação ontológica entre 'razão' e 'fé', isto é, entre filosofia e teologia, Ockham suscitou intensas controvérsias, que inclusive o obrigaram a abandonar Oxford; vale dizer, aliás, que o papa João XXII  o condenou por heresia em Avignon; o filósofo então refugiou-se em Munique, sob a proteção do Imperador Ludovico da Baviera (para quem teria proferido o célebre dito: tu me defendas gladio; ego te defendam calamo!). De lá continuou a atacar ferozmente o poder temporal da Igreja e as figuras de João XXII e de seu sucessor, Benedictus XII, com vários trabalhos abordando a questão da infalibilidade papal, nos quais asseverava que a tese consoante a qual a autoridade do líder é limitada pelo direito natural e pela liberdade dos liderados está lastreada pelos Evangelhos; sustentava, ademais, ao lado de outro ilustre confrade seu, Marsilio da Padova (1275 - 1342), um maior grau de autonomia do poder temporal em relação à Igreja, sendo assim um dos primeiros autores a defender o que hoje é uma das pedras basilares do Direito no Ocidente, vale dizer, a separação entre o Estado e a Igreja. Em função destas concepções, a igreja excomungou o filósofo, conservando-se este firme em sua linha de ação e pensamento até o fim de seus dias.


Há, por fim, que ressaltar as implicações éticas presentes na epistemologia ockhamista; nos marcos de tal concepção, poderíamos afirmar, com efeito, que o eventual 'valor de verdade' de uma assertiva deôntica seria passível de verificação tão somente de forma deveras problemática, pois para cada instância comprobatória sempre será possível apresentar um contraexemplo, de maneira que nada nos autorizaria a sustentar, no que se refere ao universo ético, a existência de parâmetros inequivocamente objetivos de avaliação. Outrossim, o que me parece ser de extrema importância na perspectiva de Ockham é a constatação de que a escolha moral do homem via de regra deita raízes em alguma concepção metafísica de 'bem' e 'mal', cuja essência teleológica transcende em muito o campo da justificação racional.